A arquitetura em harmonia com a natureza no Spatia Comporta
Fizemos check-in no luxuoso hotel alentejano e conhecemos os atributos únicos deste espaço, onde a leveza se funde com as paisagens.
Quando inaugurou a grande exposição que fazia a súmula do seu trabalho, em 2012, Christian Louboutin deixou escapar em entrevista que a sua visão do mundo ia muito para lá da moda e dos célebres stilettos da sola vermelha que ficaram na memória colectiva. No centro da exposição no Design Museum de Londres, um carrossel de objectos mostrava outras facetas do designer de sapatos mais famoso do mundo. Como todos os criativos, Louboutin é muitas coisas, e também é arquitectura e interiores, viagens e os objectos que traz consigo e espalha no seu atelier em Paris. Por isso, espreitar o seu hotel em Melides, mesmo sem pernoitar é uma viagem sensorial e divertida.
O Vermelho integra-se na aldeia de Melides como se estivesse estado sempre lá. Visto de fora, ninguém diria que atrás daquelas paredes caiadas a sul estaria um oásis de luxo, já que a calma e o sossego foram o que Louboutin adorou em Portugal. Comprou casas de férias e pensou a construção do seu hotel Vermelho num terreno que estava maltratado e abandonado, como tantos pelo país fora. Consta que o edifício do Vermelho era “uma casinha onde se trabalhavam madeiras”, e antes disso, “uma zona onde se largava lixo, por ser no fim da aldeia.” Quem o diz é Vera Gonçalves, a diretora do hotel, que geria casas de multimillionários na América Latina quando conheceu Louboutin, em 2017. E ele andou atrás dela para a trazer para a sua aventura. Quis “construir como se fosse uma casa, a sua visão de casa de família, o que poderia ser sempre uma opção “caso não gostasse da hotelaria”. Foi tudo feito de raiz. “Quando lhe perguntam o que era antes ele responde “nada”, e é o melhor elogio que lhe podem fazer”, avança enquanto abre alas pelos recantos do hotel, com inúmeros detalhes a descobrir, porque cada quarto é um pequeno mundo, são apenas 13 quartos e não há dois iguais. A 31 março de 2023, o Vermelho entrou para a exclusiva comunidade Relais & Chateaux.
Tudo começa no pátio da entrada, uma hospitalidade do sul que aqui se reforça com detalhes manuelinos aplicados em estuque na fachada, da autoria do italiano Giuseppe Ducrot. A visita começara no lounge do hotel, depois na sala de estar comum, “como uma sala para a família”, onde se bebe um copo preparado no grande bar que é nada mais, nada menos, do que um altar da Semana Santa de Sevilha, feito à mão pela oficina Villareal, com banho em prata. Mesmo ao lado, estão quadros do espanhol Carlos Bustamante, entre várias peças do coleccionador Louboutin, “quase todas vêm da sua coleção privada de arte e mobiliário vintage, peças que ele guarda em armazéns e depois escolhe colocar aqui.” Vemos poltronas de Pierre Yovanovitch e uma coleção de cadeiras très Paris, em palhinha, Maison Gatti, como portas em ferro feitas à mão a recordar as franjas das jaquetas dos toureiros de Sevilha, “usadas para distrair o touro”. E vamos encontrando mais muito mais: peças venezianas do século XV, mobiliário do norte de África, candeeiros e castiçais, objectos em cortiça de Melides, cerâmicas e arranjos florais feitos pela loja de Louboutin, ao lado do hotel, Vida Dura, que promove o comércio dos artistas locais. Todas as referências são misturadas sem preconceitos, um maximalismo evidente que arrisca e toca a linha vermelha, sem nunca a ultrapassar. Algumas peças parecem saídas de um filme de Tim Burton ou de David Lynch. Um designer de sapatos é sempre um fetichista.
O hotel abraça o seu próprio jardim, outro amor de Louboutin e de muitos criadores franceses, a começar por Christian Dior. É uma alegria exuberante de flores, canas vermelhas, como é natural, plantadas propositadamente para um efeito dramático, com algumas amarelas pelo meio “que deixámos ficar porque foi uma escolha da natureza”, diz-nos Vera. Mas também vemos dálias e um jardim selvagem “que era tão selvagem que agora estamos plantar com canas vermelhas e hibiscus”, ri-se. Também vemos uma pequena horta e árvores de fruto laranjas, alfaces, cebolas, espinafres, acelgas, meloas e melancias, figos, nêsperas, medronhos, o farm to table que o luxo hoje já não dispensa. O cheiro a flores é sempre presente.
Ao desenhar o hotel, Louboutin chamou artistas seus amigos e quis dar-lhes espaço. O Vermelho é uma casa de e para amigos. A começar pela arquitecta Madalena Caiado, que já o ajudara com a sua casa em Lisboa. “Ele imaginou tudo e ela desenhou, entendem-se”, conta a diretora. Mantiveram a janela e os ferros sobre a porta principal da recepção, mas o resto é tudo novo. E o designer deu-lhe carta branca para decidir, unilateralmente, uma parte do hotel, e ela desenhou a torre que irrompe ao fundo, como que a marcar presença e observação do mundo, um dos grandes trabalhos da arquitectura do espaço. É no recanto dessa torre que encontramos Timóteo, um terapeuta especializado em Ayurveda, que aqui personaliza tratamentos e massagens com óleos perfumados. Também chamou a amiga de longa data Carolina Irving, que o aconselhou na decoração e nos têxteis, e entre outros escolheu as mantas alentejanas da Fabricaal, ou Patricia Medina, que propôs diferentes artesãos ibéricos. Num verão recente, Louboutin pensou Greekaba, uma colecção de carteiras e acessórios inspirados na civilização grega, e com Konstantin Kakania pintou uma das suites do Vermelho. O enorme lustre da recepção é do Klove Studio, de Prateek Jain e Gautam Seth, que utilizam uma tradicional técnica de sopro de artesãos da Índia, e móveis e iluminação inspirados na Natureza de Nicolás Cesbro, ou a cerâmica de Elisabeth Lincot, que alegra as paredes exteriores do hotel. E Louboutin? Está na varanda de um quarto, onde um anjo segura umas botas Louboutin, e as suas colunas manuelinas lembram os seus batons e os saltos de algumas sandálias.
Christian Louboutin pediu aos artesãos cada detalhe de azulejaria do Vermelho. O chão e as paredes do hotel estão revestidos a cerâmicas da Fabrica de Azulejos de Azeitão, em Setúbal, “Christian Louboutin esteve um ano a fazer estes azulejos de chão”, conta Vera Gonçalves. Na receção e no bar, os desenhos são mais próximos da tijoleira algarvia, em verde e encarnado fortes como a bandeira portuguesa. São feitos à mão, alguns com corantes naturais, e seguem as mesmas técnicas e temas europeus de há cinco séculos, decorados com desenhos de diversas proveniências do velho continente, dos países islâmicos e da grande China, esmaltados à moda hispano-mourisca do século XVI. E há um chão inteiro de um quarto que veio de um palacete português em ruínas. Também os tectos em madeira dos quartos foram feitos in loco por carpinteiros, assim como as camas embutidas, e algumas paredes foram pintadas à mão. As casas de banho são em mármore de lioz de Estremoz e as amenities são Kama Ayurveda, uma marca indiana “preferida de Christian”. O corredor dos quartos superiores é inspirado na capela de Alcáçovas e a nossa tradição das chaminés, “que ele adora e acha que os portugueses não lhes ligam nenhuma”. São sete no total.
Outro centro do Vermelho é, naturalmente, o restaurante, que quer ser uma experiência caseira. O Xtian é cozinha portuguesa, “quanto mais simples e natural, mais o Christian gosta”, explica Vera. “Ele não quer gourmet.” Só recebe hóspedes e os pratos são desenhados pela sua loja e produzidos pela Vista Alegre: “É a primeira e a última experiência do hóspede, é para nós tão fundamental como a exclusividade ou a privacidade”, explica a diretora. A Máxima adorou o tártaro de beterraba, as vieiras e o prato de peixe grelhado com arroz de marisco e tomate, com um molho de choco e piri-piri, mas consta que o prato de porco é o favorito do designer. As sobremesas são especiais, entre a mousse de café com gelado de pastel de Belém, o cheesecake de queijo de cabra com gelado baunilha e o fondant de baba de camelo com gelado de baunilha.
À mesa, a diretora deixa escapar que Christian Louboutin está a construir outro hotel “ao pé da lagoa”, o Vermelho Lagoa, criado a partir de um edifício de um hotel que foi embargado, espera inaugurá-lo em meados de 2026. A ideia é serem complementares, este com apenas 10 quartos, mas que se estica no spa, que será bem espaçoso, e uma piscina quase olímpica. Enquanto isso, acaba de inaugurar duas villas de luxo com piscina, La Salvada e La Maison des Bateaux, com a mesma personalidade colorida, vibrante e atenta às artesanias. Foram casas de férias de Louboutin, hoje aluga-as entre os 1.700 e os 2.200 euros por noite. Este amor à região já tem alguns anos, mas Louboutin conheceu Melides há 12, no regresso do hospital de Santiago, após um acidente que sofreu. Como outros franceses, encantou-se pela simplicidade e a autenticidade perdidas no seu país. Restaurou, então, uma cabana de pescador onde regressa todos os verões para desenhar os sapatos dos nossos sonhos. Vermelho porque é óbvio, um tributo à sua cor, mas porque se parece com “merveille”, maravilha em francês, e “vermeil”, a prata banhada com uma fina camada de ouro. O hotel tem um pouco de cada.