Entreguei o embrulho ao Valter. Era um pacote sem forma que ele tratou de apalpar sem delicadeza, "ó, o que será, uma playstation?", e rimo-nos. Era o nosso primeiro Natal ou, melhor dizendo, o primeiro Natal que acontecia desde que tínhamos começado a sair juntos e, entretanto, passadas algumas semanas, a namorar. Não íamos ficar juntos pelo Natal, ainda era demasiado cedo para isso. Então, fiz questão de, a caminho de casa dos meus pais, passar por casa dos pais dele a entregar-lhe em mãos o meu presente de Natal.
Por cortesia, levei uma caixa de bombons para a mãe e uma garrafa de Porto Tawny para o pai. A mãe retribuiu o presente com um beijinho, um sorriso muito gentil e um pequeno embrulho para mim. O pai agradeceu-me sem se aproximar, com um gesto e uma expressão de quem não tem jeito para ocasiões nem particular talento para socializar. Mal nos tínhamos visto antes, eu e os pais do Valter. Era tudo um pouco estranho e desconfortável. Queríamos sorrir com familiaridade, mas ainda não existia entre nós a graça natural das peças que se encaixam sem esforço, pelo que a naturalidade forçada esbarrava no desalinho dos gestos receosos.
Para evitar que o momento se prolongasse até para lá do limite do desconforto, embaraço adentro, decidi alterar o rumo da conversa. "Não queres abrir o teu presente, Valter?" Ele ficou sem saber o que fazer. Hesitante, olhou para a mãe. "A Matilde - a mãe disse o meu nome devagar e olhou para mim como se quisesse certificar-se de que estava correto - quer ver-te desembrulhar e perceber se gostaste." Eu acenei que sim, com entusiasmo, "abre, por favor". E o Valter, "bom, já que insistem", rasgou o embrulho. "Ah, uma camisola de Natal!", exclamou, ironizando e fingindo espanto. "Desdobra-a, vê se te fica bem", insisti com impaciência. E ele abriu-a diante do peito, esticando-a, vaidoso e sorridente. A expressão da mãe alterou-se como se a realidade tivesse dado um salto e tivéssemos aterrado noutra dimensão. O pai continuou lá ao fundo, boquiaberto, de whisky na mão, sem perceber o que estava a acontecer. Eu só consegui dizer "ai" e levar as mãos ao rosto. O Valter olhou para baixo, tentando perceber o que se passava. E depois olhou para mim, incrédulo.
Semanas antes, recebi uma mensagem no Instagram de uma marca nova de lãs, tricôs e bordados. Era uma marca portuguesa de produção artesanal. Tudo era feito em pequenas quantidades e com materiais de elevada qualidade. A princípio, estranhei a mensagem. Tenho alguma popularidade nas redes sociais, mas não a suficiente a pontos de me considerar uma influencer. Na minha página Coisas Simples, exploro pequenos gestos do dia a dia que podem tornar a vida mais fácil ou o mundo melhor. Por vezes, abordo trivialidades, jogos de cor, imagens curiosas. Outras vezes, partilho com os meus seguidores pequenos life hacks que podem fazer diferença no quotidiano. Por exemplo, explico como cuidar de cactos ou revelo as vantagens ambientais das máquinas de café que não usam cápsulas - faço até vídeos a demonstrar como fazer cappuccino.
Quando o remetente da mensagem me propôs um desconto de 50% numa camisola de padrões festivos e uma inscrição à minha escolha, fiquei surpreendida. Do lado de lá, desfizeram-me as dúvidas e a surpresa: quem comunicava a marca era uma amiga minha, a Catarina. Na verdade, era uma amiga intermitente, daquelas que uma pessoa vê quando calha, sem regularidade nem combinações: cruzamo-nos por acaso, de vez em quando, porque frequentamos os mesmos círculos e lugares. Conhecemo-nos há muito, mas nunca fomos próximas. Contudo, ela parecia conhecer razoavelmente a minha vida através das redes sociais. "Não queres oferecer uma camisola destas ao teu namorado? Podemos fazer um padrão natalício com o nome dele ao centro." A ideia pareceu-me estupenda. Disse-lhe que sim.
Há um episódio que me tem vindo à memória com frequência desde que tudo isto aconteceu. Eu e o Valter íamos ao cinema. Não sabíamos sequer o que íamos ver. Apetecia-nos qualquer coisa fora do circuito mainstream, então decidimos ir a um pequeno cinema com programação alternativa que fica no centro da cidade. Quando chegámos à bilheteira, o multibanco encontrava-se fora de serviço. O Valter abriu o porta-moedas, tirou de lá algum dinheiro, que depositou sobre o pequeno balcão. Depois procurou pelos bolsos das calças e da parka. Encontrou mais uma ou duas moedas, que juntou ao dinheiro que já lá estava. Contou tudo e, voltando-se para trás, perguntou "Alice, tens um euro e vinte?"
O rosto dele ficou imediatamente lívido, pediu desculpa. A minha fúria eufórica foi rapidamente arrefecida pelo receio de que o Valter me desmaiasse nos braços ali, em público, diante de toda aquela gente. Virei-lhe costas. Alice era a ex-namorada dele. Caminhei muito rapidamente. Senti-me tão ofendida que desatei a andar cada vez mais depressa, às tantas quase corria. O Valter vinha atrás de mim, chamava-me, às vezes, "Matilde, espera Matilde, por favor", praticamente implorando, e eu "deixa-me em paz, vai lá ter com a tua Alice".
Quando finalmente parei, aproveitei para descarregar sobre ele toda a minha ira. Não vou negar que aproveitei a minha posição de vantagem inatacável, de superioridade moral, de conduta irrepreensível. Por cada vez que ele tentava atabalhoadamente explicar-se, "foi um lapso freudiano", "foi do hábito, foram alguns anos", "Matilde, tenta compreender", limitava-me a responder-lhe "só queria que imaginasses como seria se a situação fosse ao contrário, a sério, era tudo o que eu queria", e de novo o Valter se desfazia em desculpas, em justificações, em atrapalhações. Quando, finalmente, o sentimento que restava em mim era composto de uma parte maior de pena do que de raiva, lá acedi a dar-lhe o braço. Mas mantive a minha expressão de "isto não fica assim".
O Valter em casa dos pais a olhar para a camisola e depois para mim, de novo para a camisola e outra vez para mim. Eu com as mãos diante da boca, sem saber o que dizer nem o que fazer. O pai do Valter, no meio daquele impasse, a finalmente dizer qualquer coisa, "Isso diz aí Mário? Na camisola? Mas quem é o Mário?" E a mãe do Valter, ainda com a mesma expressão transdimensional, a tentar encontrar uma justificação lá nos confins do seu próprio universo, "acho que a menina se enganou no embrulho, Matilde, este não seria o presente para o seu pai?" E o Valter a deixar cair a camisola ao chão, num misto de desprezo e desalento, e a exclamar enquanto virava costas "pai, mas qual pai? O pai dela chama-se Armando, o Mário é o ex-namorado!" e a bater com a porta da casa de banho, onde haveria de se fechar durante horas - mas antes de trancar a porta, pôs a cabeça de fora e disse "é esta a tua vingançazinha, não é? A vingança da bilheteira do cinema. Parabéns, considera-te bem vingada".
E eu na minha cabeça a jurar a mim mesma que não foi por vingança, a tentar perceber como é que aquilo fora possível. Só me lembrava da Catarina a perguntar-me "Não queres oferecer uma camisola destas ao teu namorado? Podemos fazer um padrão natalício com o nome dele ao centro", e depois a acrescentar "ele chama-se Mário, não é?", e eu a responder, meio distraída, "sim, sim" e a nunca mais pensar no assunto. Nunca mais. Até ao momento em que o Valter tirou do embrulho a camisola com o nome do meu ex-namorado.