A estreia na Netflix do filme As White As In Snow, dedicado à primeira mulher que obteve o brevet de piloto na Escandinávia, veio recordar a saga das primeiras mulheres que se aventuraram na aviação há precisamente 100 anos. Uma saga feita de coragem, glamour e…tragédia.
Foto: Getty Images28 de janeiro de 2022 às 16:10 Maria João Martins
A coincidência de datas impressiona: a 8 de março de 1910, muitas décadas antes desta data ter sido consagrada Dia Internacional da Mulher, a francesa Raymonde de Laroche tornou-se a primeira mulher da História a conseguir o brevet de piloto aviador. Aos 23 anos, quando superou as provas do Aeroclube de França, trocou uma potencial carreira no Teatro pela aviação, declarando não sem teatralidade: "O céu é o meu palco." A bravura de que deu mostras um pouco por toda a Europa, nos anos que se seguiram, conquistou uma pequena multidão de adeptos, em que se destacava o último czar da Rússia, Nicolau II. Impressionado, Sua Majestade Imperial torná-la-ia baronesa depois de assistir a uma exibição sua, num festival de aviação em São Petersburgo.
Mas, como muitos dos pioneiros da aviação nas primeiras décadas do século XX, Raymonde foi vítima de um acidente profissional. Em julho de 1919, quando se preparava para se tornar piloto de testes, despenhou-se a bordo de um aparelho experimental. Teve morte imediata, tal como o seu co-piloto. Mas fatalidades como esta não impediriam as mulheres de levantar voo.
Nas duas décadas que se seguiram foram várias as heroínas da aviação e Portugal não foi excepção. Em 1928, Maria de Lourdes Braga de Sá Teixeira, de 21 anos, tornar-se-ia a primeira portuguesa a conseguir o brevet de piloto. Filha de Afonso Henriques Botelho de Sá Teixeira, coronel médico, começou por enfrentar a resistência familiar às suas ambições mas a perseverança acabou por falar mais alto.. Obteve o brevet de pilotagem a 6 de dezembro de 1928, com um avião Caudron G3, na Escola Militar de Aeronáutica (então a funcionar na Granja do Marquês, em Sintra). A título de curiosidade, registe-se que o seu instrutor foi o então capitão piloto-aviador Craveiro Lopes, Presidente da República entre 1951 e 1958. Apoiada pelo Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, que chegou a lançar uma campanha pública para a aquisição de um avião para Maria de Lourdes, e pela imprensa em geral, a jovem piloto teve várias seguidoras mas foi preciso esperar por 1981 para ver uma mulher entrar no quadro dos pilotos da TAP (o feito coube a Teresa Carvalho).
Este longo hiato também se verificou em Espanha. No mesmo ano em que Maria de Lourdes obteve o seu brevet, idêntica proeza foi conseguida por María Bernaldo de Quirós, filha dos Marqueses de los Altares. Desassombrada, declarou aos jornalistas que cobriram o feito: "A opinião pública que se acostume. Verão que as mulheres servem para algo mais do que bordar." Entre 1928 e 1930, realizaria cerca de 200 batismos de voo a outras mulheres, um pouco por toda a Espanha. Para isso, teve que utilizar o seu próprio avião, já que, sendo mulher, lhe estava vedado o acesso aos aparelhos do Real Aero Club.
Tal como aconteceu no Portugal de Salazar, a ditadura de Franco devolveu as mulheres ao lar e só nos anos 60 se veria uma mulher a pilotar um avião comercial em Espanha. A pioneira foi Bettina Kadner (não por acaso, filha de pais alemães) e o seu caso obrigou o governo a alterar a legislação laboral referente ao sexo feminino em empregos tradicionalmente associados aos homens, como a aviação.
Aviadoras de fama mundial
A estreia na Netflix do filme sueco, As White As In Snow veio recordar a história da sueca Elsa Andersson, filha de um agricultor pobre, a quem nada parecia destinar a outra vida que não a de zelar pelos seus (até porque o irmão emigrara para os Estados Unidos) e pela lavoura. No entanto, contra tudo e todos, a começar pelas expectativas familiares, aprendeu a voar e tornou-se a primeira mulher aviadora não só no seu país, como em toda a Escandinávia. Mas não lhe chegava, quis tornar-se também paraquedista. E foi atrás do seu sonho, na Alemanha, onde frequentou uma escola da especialidade, enquanto dizia ao pai que estudava Artes para que ele lhe assinasse a autorização para viajar. Tudo acabou num domingo muito frio de Janeiro em 1922, em Askersund, quando cerca de 4000 pessoas se reuniram para assistir a um festival aéreo, um tipo de evento que adquirira muita popularidade nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial. Entre os participantes estava Elsa, que se propunha fazer uma exibição de paraquedismo. Mas, apesar dos seus esforços cada vez mais desesperados, o pára-quedas só abriu a escassos metros do solo. Para horror dos circunstantes, Elsa, na altura com 25 anos, teve morte imediata.
No período entre as duas guerras mundiais, as rainhas da popularidade foram, no entanto, a britânica Amy Johnson e a norte-americana Amelia Earhart, cujos feitos foram apaixonadamente acompanhados pelo público e pela imprensa.
Para Earhart (nascida no Kansas em 1897), a glória começou quando, após o voo solitário de Charles Lindbergh sobre o Atlântico em 1927, Amy Phipps Guest, uma socialite americana, expressou interesse em tornar-se a primeira mulher a cruzar o Oceano Atlântico. Porém, ao perceber que a viagem seria muito mais perigosa do que parecia, ofereceu-se para patrocinar o projeto, buscando "uma jovem com a mesma fibra". Durante uma tarde de trabalho em abril de 1928, Earhart recebeu um telefonema do publicitário Hilton H. Railey, que perguntou, "Amelia, gostaria de voar sobre o Atlântico?
A resposta não se fez esperar. Esta jovem intrépida, que herdara do pai o fascínio pelo voo e pelos aviões, estava prestes a tornar-se uma estrela, com um carisma apenas equiparável ao das estrelas de Hollywood. Depois de se tornar, de facto, a primeira mulher a voar sobre o Atlântico nesse ano de 1928, a lista de feitos de Amelia avoluma-se a uma velocidade estonteante: tornou-se o primeiro piloto a voar a solo sobre o Atlântico duas vezes (1932)., foi a primeira mulher a efetuar um voo sem escalas, costa a costa, sobre os Estados Unidos (em 1933), bateu o record transcontinental de velocidade feminino e tornou-se o primeiro piloto a sobrevoar sozinha o Pacífico, entre Honolulu, Hawai e Oakland, na California, em 1935.
A cada regresso, era aplaudida em êxtase por multidões, cumprimentada pelas autoridades. os repórteres não se cansavam de lhe captar o perfil determinado, muito à Katharine Hepburn. Incapaz de descansar à sombra dos sucessos conseguidos, propôs-se novo desafio em 1937. Acompanhada por Fred Noonan, a bordo de um Lockheed 10 E Electra, queria dar a volta ao mundo, mas o Oceano Pacífico parece ter sido mais forte do que eles. A 2 julho de 1937, a dupla descolou de Lae, na Papua-Nova Guiné, com destino às Ilha Howland, e nunca mais foi avistada. Declarados mortos no princípio de 1939, após meses de buscas sem sucesso, os dois passaram a ser personagens involuntárias das mais fantasiosas teorias da conspiração. O que lhes teria acontecido? Nunca saberemos ao certo.
Não muito diferente na glória e na tragédia é a história da britânica Amy Johnson. Filha de um pescador, nascida no Yorkshire em 1903, tornou-se uma vedeta internacional ao conseguir ligar num voo solitário, a Inglaterra à Austrália, a que se seguiram novos voos para a Índia, Rússia, Japão ou África do Sul.
Empolgados, os seus contemporâneos seguiam-lhe os feitos na imprensa e nos jornais de atualidade filmadas que antecediam as sessões de cinema. Em 1930, no auge da sua popularidade, a dupla de compositores Joseph Gilbert e Lawrence Wright dedicou-lhe uma canção intitulada "Amy, Wonderful Amy", que rapidamente se tornou um sucesso de vendas. Mas se os desafios da distância não a venceram, acabou por ser a Guerra a traçar-lhe o destino. Envolvida no esforço de transportar aviões para as bases da Royal Air Force, Amy não sobreviveu ao mau tempo que se abateu sobre o Tamisa na manhã de 5 de janeiro de 1941. Apesar de inicialmente localizada com vida pela Marinha, esta glória da aviação britânica não pôde ser salva e morreu presumivelmente afogada, aos 37 anos.
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Foto: Getty Images
À laia de homenagem, a Easy Jet deu o seu nome a um programa que procura estimular as jovens a abraçar a carreira de piloto da aviação civil. Na verdade, mais de 80 anos depois do desaparecimento de tão audazes pioneiras, calcula-se que o número de mulheres a sentarem-se aos comandos de um avião ainda não chegue aos 7% do número total de profissionais desta área.