10 anos de Corações com Coroa. “Depois de um não, as mulheres dão-nos força para no dia seguinte termos ainda mais garra.”
Catarina Furtado e Ana Magalhães, fundadoras da associação sem fins lucrativos que se destina a ajudar mulheres e meninas em situações de desigualdade social, celebram 10 anos de conquistas. De bolsas de estudos a consultas de psicologia, são mais de 5000 mulheres apoiadas.
Foto: DR13 de maio de 2022 às 18:03 Rita Silva Avelar
Pela associação Corações com Coroa, com sede na Junqueira, em Lisboa, já passaram centenas de mulheres que viram carências básicas resolvidas, mas também sonhos concretizados. Fundada por Catarina Furtado, Ana Magalhães e Ana Torres (que passou a voluntária), sente-se na voz destas mulheres a emoção de carregar às costas tanto as conquistas como as responsabilidades de uma década de trabalho.
É um motivo de orgulho imenso poderem afirmar que levam para a frente esta instituição há 10 anos. Qual é a sensação?
Catarina Furtado: A associação nasce fruto da minha experiência como Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População. Desde sempre que, para mim, foi muito claro que quem mais sofre mais no mundo são as meninas, as raparigas e as mulheres, que têm os seus direitos constantemente negligenciados, e que são constantemente deixadas para trás. Num país desenvolvido como o nosso, a ideia [da associação] foi sempre contribuir para a igualdade de género. Através da educação ou do acesso aos cuidados de saúde, queremos fazer com que as mulheres tenham poder de escolha e tenham as mesmas oportunidades que todos. Ao apoiarmos uma mulher, estamos sempre a apoiar uma comunidade. São 10 anos de muitas conquistas, sem dúvida.
Ana Magalhães: A Catarina costuma dizer que acredita que as pessoas vão com ela, realizar os sonhos, que ela sonha. Começou tudo aqui na Junqueira. Começou com umas t-shirts, com os nossos filhos a desenhar príncipes e princesas, os logótipos e os nomes, e é muito engraçado que nós nos lembramos mesmo de todos os momentos que vivemos aqui. Uns com mais dores de barriga e medos, outros com as alegrias, e os dias em que percebemos que tudo acontece quando nos motivamos. Ao fim de 10 anos, percebemos que esta revolta feminista fez todo o sentido, e nós acreditamos mesmo todas nisto. Eu vinha da área empresarial, e sentia que era injusto que uma engenheira, tendo o mesmo currículo que um homem, ganhasse 30% menos que ele. Hoje conseguimos fazer a diferença.
CF: É uma associação feminista com homens e mulheres. Na altura, foi muito difícil começar, eu, a Ana Magalhães e a Ana Torres (que agora é voluntária), tivemos muitos desafios. Uma das coisas mais difíceis foi traduzirmos esta ideia para potenciais financiadores, patrocinadores e doadores - que são distintos - de que havia a necessidade de criar uma associação que apoiasse só raparigas e mulheres. Sendo que o "só" é absolutamente relativo.
O que é que a Corações com Coroa hoje fornece a estas meninas e mulheres?
CF: Fazemos atendimento gratuito de consultas, na área do serviço social, psicologia, apoio jurídico, saúde oral… E constatamos muitas vezes que quando uma vida de uma mulher é reerguida, ou porque a nossa assistente social conseguiu uma casa, ou porque alguém conseguiu um emprego, tudo à sua volta se ergue. Ao longo destes anos todos já demos 34 bolsas de estudo. Mas sim, o mais difícil foi convencer os financiadores de que o alvo beneficiário seria só o sexo feminino. Tivemos de mostrar as provas dos resultados internacionais para mostrar este suporte e o investimento ser certeiro.
AM: Quando se fala neste apoio, fala-se na família inteira, como diz a Catarina. Muitas vezes até nem é porque uma rapariga tem filhos, mas porque tem irmãos mais novos, ou pais a seu cargo. São os tais cuidadores informais. Às vezes há situações pequeninas, como quando as pessoas precisam de tratar dos dentes, voltar a dar um sorriso faz com que a autoestima melhore para se voltar a procurar um emprego, por exemplo. Um sorriso muda uma vida. E as questões da saúde mental e da autoestima são transversais. Às vezes levamos um não, mas estas mulheres dão-nos a força para no dia seguinte termos ainda mais garra.
Qual é o maior desafio de se sustentar uma organização não governamental?
CF: Não há lucro. O investimento nas pessoas é o lucro. É ver aquela vida reerguida na sociedade, o que dá um retorno à própria sociedade. Nós, apesar de tudo, e sendo eu uma figura pública com alguma facilidade, temos conseguido chegar a bons financiadores apelando à responsabilidade social. Em muitos países, a componente de responsabilidade social nas empresas é gigantesca, o que permite um equilíbrio entre isso, o apoio dos Governos e dos indivíduos, e ainda o trabalho das ONG’s. Em Portugal ainda estamos a educar as empresas de que a responsabilidade não é uma caridade, é uma gestão inteligente e empática dos seus lucros. É a única maneira. Neste sentido, ao longo de 10 anos, temos um único projeto em parceria com o Governo, com a Secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, que é o "CCC vai à Escola" onde vamos à escola apelar à temática da violência no namoro, e em breve do racismo, em forma de teatro. De resto, a associação vive de batermos às portas e de convencer as pessoas a confiar na nossa transparência financeira. Nós trabalhamos de forma horizontal, de proximidade e com a promoção de autonomia.
Sei que tiveram de colmatar outras carências sociais, na pandemia…
CF: Temos uma parceria com a Missão Continente e com o "CCC Café", em colaboração com a comunidade, para doar alimentos. Mas não é esse o nosso core. Queremos fazer a diferença quando as pessoas têm tudo, mas lhes falta aquele empurrão. No caso da Jéssica Silva, por exemplo, foi nossa bolseira, tinha tudo o que era precisamente importante: o talento, a capacidade de trabalho, o amor ao futebol, só precisava desse empurrão.
Foto: DR
As pessoas ficam ligadas a vocês, ao longo dos anos, como uma grande família?
CF: Diríamos que isso acontece em 99,5% das vezes. Elas têm uma grande ligação a nós, e sobretudo com as técnicas (psicólogas, dentistas...).
AM: Quando estas mulheres se começam a relacionar connosco, ligando-se com o lado afetivo, dizem-nos logo que aquilo que querem, quando terminam os estudos, é fazerem voluntariado e apoiarem. Quando há 10 anos fundamos a associação, começámos a perceber que uma instituição é uma empresa, com oito postos de trabalho, segurança social, avenças com advogados, psicólogos, cafetaria… tudo. Criámos uma marca, desde o manual de normas à legislação. Chegámos ao fim destes 10 anos muito emocionantes.
Há muitas burocracias envolvidas nesta associação, que por vezes vos exasperam?
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CF: Quero dizer uma coisa importante. Nós, hoje, não podemos viver o capitalismo sem pensar a longo prazo, sobretudo na área social. O tempo do capitalismo não é o tempo das pessoas. E nós temos de dar tempo às pessoas de se reerguerem. Por exemplo, pedem-nos permanentemente estudos de impacto - que custam muito dinheiro - mas é preciso esclarecer que esta realidade é muito incompatível com o tempo das pessoas.
AM: Em 10 anos, podemos dizer que atendemos em média, por dia, uma pessoa. Mais de 5000 atendimentos em 10 anos, são 580 mulheres por ano, 44 por mês, em média. Se pensarmos que foram casos de sucesso, e atrás deles vêm famílias, é avassalador.
O que esperar da reunião de sábado, 14 de maio, que celebra este 10 anos?
CF: Nós demos-lhe o tema de "Solidariedade afetiva, solidariedade efetiva". E tem um propósito grande. Porque se refere à nossa ação horizontal, na atuação, colocando-nos no lugar da pessoa, e é afetiva porque é próxima, porque não abandonamos as pessoas, mas queremos muito vê-las ir embora com autonomia. Decidimos homenagear as centenas de mulheres que tocaram as nossas vidas, a partir do momento em que tocámos as delas, e todos aqueles e aquelas que são nossos cúmplices, sejam empresas ou voluntários. Queremos que esta festa inspire todas as pessoas que vão estar no Teatro da Trindade, e aqui é bastante pessoal porque o Teatro é gerido pelo Diogo Infante, que é como se fosse meu irmão. A base da Corações com Coroa passa muito pela Arte, é uma ferramenta muito importante. Já fizemos 31 tertúlias no café com as temáticas dos direitos humanos, com a iniciativa do "CCC Café". A Arte é uma ferramenta que resgata, atenua, e inspira à ação. Vamos ter música, com artistas como o Miguel Esteves, o Dino de Santiago, o Tiago Bettencourt e a nossa convidada de honra, Prémio Camões 2021, Paulina Chiziane. Ela traz a força e o apelo das mulheres, é uma ativista, veio de propósito, e eu mal posso esperar para conversar com ela.