A tentativa de assassinato de Evo Morales, os últimos desejos de Pinto da Costa e as maternidades

Uma crónica quinzenal na qual a jornalista diz coisas sobre o mundo e os que nele habitam que não pode dizer num artigo a sério – se quiser manter o trabalho.

Foto: Getty Images
31 de outubro de 2024 às 16:27 Madalena Haderer

Esta semana soube-se que Evo Morales, ex-presidente da Bolívia, foi alvo de uma tentativa de assassinato. Aliás, soube-se que Evo Morales diz que foi alvo de tentativa de assassinato – uma pequena, mas importante nuance. Cá em casa, por exemplo, digo sempre "as bolachas de chocolate acabaram" e nunca "acabei com as bolachas de chocolate" que é, na verdade, o que acontece. As bolachas não se importam e a minha dignidade fica intacta. Neste caso, aparentemente, o que não ficou intacto foi o carro onde seguia o ex-presidente, depois de ter sido atingido por 14 tiros. Poderá ter sido outra coisa que não uma tentativa de assassinato? É possível. Talvez um militar com epilepsia a testar uma arma à porta do arsenal. Ou talvez não tenha sequer sido atingido com balas. Um enxame de vespas asiáticas é uma hipótese, granizo é outra opção de peso – literalmente –, ou talvez o carro de Morales seguisse atrás de um camião de gravilha e tenham sido ambos fustigados por ventos ciclónicos. Certo é que o ex-presidente jura a pés juntos – pergunto-me se um juramento a fazer a espargata terá menos valor, não devia porque é certamente mais doloroso – que se trataram, de facto, de balas, e que a tentativa de assassinato foi ordenada por Luis Arce, actual chefe de Estado da Bolívia. "Foi mais um fracasso do Governo", vociferou um visivelmente aliviado, ainda que um tanto melindrado, Evo Morales.

A esta distância, é difícil dizer, com certeza, quem disparou o quê contra quem, com que intenção, mas há, pelo menos, uma coisa de que ninguém duvida: podemos sempre contar com a América Latina para pôr as coisas em perspectiva. Aqui, quando o Governo falha é porque as aulas começaram, mas ninguém avisou os professores, pelo que eles continuam em casa, a ver o Dallas na RTP Memória; ou as rendas são tão caras que as pessoas não conseguem alugar apartamentos e decidem viver naqueles armários de rua que dizem "alta tensão"; ou ainda porque não havendo solução à vista para o problema das urgências obstétricas, uma futura mãe, quando entra na ovulação, leva o telemóvel para o quarto para, entre uma coisa e outra – atenção que na outra não resulta! – ir ligando para a linha do SNS para saber qual será a maternidade de serviço daí a nove meses. É isto que significa para nós, europeus cheios de sorte, um Governo falhar. Já na América Latina, quando um Governo falha é porque tem falta de pontaria. Ou seja, mau mesmo é quando acerta.

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A propósito de gente que está viva por pouco – que, no fim de contas, somos todos nós –, foi também esta semana que Jorge Nuno Pinto da Costa, o ex-presidente, perdão, presidente honorário do Futebol Clube do Porto, apresentou o seu livro Azul Até Ao Fim, o quinto que escreveu, onde fala com naturalidade sobre o seu funeral. Primeiro, é de louvar o realismo de Pinto da Costa. De facto, no fim, depois de passarmos umas horas na gaveta da morgue, ficamos todos um bocado azuis. E, realmente, quando Jorge Nuno se refere a estar azul no fim, refere-se não apenas a si próprio, mas a todos nós. Em princípio, não se trata de uma tentativa de homicídio colectiva – embora, se as pessoas que votaram em André Villas-Boas para novo presidente forem chamadas para uma assembleia extraordinária onde um ponche de cor suspeita seja passado de mão em mão, é capaz de ser melhor não beber –, o que Pinto da Costa quer é que as pessoas vão vestidas de azul ao seu funeral. E as exigências não se ficam por aqui. Aliás, o novo livro acaba por ser mais um código de conduta para futuros observadores de exéquias do que qualquer outra coisa. É assim que ficamos todos a saber que se há coisa que Jorge Nuno não tolerará no seu velório é gente a contar anedotas, não por ele, garante, mas por respeito à família e aos amigos que estarão a sofrer com a sua morte. 

Ora, não tenho bem a certeza, mas dá-me a sensação que não é costume que pessoas aleatórias passem à frente de uma casa mortuária e decidam entrar para contar umas piadas, a ver se animam os enlutados, o que, sinceramente, seria um serviço de valor. O que significa que serão, provavelmente, pessoas próximas do morto – vulgo, família e amigos – a contar essas tão temidas anedotas. Também não sei como é que se impõe esta política de proibição da chalaça fúnebre. Em princípio, só me ocorre uma hipótese: pôr Fernando Madureira, o líder da claque dos Super Dragões, à porta do recinto oferecendo pedagógicas bordoadas a quem tenha a audácia de começar uma conversa com: "Olha lá, ó Gomes, já ouviste aquela do…" Resta, portanto esperar que Madureira saia da cadeia – onde está, certamente, a aprender novas e bonitas formas de inibir o riso alheio – a tempo do velório para que tudo corra de feição.

Por último, e porque é um homem generoso e altruísta, caso alguém duvidasse, Pinto da Costa fez questão de esclarecer que a capa do livro, onde ele aparece encostado a um caixão coberto com a bandeira do FCP, foi ideia sua, para que a editora não seja alvo de represálias. E ainda bem, não fosse dar-se o caso de levar com 14 tiros na porta.

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A autora escreve segundo as regras do Antigo Acordo.

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