Mário Cordeiro: "As crianças têm emoções, têm sentimentos, depois têm uma dificuldade grande em entendê-los"

Criar o à-vontade para partilhar e utilizar figuras visuais são duas práticas importantes para ensinar a gerir emoções. Quem o diz é Mário Cordeiro, médico pediatra, autor e antigo professor na Faculdade de Ciências Médicas.

Foto: Pedro Ferreira
24 de outubro de 2024 às 10:49 Joana Rodrigues Stumpo

Gritos, lágrimas, espernear e brinquedos a voar pela sala - são sinais clássicos de um caso de birra. Em crianças mais pequenas, pode ser a expressão de um sentimento de frustração, zanga ou até mesmo de raiva. Para quem ainda tem um leque de vocabulário limitado e poucas ferramentas para o adequar ao que sente, exteriorizar uma sensação negativa pode passar frequentemente pelo cenário acima descrito. Mas mesmo as crianças que já têm os instrumentos para se expressar podem ter dificuldade em entender o que é o aperto que sentem no peito ou o nó na garganta aparentemente sem motivo. Para o pediatra Mário Cordeiro, médico e autor de vários livros na área da puericultura, é importante que as crianças se sintam seguras para partilhar e, acima de tudo, que as suas emoções sejam valorizadas e compreendidas. Por isso, aliou-se à Zippy para desenvolver várias iniciativas em que os Monstros das Emoções ajudam as crianças a abordar os seus sentimentos. Só assim poderão começar a entendê-los.

Foto: @Pedro Ferreira
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Esta altura do ano, com o início do ano letivo, pode ser stressante para as crianças?

Todos os eventos que vão acontecendo ao longo da vida, - se forem grandes eventos, claro - abanam sempre as pessoas. O ser humano é feito para reagir e às vezes precisa de algum tempo para digerir as situações, saber lidar com elas. No caso das crianças, é evidente que dado o desconhecimento que têm em relação à vida, não têm experiência, não têm anos de vida ainda e sabedoria para poderem perceber uma série de coisas. Se os pais decidirem mudar de casa, ou separar-se, ou mudar de escola, é uma decisão dos pais e as crianças vão com isso. Mas muitas vezes estas situações vão suscitar emoções com que as crianças ainda não sabem lidar. E no fundo não têm controlo sobre as mesmas, o que pode piorar [a situação].

As emoções fazem parte do ser humano e são realmente uma das expressões mais ricas e às vezes mais banalizadas e ignoradas. Podem ser muitas, boas ou más - raiva, agressividade, angústia e medo, também há emoções boas, alegria, felicidade, bem-estar, portanto é uma paleta muito grande e muito interessante.

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E no caso das crianças, durante muito tempo, muita gente, se não a maioria, considerava que uma criança ter emoções… Bom, se uma criança com seis ou sete anos fosse ter com os pais e dissesse que estava triste, a resposta provavelmente seria "mas tu sabes lá o que isso é, tu não tens idade para estar triste".

Havia uma tendência para desvalorizar?

Era um desvalorizar, com certeza, [era dizer] que não tens idade para ter emoções. Também se sabia pouco cientificamente e não se falava do assunto, e claro, a ignorância leva a isso. Hoje, de facto, percebe-se que as crianças são pessoas. A ciência, a psicologia, a pediatria, e a parte social levou a que realmente se reconheça que as crianças têm emoções, sentem as coisas, têm sentimentos, depois têm uma dificuldade grande em entendê-los.

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Nestas situações, o que é que os pais e os cuidadores podem fazer para ajudar a criança a entender o que está a sentir, e ajudar também a encontrar a forma mais adequada para o expressar?

Bom, depende um bocadinho da idade da criança. Se estivermos a pensar nos mais pequeninos, na idade dita pré-escolar, a expressão verbal, na maior parte dos casos, não é totalmente correta. Uma criança que não consegue expressar o que lhe vai na alma, e se não for bem recebida, sente-se mal.

Nessa idade, quando uma criança não consegue dizer o que sente, [pode ajudar] usar emojis - fazer uma galeria de quatro ou seis, porque é mais pictórico. É perguntar: 'como é que tu achas que estás?' e, depois, 'como é que tu gostavas de estar? Como é que eu te posso ajudar para saltarmos para aquilo que tu queres?'. Agora, isso não impede o reagir na altura, depois ajuda a continuar a conversa, já quando passou tudo, tentar perceber se o que aconteceu justificava que estivesse chateado, furioso ou triste. Ajudá-los a entender os sentimentos e as emoções, trabalhar para que se sintam melhor, e finalmente tentar ver se realmente aquilo que se passou justificava, e até pode justificar, uma grande frustração. Portanto, é ensinar a viver, e dizer que também é preciso olhar para as coisas boas da vida. Tem a ver com o temperamento das pessoas, mas também tem a ver com a gestão daquilo que nós valorizamos ou não. Se só olhamos para as coisas más, evidentemente que não nos vemos muito bem, não é?

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A materialização de uma emoção é uma tendência que temos vindo a ver, muitas vezes, em filmes e séries. O que é que esse tipo de conteúdo pode contribuir para um melhor processamento das emoções?

Até aos cinco ou seis anos, uma criança vive na área do concreto, na chamada idade pré-simbólica. Depois vai adquirindo, a pouco e pouco, uma noção dos símbolos e uma noção do abstrato. Aquilo que existe, existe. O resto é só teórico. E por isso, um filme mostrar que as emoções existem ali como homens e com formas, ajuda imenso a começar a dar o salto para perceber o que é que aqueles bonecos sentem e como é que reagem. E, depois, perceber que a própria criança pode incorporar um daqueles bonecos, aí sim já ganha essa capacidade de abstração.

E também pode ser impactante em crianças mais velhas?

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E até em adultos. Porque compreender emoções é compreender-se a si próprio. E compreender-se a si próprio é uma coisa muito complicada. Há muitos adultos que até preferem comentar as emoções dos outros do que refletir um bocadinho. A nossa própria sociedade não é uma atualmente muito reflexiva e contemplativa, é mais de ação.

É preciso que os pais e educadores em geral estejam disponíveis para ouvir, de facto ouvir os adolescentes, se eles quiserem falar. Uma pessoa, mostrando-se disponível, eles sentem-se à vontade para falar.

Foto: Pedro Ferreira

O princípio dos monstros das emoções da Zippy foi nesse mesmo sentido?

Há tantas emoções, algumas que se desdobram em novos graus - a tristeza pode ser melancolia, depressão, se formos esmiuçar nunca mais acabamos. É uma árvore gigantesca que nós sentimos no dia-a-dia. Portanto escolheram-se algumas e a ideia [na iniciativa da Zippy] foi construir vários suportes que permitam falar abertamente das emoções, como foi o caso do jogo de cartas. Através de situações que podem ser ambíguas, [proporcionar] a sua discussão.

Por exemplo, 'roubei um chocolate à minha tia'. Isto pode levar a vários sentimentos. Um chocolate é sempre uma coisa boa, não é? Se eu puser um chocolate à frente do resto, fico contente. Mas depois roubei, e isto eticamente não é muito correto. E como é que a minha tia se vai sentir? Triste. Até os pais podem provocar os filhos. Dizer assim: 'eu sentir-me-ia radiante só com a ideia de estar a comer um chocolate'. Há várias camadas. Por isso, a ideia foi pôr as pessoas, pais, educadores, e obviamente as crianças também, a falar, a expressar-se. E ajudar as próprias crianças a compreender que ter emoções não só não é errado, pelo contrário - é muito certo, muito desejável, porque no fundo nos faz humanos, que é o que nós precisamos um bocadinho mais de ser.

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