Maria Antónia Palla: "O que eu teria sido se não fosse jornalista? Investigadora na PJ"

Maria Antónia Palla promoveu revoluções na sociedade, mas cultiva as rotinas e a ordem no seu quotidiano. Prefere o estilo à moda. Na política não valoriza as vitórias, mas sim as mudanças. Contraditória? Claro. É essa uma das razões que leva a que no fim de cada conversa se possa sempre dizer-lhe: “Prazer em conhecê-la.” Recordamos esta entrevista, feita por Helena Matos, no dia do seu 90º aniversário.

Foto: Pedro Ferreira
10 de janeiro de 2023 às 16:51 Helena Matos

Como se entrevista alguém com quem se falou tantas vezes? Sim, pensava eu, vou esquecer que a Maria Antónia Palla foi minha chefe de redação na Máxima, na verdade a pessoa de quem basta dizer-se "A nossa chefe" para que todos aqueles que com ela privámos saibamos, automaticamente, de quem se está a falar. 

Assim devidamente mentalizada, esperava eu fazer-lhe uma entrevista com a distância adequada. Mas para isso não devíamos ter marcado encontro no Café Império, não devíamos ter trocado palavras e batatas fritas, risos e molho, hesitado, como quem faz uma travessura, entre "gelado ou pudim?", ao longo das muitas horas que uma tarde pode ter. E que a mim me pareciam ter passado a correr.

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Valha a verdade que outra questão me atormentava. Afinal o que podia eu perguntar à Maria Antónia que não lhe tivesse sido já perguntado e por ela devidamente respondido: como foi, nos anos 60, ser das primeiras mulheres a trabalhar como jornalista numa redação? Ou ter sido feminista, no século XX, quando o feminismo não estava na moda? E o que é agora ser mãe de um líder político e primeiro-ministro?

Tudo isto ficou em suspenso quando, como sempre pontual por antecipação, a Maria Antónia chegou para o nosso almoço. A relação da Maria Antónia com o tempo e os prazos é um ponto prévio indispensável a esta ou a qualquer outra conversa ou combinação que se faça com ela: a Maria Antónia chega sempre antes da hora e a sua preocupação com os prazos é tal que nunca os cumpre, pois entrega sempre tudo antes da data: "Eu fiz, agora, um trabalho com o [fotógrafo] Alfredo Cunha. Ele deu-me quatro meses. Eu acordava a meio da noite e punha-me a escrever de cabeça. Era uma angústia tão grande, essa de não conseguir cumprir o prazo, que acabei um mês antes."

Note-se que há outro ponto prévio a ter em conta nesta conversa: à Maria Antónia os maus restaurantes causam-lhe o mesmo desconcerto que um encontro falhado (e que as pessoas que não cumprem os prazos!). Já os bons merecem-lhe uma terna fidelidade. Afinal, ela gosta de cozinhar. De comer. Recorda pratos com o detalhe de quem sugere um livro que acha indispensável conhecer. E não por acaso a memória das refeições é o fio que nos leva até ao tempo mágico da infância passada no Barreiro: "Em casa dos meus avós eu era totalmente livre. Eu nunca fui tão livre como em casa dos meus avós. Se eu queria começar a refeição pela sobremesa, não havia problema."

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A casa onde "a porta nunca se fechava"

Essa espécie de casa encantada que era a morada dos avós paternos, no Barreiro, é uma paragem obrigatória nas recordações e na vida da Maria Antónia. Então ela não era ainda Maria Antónia Palla, pois esse apelido só chegará com o seu casamento com o arquiteto e fotógrafo Victor Palla, mas sim Maria Antónia Assis dos Santos. A referência aos apelidos não é fruto do acaso na nossa conversa, pois nessa casa onde "a porta nunca se fechava" e onde a Maria Antónia cresceu, tudo, até os apelidos, eram enquadrados pela forte personalidade dos avós paternos e pelos seus ideais: "Eu nasci numa família republicana. Descobri, há pouco tempo, que os meus avós estiveram dois anos sem registar o filho porque os registos faziam-se nas igrejas e os meus avós não queriam registar o filho numa igreja. Mas como acreditavam que ia existir a república, acreditavam que iriam registar o filho. Quando finalmente o fizeram já existia registo civil. O meu pai chamava-se Ítalo Ferrer dos Santos. Ítalo em honra do Garibaldi. Ferrer em honra de um pedagogo de Barcelona que foi fuzilado. E Santos que era o apelido do pai. Ele não tinha apelido da mãe porque a minha avó chamava-se Maria Amélia da Cruz. Ora tendo o meu avô como apelido Santos, ele seria Cruz dos Santos. E eles acharam que Cruz e Santos seria demais! A minha avó coseu a bandeira da república. Eu, assim que aprendi a ler, lia o jornal República à minha avó que estava quase cega. Aquela gente acreditava extraordinariamente na pátria e na república."

Os dois lados da sua família – paterno e materno – espelhavam a divisão vivida no país, nesses anos 30 em que a Maria Antónia nasceu e foi criança: "Lidei pouco com a família dos meus avós maternos. Era uma família muito conservadora. A minha mãe vinha de um meio muito conservador, muito preconceituoso, e ao casar com o meu pai, ela passou para uma família oposta. Eram diferentes demais. A minha mãe odiava a política e o meu pai interessava-se pela política..."

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Dessa infância ficaram-lhe sentimentos de pertença ao lado paterno que é como quem diz aos ideais republicanos – "Foi nesse clima que eu fui criada" –, uma emoção que não esconde perante os símbolos dessa república-pátria por que os avós aspiravam: "Quando eu ouço o hino choro." Mas não só. A forte e doce impressão que essa casa da sua infância lhe deixou talvez tenha contribuído para o seu gosto pelas casas. As casas da Maria Antónia são luminosas, com uma temperatura acolhedora (o frio conta-se entre os seus ódios de estimação!), com tecidos de flores, quadros, livros, recantos e fotografias: "Cada casa é um mundo. Não trocava nenhuma das minhas casas por outra. Já recuperei cinco casas. Adoro recuperar casas."

Ao ouvi-la dizer "Cada casa é um mundo" era como se eu mesma tivesse regressado ao momento em que conheci a Maria Antónia: foi durante uma entrevista, feita a pedido de Madalena Fragoso [fundadora e diretora da Máxima], há quase tantos anos quantos a revista conta, em que fiquei horas a ouvi-la, seduzida pelo estilo desconcertante das suas respostas e também pelo aconchego que emanava daquela casa no Bairro Alto, onde a Maria Antónia então vivia.

Sim, não se percebe a Maria Antónia sem a tentarmos seguir nesse quadriculado imperfeito de ruas, travessas e becos constituído pelo Bairro Alto, pois se a casa dos avós paternos, no Barreiro, é o espaço onde a memória da infância sempre a leva, o Bairro Alto é o espaço onde, invariavelmente, acabamos quando recorda a sua vida como jovem adulta: "Eu adorei viver no Bairro Alto. O Bairro Alto era a minha vida. É o meu sítio. É o espaço mais democrático de Lisboa. Era. Hoje não sei. Era no Bairro Alto que os jornalistas se encontravam. Havia as tipografias. Havia os jornais. Os estofadores… Cada padaria fazia os seus pãezinhos diferentes. Havia lugares de hortaliça. E produtoras de cinema… Eu trabalhei numa delas."

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"O que eu teria sido se não fosse jornalista? Investigadora na PJ"

Era também no Bairro Alto que ficava o Diário Popular, o jornal onde começou a trabalhar: "O Dr. Balsemão queria renovar o jornal e percebeu que tendo mulheres na redação, renovava. Eu já colaborava na página cultural. Quando entrei para a redação fui logo para a secção da Cidade. Três meses depois de estar no Diário Popular mandaram-me fazer uma reportagem sobre as mulheres dos alcoólicos. Ganhei um prémio de reportagem que era superior ao ordenado mensal. Com esse prémio comprei uma televisão. Estávamos em 1968. A minha mãe já tinha televisão e o meu filho queria estar em casa da avó para ver televisão. Quando a televisão chegou a nossa casa foi ele quem assinou o papel da entrega: passou a ser a televisão dele!" No Diário Popular e depois no Século Ilustrado, mostra um particular interesse pelas histórias que revelam a violência sofrida por mulheres, crianças e velhos. Investiga a morte da Maria Isabel, uma menina que os jornais diziam ter sido devorada pelos lobos numa terra onde, afinal, não existia lobo algum. Da Guilhermina, que trabalhava no Parque Mayer, mas acabou a agonizar num apartamento da Reboleira. Do Amílcar, preso em Huelva, de onde escrevia cartas à mãe em que dizia: "Não quero morrer aqui em Espanha, mãe." E depois morreu.

Enquanto repórter anota os silêncios de quem sabe demais, deteta o jeito das mãos que fogem para os bolsos, o olhar que não olha, as frases que dizem tudo sem dizer nada… Em dois, três breves parágrafos, faz o retrato do caso. E o leitor vai seguindo-lhe as palavras como quem segue um detetive. Não é certamente coincidência que ela mesma, entre as muitas leituras que faz, reserve um espaço para os romances policiais (obviamente, o inspetor Maigret, de Georges Simenon, é referência obrigatória) e que à pergunta "O que teria sido, caso não se tivesse tornado jornalista?" responda como se essa fosse a conclusão óbvia: "Poderia ter sido investigadora na PJ."

Nesta fase da conversa, os nossos bifes já nos faziam companhia. Como quem cumpre um ritual, íamos cruzando as batatas fritas com o molho e eu faço-lhe a pergunta mais que previsível, mas obrigatória – "Dos líderes que conheceu, quais é que a impressionaram mais?" –, à qual ela, felizmente, não deu a resposta "chapa 3".

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"Julga-se o valor das pessoas pelas vitórias. Isso pode não querer dizer nada"

Voltemos à pergunta sem imaginação, mas que no caso era imperdoável não fazer: "Dos líderes que conheceu quais é que a impressionaram mais?" E perdoe-se a falta de imaginação da pergunta com a destreza da resposta: "O Savimbi foi um deles. Foi uma das pessoas mais inteligentes que eu conheci. Era um homem que, sendo muito feio, era um sedutor. As pessoas aderiam facilmente a ele. Era um líder. Ele tinha um projeto para Angola que ainda hoje eu penso que era um bom projeto. Ele dizia que a riqueza de Angola não é o petróleo. A riqueza de Angola é a agricultura. Ele dizia: ‘E se um dia nós [da UNITA] conseguirmos fazer um governo, eu quero ser ministro da Agricultura." Fala de Angola e escutam-se-lhe expressões que confirmam a "grande paixão por África" que marcou a sua vida: "Portugal traiu o Acordo de Alvor. O que estabeleciam os acordos de Alvor era que a passagem de poder se faria através de eleições que seriam preparadas pelo governo português." E além de Savimbi que outros líderes a impressionaram? Um nome é óbvio: "Mário Soares." O outro surpreende-me: "Cohn-Bendit." Talvez porque tivesse detetado no meu olhar alguma estranheza quando escuto o nome do dirigente estudantil do Maio de 68, acrescenta: "Julga-se muito o valor das pessoas pelas vitórias que elas conseguem no imediato. Por exemplo, se elas ganham ou não umas eleições. Mas isso pode não querer dizer nada. Eu acho que o Sá Carneiro mudou muito mais este país ao aparecer publicamente com a Snu sem ser casado com ela do que com a vitória nas eleições."

Mais do que com a vitória da AD?, pergunto-lhe. A resposta chega com aquele embalo assertivo que a voz lhe ganha quando está convicta da razão do que diz: "Sim, do que com a vitória da AD. Isso com certeza. Até talvez mais do que com a vitória de qualquer outro partido porque com essa atitude ele mudou a sociedade. A reação às pessoas que viviam juntas sem serem casadas era muito violenta. Cortavam-se relações. Eu passei por isso. Quando eu me separei do meu primeiro marido, o meu pai proibiu-me de ir a casa dele. E era um homem que do ponto de vista político era considerado um democrata. A partir daí, foi uma coisa muito repentina, as pessoas passaram a viver juntas e já não havia escândalo algum. Foi uma mudança."

"Revolução, meu amor"

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Enfatiza a palavra mudança como quem sublinha um tópico a desenvolver. Sim, é certo que cultivou a mudança e que lutou politicamente por ela ao envolver-se na contestação a Salazar e a Marcelo Caetano, protagonizou-a nas opções da sua vida pessoal, mas não resisto a chamar-lhe a atenção para algo que sempre me pareceu evidente na sua personalidade: a Maria Antónia promoveu revoluções na sociedade, mas cultiva as rotinas e a ordem no seu quotidiano. Parece concordar com esta observação que eu lhe faço e até a vai reforçar ao longo desta conversa: "Eu gosto de ter as coisas sempre no mesmo sítio. Uso a mesma marca de cosméticos desde os vinte e poucos anos. Quando compro uma peça de roupa – agora não compro, vou adaptando com uma modista que tem uma paciência de Job – não uso logo..." Mas rapidamente pega na palavra revolução, que parece ter ficado a pairar entre nós, e explica qual é a sua revolução, aquela a quem dedicou um livro simbolicamente intitulado Revolução, Meu Amor: o Maio de 1968. "Eu acho que o Maio de 68 foi extremamente importante. A vida que nós fazemos hoje, a revolução nos costumes, o esvaziar de certos preconceitos… Isso é que é a verdadeira revolução."

A pergunta impõe-se: acha que o Maio de 68 foi mais importante que a [revolução na Rússia] de Outubro de 1917? "Sem dúvida. O Outubro de 1917 acabou por ser um enorme fracasso. O Maio de 1968 ainda hoje se manifesta. Mudou a sociedade. Não basta mudar as leis. É preciso mudar a sociedade. Nós temos um objetivo na vida que é ser felizes e sem liberdade não há felicidade."

Mas será que a jovem feminista que viu acontecer o Maio de 1968 nas ruas de Paris esperava ver décadas depois nessas mesmas ruas tantas mulheres usando o véu islâmico? "Não. Não era isto que eu esperava. Eu acho que a nossa civilização está a acabar. Esta época tem muito a ver com a queda do império romano."

Será desilusão ou perplexidade que intuo no tom da sua voz? Não sei e nem vou ter tempo para saber porque quando lhe pergunto – E assistir à recuperação nostálgica do tempo em que as mulheres estavam em casa, esperava ou não? –, num daqueles apartes que marcam as conversas com a Maria Antónia e que as tornam em momentos singulares, em vez de me responder diretamente começa por recordar um conselho que a avó lhe deu – "Ela disse-me: tu nunca serás livre se não tiveres o teu dinheiro" – e depois explica porque, um dia, um lavagante a fez sentir-se livre: "Eu fui à Checoslováquia – quando ainda havia Salazar e a Checoslováquia... – a um congresso internacional de arquitetos (antes de começar a colaborar no Dário Popular trabalhei no sindicato dos arquitetos). Não me pergunte porquê, mas eu tinha uma paixão por ver Praga... Não sei se por causa de Kafka?! Talvez… Resolvi regressar por Viena. Mas depois do convívio com muita gente em Praga, fiquei sozinha em Viena... Não gostei da experiência, acabei a ir para o aeroporto e a meter-me no primeiro avião para Lisboa. Quando cheguei, telefonei a um amigo meu e disse-lhe: ‘Olha, eu quero ir comer um lavagante!’" Aqui, os mais distraídos podem perguntar: o que faz um lavagante no meio desta história sobre liberdade? Tudo. A liberdade de dizer "Eu vou comer um lavagante" sem o filtro do parece mal e da modéstia que constrange as mulheres e as levava (e leva) a não pedir o mais caro mesmo quando têm dinheiro para o pagar.

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Entretanto, à nossa mesa no Café Império já tinha chegado não um lavagante, mas sim a sobremesa que nos tempos que correm é tão escrutinada quanto o lavagante do passado: porque tem gordura, porque o açúcar faz mal, porque não é artesanal…

A Maria Antónia fala dos seus verões algarvios, daquele cão abandonado que tanto a impressionou, da Biblioteca Ana de Castro Osório, a que entregou muitos dos seus livros, da lei das rendas de que discorda e do euro que acha que contribuiu para o aumento do custo de vida… Mas eu tinha ainda uma pergunta para lhe fazer antes de finalizar a entrevista: nunca pensou trocar as causas pela política? "Não. Os políticos não podem dizer a verdade. Ou não querem dizer a verdade. A política estrita não me atrai absolutamente nada. As ideias, sim." Lá fora a tarde caía. Os pássaros já se ouviam para os lados da Alameda. No Império continuava a entrar gente (será que já vinham para jantar?). A entrevista acabara. A conversa com a Maria Antónia, essa, nunca chega ao fim. Apenas se retoma a cada reencontro.

 

Foto: Pedro Ferreira 1 de 2
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Foto: Pedro Ferreira 2 de 2
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