Constelações familiares: como o trauma geracional pode explicar doenças e fracassos sistémicos

O método explica que destinos herdados de geração em geração podem afetar negativamente os membros de uma família, conduzindo a doenças e fracassos que se repetem sistematicamente. É visto como um renascimento, na medida em que a pessoa consegue ver as ligações que impediam o seu equilíbrio e desenvolvimento saudável.

Judy Garland e Liza Minnelli abordam o trauma geracional e o legado familiar Foto: Getty Images
23 de junho de 2025 às 11:57 Júlia Serrão

Andreia Vieira teve o primeiro contacto com as constelações familiares há quase vinte anos durante um curso de terapias complementares, ao ser convidada por um dos professores a participar numa sessão em que várias pessoas foram apresentar os seus “temas” – problemas. “Fui completamente às escuras, pois não sabia o que era”, nota  e professora de meditação, que trabalhou como jornalista na área da saúde.

Primeiro foi espectadora. Mas nas dinâmicas a que assistiu, viu uma “que espelhava o que vivia na família”. Depois foi chamada a “representar” um papel. “O insight foi ainda maior porque senti no meu corpo as emoções dessa pessoa, como ela se sentia, e isso foi muito esclarecedor. Percebi o quanto as constelações podem ser poderosas, que têm um grande potencial de ajuda e de clarificação.

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Em 2022, a terapeuta que a acompanhava aconselhou-a a procurar as constelações para a ajudar “a lidar mais profundamente com um problema” que vivia. “Aos 13 anos, a minha filha foi diagnosticada com um problema de saúde estando a ser muito bem acompanhada pela medicina convencional, mas eu quis saber que mais podia fazer para ajudar, como melhor me posicionar.” Ao dar esse passo ajudou-se, e ao ajudar-se ajudou a filha. “Basta um elemento da família constelar para, ainda que subtilmente, contribuir para alterar o sistema, a dinâmica familiar. Eu reforcei o que estava a fazer e aprofundei o que me foi sugerido, e isso trouxe apaziguamento a algumas questões.”

Os membros da família estão ligados entre si como uma comunidade de destino

As constelações familiares são uma abordagem criada pelo filósofo alemão Bert Hellinger, que desenvolveu o que designou “visão sistémica”, dado que sustenta que os membros de um sistema familiar estão ligados entre si como uma comunidade de destino. Partilham um destino comum, sendo que as suas ações têm consequências para todos. O método destaca o papel das emoções e energias que vivem no nosso inconsciente e a forma como interferem nas nossas decisões.

De acordo com Hellinger, os sistemas apresentam três necessidades essenciais, a que chamou as “Leis da Ordem do Amor” – também conhecidas como “Leis Sistémicas”.

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A primeira, a lei do pertencimento (ou inclusão) diz que todos os membros de um sistema têm direito a pertencer, não podendo ser excluídos. A exclusão de alguém pode espoletar desequilíbrios no sistema familiar, procurando uma inclusão através de doenças ou alterações do comportamento de um dos descendentes. Por exemplo, numa família em que “A dor de quem ficou é tão grande, que há um sentimento de culpa por não ter visto os sinais. Então, a família esconde, não olha porque dói, e essa pessoa é excluída.  Enquanto ela não for incluída no altar do coração da família, a pressão de exclusão vai fazer sentir-se”, explica , professora, facilitadora de constelações há mais de vinte anos, e líder do movimento sistémico em Portugal. A lei da hierarquia (ou ordem) remete para a posição que cada elemento ocupa no sistema, sendo que os que vieram (nasceram) antes têm precedência sobre os que vieram depois. Quando a dinâmica se altera, ocorrem distorções nas relações, trazendo sofrimento aos membros da família. Por fim, a lei do equilíbrio aponta para a simetria entre dar e receber: tudo o que se dá exige um retorno com a mesma energia com que foi dado. A transgressão desta lei, à semelhança das anteriores, resulta em fracassos e doenças igualmente recorrentes de geração em geração.

Com base na visão sistémica, o destino trágico de uns, quando rejeitado ou descurado, vai atuar no sistema familiar “para procurar compensação e inclusão do que foi separado”, nota Maria Gorjão Henriques, que fala de “lealdades inconscientes” que moram dentro de nós”, aos nossos antepassados, e podem ser “acordadas”. Quando isso acontece, “o descendente é convocado a reparar a vida do ascendente que morreu debaixo de uma dor que não ficou resolvida, de um trauma, que é uma energia que está presa”.

Reconhecer o sofrimento do antepassado e devolver-lhe a dignidade

Uma cliente, com 39 anos e meio, procurou a facilitadora com medo de ficar viúva. Já não dormia e vivia em pânico. Era casada com um militar que fora destacado para uma comissão num país em guerra dali a um mês e, “portanto, o trauma cósmico estava montado”.

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Maria Gorjão Henriques percebeu imediatamente que se tratava de “uma carga sistémica”, ou seja, um trauma transmitido de uma geração para a outra. E, seguindo o seu método, perguntou-lhe diretamente “quem é que ficou viúva com 40 anos?”

Fora uma avó que enviuvara nessa idade, ficando com quatro filhos pequenos. Passou fome, teve de ir trabalhar e pedir ajuda a familiares. “A identificação dela com aquela avó era de tal maneira que, com 39 anos e meio, começa a acordar as portas epigenéticas. E a avó, que é 25 por cento do que ela é, transformou-se em 100 por cento do que ela era naquele momento”, conta, lembrando que herdamos mais 50 por cento do ADN de cada progenitor e 12,5 por cento dos bisavós. “A epigenética explica que as sensações dos nossos antepassados ficam guardadas na memória mórfica do campo familiar, e nós temos essa memória.”

Maria Gorjão Henriques fala em “gatilhos” que desencadeiam o trauma: “concomitâncias com determinadas circunstâncias”, sendo “a idade” a mais relevante. O descendente é chamado a reparar , mesmo que não tenha conhecimento dessa exclusão, “com a idade que este tinha” quando viveu a situação. “O que acontece é que o trauma existe no clã mórfico familiar, e precisa ser repetido para tentar libertar a energia que lá está.”  Diz que a tendência é repetir permanentemente a história, até a pessoa conseguir superá-la dentro de si – através de uma conversa sistémica ou da constelação familiar – “reconhecendo o sofrimento” desse ascendente, “abraçando-o dentro dela e devolvendo-lhe a dignidade”. “Enquanto a pessoa não tiver a possibilidade e a capacidade de amar, aceitar o que foi como foi, a evolução dos seus antepassados e acolhê-los no altar do seu coração está em choque dentro de si. É ela que não está bem na paz do seu próprio mundo, porque estas pessoas todas moram dentro dela.”

A constelação é vista como um renascimento, uma vez que a pessoa consegue ver as ligações que impediam o seu equilíbrio e desenvolvimento saudável.

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Como se organizam as sessões de constelações familiares

A constelação pode ser feita em sessão individual ou de grupo. A sessão de grupo envolve o indivíduo (constelado), que apresenta o seu “tema” (problema ou dificuldade), o facilitador (constelador), e participantes. A dinâmica funciona com representações, onde alguns participantes assumem do constelado, vivenciando no corpo as emoções dessa pessoa. Desta forma, “o facilitador acede ao campo do constelado”, onde habitam as suas próprias memórias, conscientes e inconscientes, e dos seus antepassados.

“O sistema através das pessoas vai mostrar onde é que está a tensão, a dor maior que interrompeu o fluxo do amor. Depois é atuar sobre isso”, nota Maria Gorjão Henriques. Explica que “o roleplay é uma forma de ver na “realidade habitual” as tensões e as dores que estão presas no campo mórfico familiar, “no próprio corpo e consciência”, sendo absolutamente essencial nas situações traumáticas. Há pessoas que precisam desse trabalho “para libertar a energia que está lá presa”. Com outras, “basta uma “conversa sistémica”, isto é um diálogo onde a perspetiva sistémica é utilizada para analisar, compreender e resolver a questão.

Nas sessões individuais estão apenas o facilitador e o constelado, e são usados bonecos, objetos ou imagens para representação do sistema do constelado, sendo-lhe perguntado “o que sente quando olha para um objeto” que, por hipótese, representa o pai ou a avó. “A psique vai reconhecer nos objetos a nossa projeção”, esclarece a facilitadora.  Normalmente três sessões de um ou outro tipo resolvem a vida do constelado.

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Ciclicamente, o método de Bert Hellinger para ajudar a resolver problemas que atravessam gerações volta à ordem do dia, separando os defensores, que reafirmam a sua eficácia, dos que lhe apontam falta de uma base cientifica. A , por exemplo, não reconhece as constelações como intervenção psicológica ou psicoterapia “por não existirem ainda estudos científicos que permitam compreender o que é e como funcionam, ou como se avalia a sua eficácia”.

Maria Gorjão Henriques, dá conta que muitos ensaios científicos estão a ser desenvolvidos pelo mundo, “por isso, será uma questão de muito pouco tempo até termos a comprovação do método”. Para acrescentar de forma perentória: “É impossível ignorar o impacto sistémico que todos temos uns sobre os outros. Não podemos continuar a ignorar o que não sendo comprovado cientificamente, o nosso corpo, a nossa alma e a nossa personalidade reconhecem como uma verdade inequívoca. Portugal ficou numa corrente conservadora da psicologia, que já não se verifica atualmente em muitos países”. Diz que o problema “é a falta de regulamento” do método, o que permite que seja praticado por pessoas que “não têm preparação nem psicológica, por equilíbrio próprio, nem de conhecimentos técnicos”.

Decidida a mudar este cenário, a facilitadora, autora do livro O Despertar da Consciência, que liderou as vendas por muitas semanas, vai lançar um curso de facilitadores de constelações familiares em outubro, com duração de dois anos. “Vai haver horas de supervisão, um código de ética, um manual de boas práticas”, e tudo o que é preciso para garantir uma formação de excelência.

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