Arundhati Roy: "A negociação da minha liberdade começou aos 16 anos"

Vinte anos depois de 'O Deus das Pequenas Coisas', Arundhati Roy regressou com 'O Ministério da Felicidade Suprema'. Tão suave como incisiva, a escritora traça um retrato social e emocional da Índia. E explica porque é uma das mais críticas e destemidas vozes do seu país. Releia a entrevista originalmente publicada na edição de outubro de 2017 da 'Máxima'.

Do fundo do coração
23 de abril de 2019 às 07:00 Rita Lúcio Martins

Arundhati Roy até pode ser uma mulher magra e de estatura baixa, mas nada tem de frágil. Vinte anos depois de ter conquistado o Booker Prize com o seu primeiro romance, O Deus das Pequenas Coisas, Arundhati Roy (Shillong, Índia, 1961) regressa à ficção e à lista de nomeados daquele que muitos consideram ser o mais prestigiado prémio literário. Denso, demorado e desafiador, O Ministério da Felicidade Suprema (Asa) junta ficção e realidade, até porque, esclarece-nos a autora, uma não existe sem a outra. Nele vivem personagens cheias de presente e de passado, esculpidas em múltiplas camadas, que tão depressa se nos colam à pele como se nos agarram à perna, como quem pede atenção e tempo. Porque foi isso que a autora colocou neste livro que, contas feitas, resulta num poderoso retrato de um país: a Índia mais profunda e orgânica, aquela que não cabe na descrição zen dos ashram da moda, nem no itinerário dos turistas mais crédulos.

Entre um romance e o outro, vinte anos passaram e poucos serão os que ouviram falar de Arundhati Roy, entretanto. Mas a sua voz foi sempre clara. Eventualmente, ficou até mais límpida (foi distinguida com o Prémio da Paz de Sydney, em 2004). Dedicada a ensaios políticos e entregue a causas sociais, tornou-se uma das personalidades mais críticas da Índia e isso custou-lhe a sua própria paz. Vários processos em tribunal, equipas de televisão à porta de casa, escrutínios públicos baseados em mentiras, para decidir se ela merece ou não ser amarrada a um tanque e usada como escudo humano. Sim, parece ficção. Como a ficção de Arundhati parece realidade.

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Quase num ápice, passou de heroína nacional a quase traidora. Foi inevitável?

O que se passou foi que, um ano depois de O Deus das Pequenas Coisas ter conquistado o Booker Prize, um partido de extrema-direita chegou ao poder, na Índia. Na altura, havia toda uma série de novas políticas económicas que promoviam a abertura do mercado. A Índia estava a posicionar-se como uma potência mundial e, de repente, palavras como Supereconomia, Miss Universo e Arundhati Roy surgiam todas no mesmo contexto. Quando os testes nucleares aconteceram, fiquei chocada com a quantidade de pessoas, entre elas artistas, escritores e cineastas, que se revelaram excitadas com o momento que a Índia estava a atravessar. Ficar calada implicava entrar naquele "comboio". Mais tarde, quando se deu o 11 de Setembro e os Estados Unidos decidiram atacar o Afeganistão e o Iraque, também podia ter ficado calada. Afinal, o meu livro até estava a vender milhões. Mas que tipo de escritora seria se ficasse calada?

Por isso, é descrita como uma ativista, mas não gosta dessa definição… 

Não tenho sequer essa palava no meu vocabulário. É um conceito recente, nem sei bem de onde veio. Os escritores sempre escreveram sobre assuntos políticos e nunca foram considerados ativistas por isso. Agora é que é suposto que os escritores sejam best-sellers ou vencedores de prémios… Parece haver uma série de necessidades determinadas pelo mercado editorial, a própria definição dos temas… E sempre que se escreve fora desses temas é-se considerado um ativista. Eu faço o que os escritores sempre fizeram.

Essa continua a ser a melhor forma de a descrever?

Sim, acima de qualquer outra. Quero poder escrever ficção que não pretende ser outra coisa: ficção que não quer ser cinema, nem ensaio político ou um guia para a Índia contemporânea. Trata-se de contar uma história, onde até as mais pequenas personagens têm algo importante a dizer.

Uma dessas pequenas personagens do livro tem claras semelhanças com a sua mãe, uma mulher incomum. O divórcio dos seus pais foi crucial?

Na verdade, eu era muito pequena, tinha pouco mais de um ano. Não tenho memórias do meu pai durante toda a infância e adolescência, só o reencontrei quando já tinha  22 anos. Depois do divórcio, regressei com a minha mãe e o meu irmão à terra dela, uma pequena cidade onde, por causa do sistema de castas, fomos mal recebidos. A minha mãe, que era cristã, tinha casado fora da sua comunidade, com um hindu, o que ainda hoje é raro e traz sempre um grande estigma sobre a família. Lembro-me de ser pequena e de me dizerem que por causa disso nunca ninguém haveria de querer casar comigo. Não éramos propriamente dalits, que são tratados de uma forma opressiva, mas estávamos fora daquela sociedade. Não sermos bem-vindos obriga-nos a crescer de uma forma diferente, acabamos por não querer fazer parte.  

O seu entendimento do que é uma família mudou?

Sim, muito. Hoje, muitas das mulheres que conheço – heterossexuais ou não – escolhem não casar. Tal como eu [é divorciada]. Se tivesse tido filhos não podia ser a pessoa que sou, que não sabe quando vai ser atacada ou se corre o risco de ser presa. Estou a jogar um jogo que envolve muitos riscos. 

Igualdade é uma palavra possível na Índia?

Acho que não existem sociedades igualitárias ou justas, mas quando me apercebo dessa tentativa de igualdade e justiça, isso enche-me de esperança. Nos anos 60, havia essa esperança na Índia: foi uma época de muitos movimentos sociais que exigiam que a sociedade mudasse. Com o tempo, todos esses movimentos foram silenciados. Hoje, vivemos numa sociedade que celebra a desigualdade e não há nada de mais terrível. As castas estão, naturalmente, no centro deste sistema. 

Vislumbra uma possibilidade de mudança?

Agora, tudo o que consigo vislumbrar é uma enorme quantidade de problemas. Acho que quem não vive na Índia não consegue compreender isto, mas temos uma grande fatia da população que é analfabeta, centenas de canais de televisão que, durante 24 horas, emitem propaganda, contam mentiras, temos uma grande parte da população hindu a celebrar o armamento, o nacionalismo, a perseguir quem não partilha as suas opiniões. E tudo isto está implantado nas pessoas a um nível quase celular. Recentemente, em Kerala, uma rapariga converteu-se ao Islão e casou com um rapaz muçulmano, de livre vontade, porque era nisso que acreditava. Os pais trancaram-na e as autoridades promoveram inquéritos para averiguar se ela seria um elemento do Estado Islâmico. Isto está a acontecer agora. 

Esse episódio é um retrato fiel da condição feminina, na Índia de 2017?

A Índia, às vezes, parece-me um país que vive, simultaneamente, em vários séculos. Pode encontrar uma mulher como eu e como tantas das minhas amigas que recebemos educação e vivemos a vida como as mulheres mais livres o fazem, mas também há infanticídio feminino, mães que, na hora da refeição, dão menos comida às filhas do que aos filhos... Recentemente, perguntaram-me se a vida na Índia era mais segura para uma vaca do que para uma mulher. E eu disse que sim, claramente. As pessoas estão a ser assassinadas por tocar ou transportar vacas. Já às mulheres podem fazer o que quiserem. O caos da Índia é tão charmoso que as pessoas não veem além dele. Está tudo misturado: hinduísmo, hippies, yoga, Ghandi… Além disso, as pessoas, os turistas, não entram no país verdadeiramente dito, não vão às aldeias ou às florestas onde as pessoas estão a ser assassinadas. E não há notícias disso. 

Apesar da realidade que habita, descreve-se como uma pessoa livre. Como é que desenhou esse território de liberdade?

Com o sucesso de O Deus das Pequenas Coisas não só me tornei economicamente independente como pude tornar outros economicamente independentes. Há toda uma comunidade alimentada pelos direitos de um livro. Este foi o primeiro passo para poder ser livre. Depois, há outro fator: acho que a minha cabeça se revelou livre de "desejos normais", como o querer casar ou construir uma família. Eu cresci numa escola [a mãe dirigia uma] e, entre os meus oito e os 16 anos, vivi rodeada de crianças. Mais tarde casei e o meu marido tinha dois filhos e tomei conta deles. Acho que encerrei esse capítulo, essa necessidade. Hoje, só eu sou responsável por mim. Quando comprei a minha casa andei algum tempo traumatizada, porque não queria esse tipo de compromisso, mas a verdade é que, hoje, com o que vejo em Caxemira, sinto-me aliviada: nenhum senhorio me vai expulsar. Assim, acho que a negociação da minha liberdade começou por volta dos 16 anos, mas sempre tive uma visão clara da forma como queria viver. Mas pode haver várias armadilhas pelo caminho. Por exemplo: eu ganhei um Booker Prize, podia ter aceitado milhares de dólares para escrever o próximo livro, depois o livro seguinte... e ter ficado a nadar eternamente nessa "piscina". Nunca fiz isso.

Continua a recusar o papel de voz dos sem voz?

Sim, até porque na Índia não há pessoas sem voz, há sim pessoas deliberadamente ignoradas. O meu esforço nunca foi no sentido de falar em nome delas, mas sim garantir que elas próprias o pudessem fazer. 

Diz que não pode deixar a Índia porque é como uma árvore. Haverá, ainda, um sentido de missão?

É verdade, as minhas raízes estão lá. Teriam de me transplantar. As minhas folhas iriam cair e, eventualmente, algumas novas iriam surgir, mas seria doloroso, por certo. Mas não tenho qualquer sentido de missão. Vejo-me mais com uma hooligan [dá uma gargalhada]. Conheço bem o lugar, o humor, a poesia, a música, os animais… Sou parte desse ecossistema. Não posso ir embora. Há tantas coisas e tantas pessoas que adoro, tantas pessoas de quem cuido, cães e gatos… Coisas que me prendem, mas que também fazem de mim uma pessoa livre, porque estou rodeada de amor. 

O que a faz mais feliz, nestes dias?

Escrever uma frase bonita. É esse o momento.  

 

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