Portugal Pop no MUDE: quando o país descobriu a moda e a tradição
Ocupa um piso inteiro do MUDE, em Lisboa, e resume o melhor da criação de moda nacional, de 1970 a 2020, para ver até outubro. A Máxima foi recebida pela curadora e diretora do museu, Bárbara Coutinho.
Para um povo que sempre lutou contra a pobreza e o abandono das elites, amesquinhado numa cultura da modéstia, como pregava a missa e décadas de ditadura, não havia espaço para a fantasia. Mesmo para as meninas, sempre na sombra, adaptáveis ou obliteradas. Depois, no calor da revolução, a vaidade também parecia pecado, passou a ser vista como um atentado à inteligência e ao ativismo. Tudo parecia burguês e superficial num país à procura do seu lugar no tempo. Numa sociedade sem tradição de estilo, a modernidade fez-se pelas artes, o costume, e a moda caminhou com o seu tempo, foi uma importante forma de identidade e maioridade. E explodiu na década de 90 com toda a propriedade. Em Portugal Pop estão cerca de 30 designers de moda e oito figuras da cultura nacional que fizeram esta mudança. São os últimos 50 anos de roupa made in Portugal.


Quando a diretora do MUDE, Bárbara Coutinho, foi desafiada pela Casa do Design de Matosinhos a pensar uma pequena história da moda portuguesa, em 2019, enquanto o seu museu estava em obras, a também professora e investigadora quis trazer os temas da portugalidade e os saberes artesanais e tradicionais que palpitam nos nossos designers de moda. Logo à entrada, um casaco de Alexandra Moura, da sua coleção inspirada na ceramista Rosa Ramalho, tem pintado a branco nas costas, a lembrar-nos a famosa imagem de Kate Moss vestida apenas com um casaco de Vivienne Westwood: "Não é sonho nenhum". Porque a ceramista dizia que as suas peças, mais do que da sua imaginação, vinham da observação dos montes. Nesta frase também se lê a realidade de um país remediado, à procura de uma identidade, de um futuro. Mais tarde, Dino Santiago usou-a numa t-shirt da designer: "É a riqueza de pensarmos que as coisas não são estanques, nem separadas. A modernidade existe em muitos aspetos da nossa história e do nosso presente. Saibamos nós olhar e interpretar e recriar e aprender, para não cometer os mesmos erros com as mesmas soluções", diz à Máxima.

Não quis apresentar uma leitura cronológica, mas começar com um vídeo de Simone Oliveira a cantar a Desfolhada, no Festival da Canção, em 1969, e as criações de Maria Thereza Mimoso, "um vestido verde de mangas largas e compridas que deixavam viver muito bem os braços, e uns brincos de filigrana. E a dizer, com toda a força, 'quem faz um filho, fá-lo por gosto'. Uma voz de liberdade e afirmação feminina no tempo da ditadura". Nem por acaso, mais à frente, encontramos o vídeo Quase Dança, de 2020, onde Cláudia Pascoal usa filigrana, xailes coloridos do Minho ou a croça de palha: "Entre estas duas mulheres há um percurso que se desenvolve em temáticas principais que mostram, para depois debater, as características que foram sendo construídas como parte da identidade e da memória coletiva. Trouxe a esta exposição um entendimento de que a identidade, a memória, o património, a história e a cultura são conceitos que nós estamos sempre a reconstruir, a interpretar e a dar novos significados".

Encontramos símbolos e a iconografia portuguesa interpretada no olhar de diferentes gerações de designers de moda. Começou por investigar a "pouca bibliografia que ainda temos", e procurar as peças em arquivos como o da ModaLisboa ou o do Centro Português do Design e nos ateliers, falando diretamente com cada criador. E com figuras da cultura pop ainda vivas. É impossível falar de moda em Portugal sem considerar o grande contributo da música e dos seus artistas. Dos já referidos, à nossa "primeira grande diva, à escala planetária", Amália Rodrigues onde há "toda uma construção de imagem forte e cosmopolita, uma enorme sensibilidade para a cor e para a escala, uma imagem muito sofisticada que vai suportar todas as escolhas ousadas que ela foi fazendo durante a vida, naquilo que cantava e na forma como cantava. Um símbolo que une gerações e aproximou diferentes classes sociais", por isso o seu legado está um pouco por todo o lado, de peças suas às desenhadas em sua honra, de Nuno Baltazar a Nuno Gama, dos Storytailores aos Marques'Almeida. "Há aqui uma identificação Amália-negro integral, negro integral-fado, fado-saudade e melancolia-Portugal". E tudo isto se transporta para Teresa Salgueiro, ou para Mísia em vestidos Ana Salazar e Sybilla, a irreverente do fado, "na forma de vestir, nos penteados e como interpreta novos autores. Vai ser uma mulher que encarna, claramente, um espírito livre".

A artista Joana Vasconcelos tem um recanto com os criadores que a vestem, Lidija Kolovrat, Alexandra Moura, Dino Alves e Filipe Faísca, e lá está a sua Barbie em Storytailores, como estes a vestiram para a inauguração da sua exposição em Versalhes, inspirados em modelos de Marie Antoinette, mas com rendas portuguesas cosidas no corpete. "Se há figura nas artes, sempre polémica, que trabalha sobre vários arquétipos ou motivos tradicionais, e discute a relação entre as artes e o artesanato, o único e o múltiplo, é ela. Todas estas questões estão presentes na exposição." Também está a nossa relação com o mar, o barroco, Lisboa e o fado, o azulejo azul e branco e a calçada portuguesa, as sardinheiras e os corvos, Fernando Pessoa e Sofia de Mello Breyner, "o amor de [D.]Pedro e Inês [de Castro], um casal pop", a rainha Santa Isabel e o milagre das rosas. E a nossa relação profunda com a ruralidade e com a religiosidade, sempre revisitadas pela moda. Estão na t-shirt de Nuno Gama, que reinventa a camisola poveira e no vestidos em seda estampada de Dino Alves, na túnica-almofada de Filipe Faísca, que lembram as almofadas que decoravam todos os sofás portugueses, e nos seus casacos feitos das tradicionais mantas de papa, que Alexandra Moura também trabalhou maravilhosamente. Estão nas cruzes de Nuno Gama ou de Nuno Baltazar e, de forma mais conceptual, em Miguel Flor, inspirado nos párocos da aldeia e nas figuras monásticas. "Essas memórias vão-se transmutando, umas vezes são vistas mais literalmente, outras, como em Alexandra Moura ou Lidija Kolovrat, são fruto de uma relação com as emoções, as memórias afetivas."

Também há galos de Barcelos e corações de Viana, xailes, capotes e as sete saias, um imaginário popular revisitado pelos criadores, como Dino Alves e, mais recentemente, por Joana Duarte da Behén, que tem vindo a fazer uma pesquisa fantástica das artesanias nacionais e recuperado várias delas, enquanto dá nova vida aos enxovais das avós. Bárbara Coutinho sublinha que foi curioso surgir nas conversas, "como um rio," a forte presença feminina na passagem da tradição e da cultura, referências que chegam através das mães e das avós e das tias, ou uma situação vivida durante a infância, temos uma sociedade ainda muito alicerçada na mulher como esse pilar da família e da passagem do conhecimento e das raízes."

Num vestido e num macacão estampados de Luís Buchinho, está o 25 de Abril, os cravos e as espingardas. "E, no momento em que quer refletir sobre uma certa perda de referências da cultura, por pressão do turismo, e os problemas da gentrificação das cidades, vai buscar os naperons da família e fazer saias e blazers, nesta vertente mais pessoal", aponta Bárbara Coutinho. Assim como Maria Gambina lança a questão de "voltar a casa", e recorre ao tapete de Arraiolos, cuja histórica presença é conhecida nas casas senhoriais portuguesas, "uma reflexão na primeira pessoa do singular: eu nasci neste lugar, tenho esta educação e esta relação com o mundo, o que gosto e não gosto, as minhas referências e vou refletir de uma forma mais individualizada, mais maturada. É essa riqueza da tradição e da cultura, independentemente de como podem ser entendidas, mas vistas como algo vivo e dinâmico. E temos de perceber como foi lida em determinados momentos e contextos históricos, e continua a ser, porque estamos a voltar a momentos onde estes conceitos voltam a ser difíceis de ser debatidos, mas devem ser olhados como um manancial de aprendizagem, de interpretação, de crítica, de reinvenção. E esse é o papel do museu."

São temas que estiveram sempre presentes, hoje como nos anos 80, em bandas como os Heróis do Mar que evocavam temas nacionais acompanhados de looks new romantic marcantes, "uma indumentária militar, punk e futurista", descreve a diretora do MUDE. E agora, à medida que fomos achando que estavam resolvidos, as novas gerações trazem-nos ao debate. Com cada vez menos peso e memória, "discutem e reinterpretam a influência da cultura mais rural, tradicional, popular ou vernacular, sem preconceitos e com uma criatividade muito rica e diversificada que funde fronteiras muito diversas, quebra dicotomias e até se apropria dessas referências para debater questões de leitura social", remata Bárbara Coutinho. O título Portugal Pop é pop de popular e pop de cultura pop, de procurar perceber que, "às vezes, é muito mais rico debatermos as fronteiras do que querer categorizar. É olhar para Felipe Augusto ou para Alexandra Moura e perceber como é que, por exemplo, as vindimas do Douro podem dar lugar a toda uma experimentação, que vai relacionar-se com o género e a identidade", aponta.
É evidente, neste apanhado da moda nacional, que o trabalho dos nossos designers tem vindo a privilegiar um regresso aos básicos, a procura de novos materiais, enquanto mergulham nos saberes tradicionais, cada vez mais, "com uma clara intencionalidade ecológica de ressignificação dos territórios e de reforço da coesão territorial nacional, de promoção das economias locais e com particular preocupação ambiental", sublinha Bárbara Coutinho. É o caso de Helena Cardoso, no anos 80 e 90, "no âmbito do trabalho da emancipação feminina, que foi para o interior de Portugal, contactar com aldeias quase desertificadas e falar com as artesãs, modernizar cortes e, ao mesmo tempo, partir da observação da Natureza, dos espigueiros, dos riachos, dos muros de pedra e encontrar inspiração num sentido absoluto de Economia. Para não haver desperdício. Tudo o que não era usado no vestuário podia ser aproveitado em perneiras, usando quase tintas nenhumas, por questões ambientais e tirando partido do tom natural de lã. É muito interessante esta proposta pioneira de tantas preocupações que hoje temos".


Por isso, estão representados os projetos relacionados com a sustentabilidade têxtil e da moda. É o caso da Behén ou de Constança Entrudo, da Pé de Chumbo, de Alexandra Oliveira, que criou um processo singular do corte da peça, "que vai sendo feita à medida que o fio se vai tecendo", ou de Daniela Pais que "recorre às tradições africanas para perceber que um único tecido, com três ou quatro cortes diferentes, pode ser multifuncional, ser vestido, saia, écharpe, top, e criando um debate sobre a moda e a sua sustentabilidade". Miguel Flor também trabalhou com desperdício, para pensar o género, e o designer e pensador do design Miguel Rios, juntou-se ao CPD num projeto que envolveu Paulo Cravo, Nuno Baltazar e José António Tenente, com um belíssimo capote alentejano, as sete saias reversíveis de João Tomé e Francisco Pontes, ou conjuntos em malha de Osvaldo Martins onde apetece viver: "Debate os arquétipos do ponto de vista conceptual para depois relacioná-los com a indústria, repensando-os e trazendo-os para a modernidade", sublinha Bárbara Coutinho, na procura de um sentido económico para moda.
Um canto é dedicado ao Greencircle, de Paulo Gomes, ex-diretor de moda da Elle e um dos fundadores da Moda Lisboa, que se juntou ao projecto be@t textiles, dirigido pelo Citeve e apoiado pelo PRR, que cruza os designers e a indústria na exploração de materiais, cortes, processos, e acabamentos que vão do tradicional ao mais verde e futurista, do fio de cortiça ao cânhamo, dos novos materiais inteligentes aos criados com desperdício.
O chão da exposição foi coberto de lã na sua forma mais pura. É uma matéria-prima natural, nacional e ecológica, pois provém da tosquia tradicional que os animais agradecem. "Contratámos uma empresa do norte que ofereceu estes desperdícios de lã, que vão voltar outra vez ao sistema de produção, é economia circular e desperdício zero. Em Matosinhos, a lã é a opção para a cortiça. Quisémos uma instalação económica e sustentável", uma preocupação presente desde a abertura do MUDE. Quando inaugurou, gerou alguma perplexidade não só por ter as paredes ainda descarnadas, como por utilizar materiais industriais e suportes em pinho para receber as peças da coleção. Assim como na exposição de 2024, a sua diretora usou suportes produzidos a partir das pedras, das madeiras e das portas que deixaram de ter o uso durante as obras do edifício, e que não deixou irem para o lixo. A envolver todo o cenário estão os sons recolhidos por Tiago Pereira, que tem dedicado a sua vida à recolha etnográfica de vozes, cantares e pregões portugueses que correm o risco de desaparecer, e que nos levam, a cada um dos visitantes, a visitar as suas próprias raízes e memórias.

A diretora do MUDE acaba de percorrer a exposição e diz-nos que a ideia foi continuar o esforço de observar a cultura portuguesa de design, que tem sido o grande motor do MUDE. Perceber quais as suas circunstâncias, se são sólidas, e o que é que, contribui para tal, política, social e economicamente. Não se cansa de sublinhar a força que a criatividade tem e "o ecletismo" da moda nacional e dos seus vários autores que acabam por relembrar-nos, nas sua coleções, do que é isto de se ser português. "Pareceu-me que eram substantivos para trazer para este espaço, há um cosmopolitismo que avança e que eu gostaria que fosse matéria para uma reflexão. Que tem vindo a ser feita, é certo, mas que muito pudesse contribuir, com outros parceiros, industriais, do design, com escolas, para debater a cultura da moda em Portugal. E qual é o papel económico, social, cultural, ambiental que, de facto, tem no nosso país. Um debate que tem de ser alargado e muito sério e a chegar a alguns pontos que nos permitam olhar para o futuro e dar alguns passos. Aquilo que, no fundo, a exposição pretende é essa viagem por este 50 anos e refletir o nosso presente." Por isso, vão ser organizados encontros e debates num programa paralelo do MUDE, "um questionamento para início de conversa".
