Esta história, que é minha, não aconteceu comigo, mas dei por mim no meio dela. O meu irmão Pedro é dois anos mais novo do que eu. Crescemos num subúrbio ainda repleto de traços de ruralidade, num lugar simpático e acolhedor onde os prédios eram escassos e onde brincar na rua era tão normal como numa aldeia de província. Eu, mais velha e destemida, liderava; ele, um rapazinho tímido e pouco expedito, andava sempre a reboque de mim, tentando acompanhar os mais velhos. Tivemos uma infância feliz.
Foi na adolescência que o Pedro começou a revelar alguns problemas. Na altura, ninguém achou grave. Eram apenas problemas de autoestima. Que adolescente não os tem? Só que os do Pedro pareciam mais pesados do que a simples crise de insegurança por causa das borbulhas na cara ou dos pelos no buço. Os seus dramas mantinham-no afastado dos outros rapazes e raparigas da mesma idade. Fechava-se em casa, ficava horas no quarto a ouvir música e imerso nos videojogos. Mais tarde, comprou uma guitarra. Continuava a fechar-se no quarto, onde ficava durante ensaios infinitos em que estudava e praticava escalas e músicas. Depois, começou a ensaiar composições próprias. A vida social do Pedro, porém, mantinha-se inexistente.
Apesar do eremitismo do meu irmão, eu e ele sempre nos demos muito bem. Para mim, ele sempre fora assim, o meu miúdo, sempre tímido e acanhado, sempre calado e de sorriso envergonhado. Mesmo quando se transformara num jovem adulto, com o seu metro e oitenta e cinco, cabelos negros e umas barbas longas, continuava a ser o meu miúdo. No meio de tudo isto, conheci-lhe uma só paixão, uma rapariga que conheceu na faculdade. Estiveram juntos algum tempo, mas não correu bem. Os tempos de clausura do meu irmão deixaram-no obviamente mal preparado para o convívio e, ainda mais, para os relacionamentos amorosos.
O Pedro ligou-me há duas semanas. Era uma chamada urgente, que eu não atendi logo. Percebi-lhe a urgência quando ele insistiu uma, duas, três vezes, até que finalmente interrompi o meu trabalho e atendi. "Maria, preciso que me ajudes", disse-me, quase suplicando. "Preciso que me ajudes com dinheiro." Não me lembro de alguma vez o Pedro me ter pedido dinheiro. Nem mesmo durante a adolescência. "É urgente. Juro que te devolvo tudo o mais rapidamente que conseguir." Não fiz perguntas. No fundo, acho que sabia do que se tratava e não quis confrontá-lo logo de uma maneira brusca e dura.
Há cerca de um ano, o Pedro começou falar de uma Sofia. Ele continua a viver com os meus pais, pelo que já não nos vemos todos os dias, como dantes, mas continuamos a jantar em família com muita frequência. E, durante os jantares, as menções à tal Sofia tornaram-se recorrentes, inevitáveis e até previsíveis. Às tantas, já brincávamos com ele, "o que é que a Sofia acha disso?", ou "tens de contar isso à Sofia", a cada novidade que ele contava ou dúvida que demonstrava.
O problema é que nunca o víamos com a Sofia. O Pedro passava grande parte do tempo desligado do mundo, simplesmente a trocar mensagens com uma pessoa que eu nunca vira. Como ele não me deu qualquer explicação para a ausência permanente da namorada, resolvi perguntar-lhe, frente a frente, numa das visitas lá a casa. Quando é que me vais apresentar à Sofia? Respondeu-me que não seria fácil, uma vez que ela morava longe. Longe, onde? Sê mais específico. Fugiu à conversa.
Com o passar das semanas, a Sofia continuava a ser assunto de conversas e era presença constante em tudo o que o meu irmão contava sobre os seus dias. Só não estava presente na vida real, na sua forma concreta. Digamos que era uma ausência com uma forte presença. Questionei-o uma vez mais acerca da namorada e onde é que ela vivia. Finalmente, o Pedro falou: nunca a conhecera pessoalmente. Tinham começado a trocar mensagens online e depois começaram a comunicar pelo Whatsapp. Nunca fizeram videochamadas, nunca falaram sequer ao telefone. Ela dizia viver em Espanha, em Madrid. Tudo soava demasiado sórdido.
Enquanto o Pedro me contava tudo isto, eu ia absorvendo a informação e fazendo um grande esforço para me manter calada. Consegui ser firme e não o contrariei em nada, não pus em causa qualquer revelação ou característica, não levantei dúvidas nem ondas. A vida é o que é e o amor tem destas coisas, disse-lhe eu. No fim de tudo, pedi-lhe apenas que me mostrasse o perfil da Sofia no Instagram. Ele hesitou - "por favor, não metas conversa com ela, não sei o que ela poderia pensar, não quero assustá-la", pediu-me. Garanti-lhe que não falaria, queria só ver a minha futura cunhada, conhecer o seu rosto, o seu aspeto. Ele acedeu.
O Instagram da Sofia é um pequeno deserto pontuado por clichés das redes sociais. Praia, pôr-do-sol, paisagens exóticas, imagens aleatórias a preto e branco que podiam ter sido retiradas de qualquer lado da imensidão Internet. Fotos dela só há uma, a de perfil. Os níveis de estranheza atingiam novos recordes de cada vez que eu tentava entender melhor a situação. Experimentei copiar a foto de perfil dela e pesquisar no Google. Fui dar a um anúncio de uma clínica dentária. Das duas, uma: ou a Sofia fazia figuração para publicidade na Bélgica, ou aquela pessoa por quem o meu irmão estava obcecado não era exatamente quem ele pensava e tinha-se apropriado de uma imagem online para construir um perfil falso. Perante as evidências, pareceu-me claro que se trataria da segunda.
Fui ter com ele. Confrontei-o. Mostrei-lhe a foto, mostrei-lhe o anúncio, expliquei-lhe o processo e o raciocínio. Falei-lhe de outros casos semelhantes, alguns deles bem conhecidos e divulgados até nos noticiários, de pessoas que eram enganadas por perfis falsos online. Não me quis ouvir. Chateou-se comigo, chamou-me egoísta, acusou-me de não o deixar ser feliz, de não querer que ele vivesse a sua vida de maneira independente. À sua maneira, dizia ele, viver como queria, com a mulher que amava. Depois, pegou no telefone e leu-me uma mensagem da Sofia, cheia de chavões e lugares-comuns de amor, em que ela tentava dizer-lhe o quanto o amava recorrendo a metáforas que se tornavam embaraçosas, tal a pobreza das ideias. Desisti. Fui-me embora.
Eu e o Pedro ficámos sem falar durante algum tempo. Depois retomámos, mas ele continuava chateado comigo, quase não falávamos. Até que a minha mãe ligou a pedir-me ajuda. Ele tinha-se fechado no quarto há quatro dias e não saía de lá, recusava-se. Fui a casa e pedi-lhe para conversarmos. Lá me deixou entrar. O quarto era um verdadeiro inferno modorrento, um casulo fechado cujo odor prefiro não descrever. Perguntei-lhe o que se tinha passado. Era a Sofia. Ao que parece, o meu irmão, apesar de se ter chateado comigo, ficou desconfiado depois de tudo o que eu lhe dissera. Então, combinou ir ter com ela para se encontrarem. Depois de muita insistência, ela acedeu. Ele comprou as passagens de avião e viajou até Madrid. A ideia era passarem um fim de semana romântico.
Quando o Pedro aterrou em Barajas, recebeu uma mensagem, que ele me mostrou: "Querido Pedro, amor da minha vida. Por favor, não te chateies comigo, sabes bem que és tudo para mim. Só que eu não vou conseguir encontrar-me contigo, infelizmente. O meu pai teve um acidente e vou ter de ir para Portugal para tomar conta dele. Desculpa, desculpa, mil vezes desculpa, meu príncipe." As lágrimas assomavam-lhe aos olhos. Abracei-o. Tentei confortá-lo. Disse-lhe que a esquecesse. Pedi-lhe que se lembrasse do que acontecera, que tentasse ser menos ingénuo. Prometeu-me que sim.
A minha mãe diz que ele ficou alguns dias em casa, cabisbaixo, metido consigo, mas que, depois, voltou tudo ao normal, sempre agarrado ao telemóvel, a trocar mensagens e a sorrir sozinho. Não lhe perguntei detalhes. Não quis meter-me mais nisso até há duas semanas, quando ele me ligou a pedir dinheiro. Então, decidi intervir. Pedi-lhe que viesse ter comigo para me explicar calmamente e com detalhe o que é que se passava. Era um descalabro total. Fiquei a saber que o Pedro ficara sem emprego. Deixou de ir trabalhar quando se fechou no quarto e, depois, despediu-se para ter mais tempo para falar com a Sofia. Uma loucura. Ela, entretanto, precisava de dinheiro para ajudar o pai nos tratamentos por causa do suposto acidente. Quanto dinheiro? "Ela diz que precisa de sete mil euros." Respirei fundo.
Fui ao Instagram e, de cabeça quente, mandei mensagem à suposta Sofia. Disse-lhe que a ia denunciar às autoridades. Insultei-a. Ameacei-a. Cá fora, no mundo real, levei o meu irmão a um psicólogo e pedi-lhe que interviesse. Avisei o Pedro que não queria que ele voltasse a falar com aquela outra pessoa, seja ela quem for, Sofia ou outro nome qualquer. Não me interessa. Ele aceitou. Um pouco contrariado, mas aceitou. A verdade é que o Pedro não tinha alternativa. Sem dinheiro, sem trabalho, a decisão estava nas minhas mãos, concordasse ele ou não.
Ontem fui visitá-los e aproveitei para tentar desanuviar um pouco e animar o Pedro. Lá em casa, pedi à minha mãe que mostrasse alguns álbuns de foto antigas. Aproveitámos para recordar a infância, as brincadeiras. O Pedro lá estava, tímido e sem jeito, sempre a tentar passar despercebido, com um ar envergonhado. Rimo-nos e falámos durante um bom bocado. Mas depois o meu irmão parou e ficou com uma expressão triste. Perguntei-lhe o que se passava. "Tenho saudades da Sofia", respondeu. Irritei-me, levantei-me para sair. E ele acrescentou, gritando para mim, "e se a história da Sofia for verdadeira e o pai dela precisar mesmo do dinheiro?" Vim-me embora. Não sei o que fazer daqui para a frente.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.