Em 2013, não resisti ao meu pressentimento e decidi escrever ao Albert. Foi um pressentimento que eu não sei explicar. Invadiu-me uma angústia muito grande, assustadora. Ao mesmo tempo, mergulhei na mais profunda nostalgia recordando os tempos distantes e felizes que vivemos em Luanda. E até, mais tarde, os pequenos e episódicos encontros em que matámos saudades um do outro. Acabei num enorme pranto. Por um lado, senti-me desfeita pelas saudades, não apenas saudades do Albert - nem sei se essas foram as que mais me doeram -, mas do tempo que passou, da mocidade que já não volta e de tudo o que a minha vida podia ter sido e que acabou por não ser. Enviei-lhe uma carta a perguntar como estava. Juntei-lhe uma fotografia, para que se lembrasse de mim. Aguardei pela resposta.
Nasci e cresci em Angola, no tempo em que Angola era ainda uma colónia ultramarina de Portugal. Até à morte prematura do meu pai, vivi num meio de privilégio. Depois disso, e apesar das muitas dificuldades que enfrentei, graças ao esforço de trabalho da minha mãe e ao meu próprio empenho nos estudos, fui conseguindo manter-me próxima de certos círculos da sociedade de Luanda, tanto antes da revolução como após a independência. E foi pouco depois da independência de Angola que conheci Albert Fermigier, que frequentava os mesmos meios que eu, dado o cargo que ocupava.
Diretor de um instituto de ensino francês, Albert era um charme de pessoa. Educado, culto, com uma pose irrepreensível, muito digna, muito elegante no vestir, de cabelo aparado ao milímetro e um corte certamente extraído das mais modernas e sofisticadas revistas de cavalheiros. Eu, seis anos mais nova do que ele, era uma jovem talentosa e ambiciosa que havia recentemente chegado a secretária pessoal do presidente de uma companhia aérea. Encontrámo-nos, eu e Albert, numa época de instabilidade social, mas também de liberdade e de uma certa efervescência.
Até hoje, não sei se nos apaixonámos. Acho que não. Creio que nunca amei verdadeiramente Albert. Ele certamente nunca se apaixonou por mim, e fez questão de o sublinhar em vários momentos, tanto enquanto estivemos juntos nos tempos de Luanda, como, anos mais tarde, nas poucas vezes em que os nossos destinos voltaram a cruzar-se - quase sempre por insistência minha, diga-se. "Estelinha, eu gosto de ti, mas eu não te amo." Não posso apontar-lhe, entre os defeitos, a falta de frontalidade. Contudo, se a franqueza lhe era uma qualidade querida, a honestidade era-lhe por vezes falha.
A minha tragédia com o Albert não foi o desgosto de amor ou a falta de correspondência nos sentimentos. Éramos adultos, livres e progressistas e, desde início, não esperávamos assim tanto um do outro. Acontece que engravidei. Contra todas as expectativas e projeções dos médicos, que, desde as primeiras consultas de ginecologia, me declararam incapaz de engravidar, fiquei grávida do Albert. Eu não tinha uma vida romântica muito ativa, tive muito poucos companheiros sexuais. Na época, o Albert foi o único homem com quem me envolvi.
Nunca me passou pela cabeça que pudéssemos criar juntos a criança que trazia no ventre. Contudo, fiz questão de a ter e disse-o ao Albert. A reação dele ainda hoje me intriga. Talvez ele tenha entrado em pânico, é possível, mas mesmo aceitando essa possibilidade, o que me pediu ultrapassou todos os limites da decência. Queria que eu abortasse. Ofereceu-se para pagar todas as despesas, que incluíam mandar-me para a Europa. Estávamos em 1976, fazê-lo em Luanda comportava alguns riscos. Recusei tudo. Disse-lhe que não queria nada da sua parte e que simplesmente iria ter o bebé, com ou sem o seu consentimento. Ficava à sua consciência reconhecê-lo. Disse-me que só o faria mediante um teste de ADN que confirmasse a paternidade. A exigência ofendeu-me demasiado e não voltei a falar com ele. Vim a saber que, pouco tempo depois, pediu transferência e deixou Angola para ir dirigir uma delegação do instituto noutro país. Não voltámos a falar durante anos.
O bebé nasceu, era uma menina. Só que ainda hoje não sei se nasceu com vida ou se foi um nado-morto. Os relatórios e os relatos da equipa hospitalar são contraditórios e pouco claros. Fui mantida em internamento, iludida pelas enfermeiras, que foram adiando dar-me a má notícia. Cá fora, no mundo real, a minha mãe e o meu irmão trataram de dar à pequena um funeral singelo. Pobrezinha, não teve sequer direito a batismo. Foi tudo demasiado devastador para mim, o que me levou a fazer uma revolução na minha vida, que incluiu mudar-me para Portugal. Quando senti forças e discernimento, escrevi ao Albert a contar-lhe o que acontecera. A sua primeira resposta chegou-me alguns meses depois, e nem sequer me respondia. Eram apenas desejos de boas festas.
Dizem que o tempo tudo cura, mas não é verdade. O passar dos anos ajuda a amaciar os espíritos, as dores e os rancores, mas curar não cura. Curar é outra coisa. O mais que podemos fazer é tentar pacificar - a nós mesmos, sobretudo. Eu, que sempre fui e ainda sou uma otimista incorrigível, tentei fazê-lo. Procurei o Albert. Descobri em que cidade estava colocado, decidi viajar para lá. Acabei por encontrá-lo. Conversámos muito, tentei compreendê-lo, sentia que entender a sua parte poderia ajudar-me a fazer as pazes com o nosso passado e com a vida que acabei por não ter. Tinham passado dez anos desde que nos víramos pela última vez.
Havia ainda uma questão que eu queria esclarecer. Na altura em que tudo aconteceu, em Luanda, um colega meu, que trabalhava na companhia aérea, dissera-me que o Albert era homossexual. Que sabia, pois ele havia tido um caso com um outro colega nosso, hospedeiro de bordo. Que cliché, pensei eu. O Albert sempre fora comigo um homem absolutamente normal no que toca aos desejos carnais e ao apetite sexual. Porém, aquela inconfidência, possivelmente maldosa, latejava-me na memória. Confrontei o Albert com essa possibilidade no decorrer da nossa conversa. Afinal de contas, ele nunca casara, não se lhe conheciam namoradas nem outras companheiras. "Sabes que valorizo a discrição", respondeu-me. E acrescentou que sempre me achou muito atraente, que naquele preciso momento se sentia atraído por mim. Fizemos amor.
Ao longo dos anos, voltei a procurá-lo mais algumas vezes, poucas. A última vez que o encontrei foi em Valência. Como acontecera nas outras ocasiões, conversámos sobre a nossa tragédia e o nosso desencontro, sobre a vida que não foi. Pediu-me que o perdoasse por tudo o que me fizera passar, pelo meu sofrimento, pela sua ausência. Não sei se o perdoei, mas senti-me um bocadinho mais em paz.
Durante essa minha visita a Valência, um amigo de Albert esteve constantemente presente. Um arquiteto de sucesso, pelo que percebi. À exceção dessa conversa, não nos restou mais privacidade. Fiquei no quarto das visitas, foi lá que dormi. E foi lá que encontrei um molho de postais, cada um enviado de um sítio diferente do globo. Eram vários os remetentes, todos eles homens. O tom era sempre afetuoso, às vezes romântico. Em certos casos, ainda mais explícito. O Albert guardava os postais que recebia dos homens com quem se envolvia. O arquiteto, estava bom de ver, seria o seu mais recente companheiro. Regressei de Valência com um sentimento misto de paz e de mágoa. Ele podia ter-me dito. Por outro lado, amar-me seria contrariar a sua natureza. Por cada ponto ou passagem que se tornavam claros, outros novos surgiam que tornavam tudo ainda mais confuso.
Durante anos, não voltei a contactá-lo. E o Albert também não me procurou. Muito tempo mais tarde, recebi um postalinho de boas festas, a que respondi com amizade e estima. E, depois, mais nada. Até ter tido aquele pressentimento, em 2013, que me levou a enviar-lhe uma carta a perguntar se estava bem. A resposta chegou-me semanas depois, por email. Vinha escrita em português e era assinada por alguém de uma instituição que cuidava de doentes de Alzheimer. O Albert estava lá internado. Revelou-me a senhora que ele não me reconhecera quando viu a foto. Em 2017, recebi um novo email da mesma senhora. Este último, dava-me conta da morte de Albert.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.