Marina Machete: “As pessoas põem a mulher trans num patamar de objetificação.”
A sua beleza e o seu carisma levaram-na à final do concurso Miss Universo. Representou Portugal na competição e uma parte do país reagiu à sua presença sem perceber a importância do diálogo que Marina Machete tinha começado. Fala de tolerância, aceitação e amor próprio.

No Bairro de Santos-o-Velho, em Lisboa, deverá abrir em breve uma biblioteca com os livros do escritor e bibliófilo argentino Alberto Menguel, no Palacete dos Marqueses de Pombal. Ele senta-se perto de nós enquanto esperamos por Marina Machete, numa esplanada. A primeira pergunta impõe-se quando Marina chega. Tens um livro favorito? "Sim, o Redefining Realness da Janet Mock, ela era editora de uma revista e fizeram-lhe o outing como mulher trans na própria revista, no livro ela tenta definir as ideias de realidade e de realeza."
A vida de Marina mudou quando, há mais de um ano, ganhou o título de Miss Portugal, representava Palmela, a sua terra natal, e ficou, mais tarde, nas 20 finalistas do concurso Miss Universo. Por ser uma mulher trans, a sua presença na competição ganhou uma dimensão política, fazendo-a sair do anonimato. Entre entusiasmo e ódio, as reações não foram unânimes, meteram-na no centro de um debate necessário em Portugal. Marina trabalha como hospedeira de bordo há cinco anos, vive em parte no estrangeiro. Tem passado longas temporadas em Lisboa, a agitar a representatividade ou a espalhar uma mensagem de tolerância com o seu discurso.


Na final do concurso Miss Universo perguntaram-te qual seria o teu superpoder, se tivesses um. Consegues lembrar-te da tua resposta?
Se pudesse ter um superpoder, seria o de criar um impacto duradouro na sociedade, disse algo assim. Na verdade, era já o que estava a acontecer na realidade, não era? Estava muito focada e não estava a perceber.
E dizias também que querias falar de minorias e pessoas que tenham conhecido a exclusão?
Sim, quero lutar por pessoas que sofrem qualquer tipo de discriminação. Porque tudo provém de uma estranheza e da ignorância, ou da falta de conhecimento e de uma falta de representatividade. As pessoas não conheciam uma pessoa como eu, então é normal que estranhem quando me veem ocupar um espaço que tradicionalmente era ocupado por uma mulher cis, tradicionalmente bonita, com um trajeto de vida tradicional e isso pode ser aplicado a inúmeras outras pessoas. Não só a uma mulher trans. Pode ser aplicado a uma mulher negra, a uma pessoa com deficiência, a uma pessoa imigrante.
O que significa essa expressão "a vida tradicional"? Tu tiveste uma vida tradicional, apesar de teres vivido episódios mais duros. Decides também assumir essa superação no concurso Miss Portugal. Vamos esclarecer algo, tu podes ser uma mulher trans e fazer parte do que se diz ser a "normatividade"?
Sem dúvida. Eu acabei por trazer alguma normatividade a uma comunidade trans. Não que eu diga que estou a trazer normatividade, digo que esse foi o feedback que recebi das pessoas à minha volta, até da comunidade queer. Até eu percebi o privilégio ao qual tive acesso. A oportunidade que tive, não é possível para a maioria das mulheres trans porque não teve uma família que as apoiou, ou não estudou. Ou não tiveram a possibilidade de se focar na sua saúde mental. Embora a minha vida não tenha sido perfeita, no meu mar de imperfeição, eu consigo ver que tive um privilégio até chegar àquele ponto. Isto mostra que não há perfeito ou imperfeito, não é? Todos nós somos um misto das circunstâncias e fazemos o melhor que podemos com o que temos.
Isso é muito poderoso. As pessoas estão sempre a projetar coisas umas nas outras?
Sim, a pôr numa caixa.
Mas a comunidade queer aceita bem essa ideia de normatividade, acho.
Sim, sem dúvida.
Tu tens um trabalho, pagas as tuas contas, és independente. É bonito poder existir nessa normatividade também?
Mostra a diversidade que existe mesmo dentro da comunidade queer, nós não temos de ser só uma coisa. Porque já somos postos dentro de uma caixa e dentro dessa caixa estamos dentro de outra caixa. Se calhar, daqui a 30 ou 20 anos, as pessoas já não vão ver isto desta forma.
Mas as pessoas põem a mulher trans num patamar de objetificação. Porque somos logo alvo de críticas sobre a nossa aparência, o nosso físico. É aquilo que é mais visível e que é o mais superficial, infelizmente. E depois, quando nós acedemos ao nosso lado feminino e tentamos explorá-lo, somos criticadas por isso também. (Diz em inglês.) "És condenada se o fizeres, condenada se não o fizeres."
Quando é que percebeste que a tua beleza era clássica? Podemos dizer que uma Miss tem uma beleza clássica?
Este ano desafiou-se muito a ideia do que é uma Miss. A Miss do Nepal foi coberta e houve quem desfilasse de burquíni. Na organização queriam desafiar os limites.
Onde estavas quando dois homens falaram de ti num telejornal em primetime. Diziam um ao outro que não queriam casar-se contigo? (Fazemos referência a uma conversa entre Miguel Sousa Tavares e José Alberto Carvalho.)
Estava sem acesso ao meu telefone. No concurso internacional fazem-te um "disconnect" para não veres o que se passa no mundo dos missólogos, na internet, etc. Quando se vai a um concurso destes, a concorrente está habituada a ser enaltecida naquilo que é o seu projeto social, o trabalho que fez, e a sua história de vida. Isto acaba por ser o que ela canaliza em palco para que a sua mensagem chegue ao outro lado. O fio condutor é a imagem, mas tu continuas a ser um ser humano.

E, portanto, quando te falam nisso, quando te contam essa bomba, o que é que acontece?
Eu desvalorizei completamente. Para mim não era saudável focar-me nesses comentários. Mas percebi o quão problemático aquilo era, não tanto para mim porque eu já tinha 28 anos. Tinha vivido e agora consigo olhar para trás e dizer: "Este foi o percurso que eu fiz." Isto são as opiniões que ouvi a minha vida inteira.
Pensaste na tua família, por exemplo?
Pensei. Até hoje, os meus pais mudam de canal quando os veem.
E eles nunca te pediram desculpa?
Teriam de pedir desculpa à credibilidade deles. Aquilo foi uma perda de credibilidade. Não acredito que discutir a aparência de alguém, em qualquer tipo de contexto, seja relevante. Num telejornal, supostamente, falas ao país sobre coisas relevantes... E eles pegaram na normatividade do que é ser uma Miss. E contrariaram com o facto de eu ser uma mulher trans, e de isso ser visto de uma forma negativa na sociedade. Acabaram por transformar aquilo num debate. Será que a minha existência era válida? Eu merecia ser amada? Como é que podemos normalizar uma conversa sobre o facto de uma pessoa merecer, ou não, ser amada? Como é que podemos pôr em causa outro ser humano? Nessa altura, pensei nas miúdas trans com 14 anos que podiam estar a ver o telejornal com os pais.
Quando eu tinha 14 anos, uma das primeiras coisas que a minha mãe me disse foi: "Pensas que algum homem vai casar contigo?" Se tenho uma mágoa com a minha mãe, é essa.
Mas a tua mãe também te defendeu muito?
Bastante, mas demorou. Porque ela não compreendia. Ao dizer-me isso, ela queria se calhar proteger-me, queria que eu tentasse refletir, porque ela não sabia que aquilo era mesmo a forma como eu tinha nascido. Que era irreversível.
Quem eram os teus ídolos, nessa altura?
A Lady Gaga foi mais no Secundário. Na altura em que sofria bullying foi bom poder olhar para uma pessoa que não era normativa e que tinha visibilidade. Ela, há pouco tempo, disse que nunca negou o rumor de ser uma mulher trans porque isso poderia ter um impacto negativo nos jovens trans.

Ela fazia-te acreditar que era possível?
Sem dúvida. Não era normativa, era excêntrica, levava tudo ao limite. A Madonna já tinha feito isso.
Consegues lembrar-te da primeira vez que saíste à noite? Uma saída em que te tenhas sentido livre, em Palmela, na tua adolescência.
Foi num aniversário, não me lembro exatamente qual... Sei que vesti uma t-shirt amarela e um blazer que tinha lapela em pele. Uma coisa meio andrógina, mas já era feminina... E calcei saltos.
Onde foste sair?
Setúbal. Mas era complicado, porque as pessoas reconheciam-me e sabiam quem eu era.
Na tua escola? Sentias que podias ser agredida a qualquer momento?
Ah, sem dúvida, sim... Eu não era vista por ser quem realmente era. Antes de alguém falar comigo, antes de eu abrir a boca, a pessoa já tinha uma ideia de quem eu era.
Já tinha um nome para ti?
Exatamente, e uma agressividade no olhar. E a energia era pesada. Portanto, eu sempre fui uma pessoa extremamente sensível à energia dos outros.
E o que é que aconteceu nessa noite?
Os meus saltos destruíram-se na calçada (risos). Eu amei.
Havia uma promessa de amor? Havia alguém de quem tu gostasses?
Não. Na altura, eu era o meu próprio amor. Estava a viver para mim. Naquela noite, estava à procura de mim mesma. E encontrei-me. Dancei das 11 até às quatro da manhã. Depois, o pai de uma amiga veio buscar-nos.
Ainda são amigas?
Sim. É uma vizinha, amiga de infância.
Ela seguiu o que te aconteceu neste ano?
Sim. As minhas amigas lembram-se muito das ilusões que tinha quando era adolescente. Naquela altura, eu estava a tentar encontrar uma porta, ou a tentar criar aquelas ferramentas para dizer aos outros que queria tentar algo diferente com a minha vida.
Na altura, já dizias que querias ser Miss?
Via mais os desfiles da Victoria’s Secret. Muitas mulheres conseguem relacionar-se com aquele expoente de beleza levado ao extremo. Havia corpos diversos, havia representatividade e era empoderador para as mulheres.

O que é que ainda te faz sonhar ?
Este último ano fez-me pensar em desistir ou fugir. Só que consegui alcançar algo que achava impossível. Vou encarar os próximos desafios assim. Decidi, muito recentemente, continuar a lutar. Ir contra a maré e, mesmo que não me aceitem, vou continuar a atirar-me para a frente. Decidi enfrentar estes desafios de objetificação ou de má interpretação.
O que faz a Marina Machete ter esperança?
Espero que mais mulheres e meninas trans possam sonhar de forma livre. Que tudo se torne real para elas, sem entraves. Não quero que se impeça uma pessoa de brilhar só por causa da falta de humanidade que existe na nossa sociedade.
Créditos:
Realização e Fotografia: Cátia Catel-Branco
Styling: Helena Assédio Maltez
Agradecimentos à Stivali Boutiques e Bijoux Anciens Four Seasons Lisboa
