Hollywood era delas
Cem anos antes do movimento #MeToo, o poder em Hollywood pertencia às mulheres. Realizadoras, guionistas e chefes de estúdio eram as mais bem pagas de toda a indústria, e as maiores estrelas. Mary Pickford, Lois Weber ou Frances Marion são hoje nomes quase esquecidos. Mas as vedetas e showrunners da atualidade deveriam lembrar-se deles.

O melhor estímulo para o movimento #MeToo talvez não esteja em acontecimentos recentes, mas no passado longínquo. Na antecâmara do sistema de estúdios que dominou o cinema norte-americano até aos anos 70 - e cuja base, apesar da entrada das empresas de telecomunicações, ainda vigora -, o poder pertencia às mulheres. Até meados dos anos 20, Lois Weber foi a realizadora mais bem paga de Hollywood, acima de todos os homens. Até à primeira metade dos anos 30, Frances Marion auferia o maior salário entre o total de argumentistas da indústria e Anita Loos estava entre os quatro ou cinco argumentistas mais prestigiados e requisitados. Durante quase uma década, Mary Pickford foi a artista mais bem paga dos EUA em termos absolutos e a primeira com um contrato de um milhão de dólares, antecipando Charles Chaplin em dois anos, com quem criou, em colaboração com o marido, Douglas Fairbanks, um dos primeiros estúdios, a United Artists. Como comentou um cronista (masculino) da época, "a Hollywood do cinema mudo era um Éden sem homens".
Até 1925, as grandes figuras do ecrã, as mais bem remuneradas e as que dominavam o box-office eram mulheres: a America’s sweetheart Mary Pickford; a extraordinária Lillian Gish, diva de Griffith e de Sjostrom; Clara Bow, a "It girl" de abrasiva sensualidade; Theda Bara; a icónica Greta Garbo; Renée Adorée; Mabel Normand; Alla Nazimova; e Louise Brooks, outro inesquecível sex-symbol, perdição de A Caixa de Pandora do mestre alemão G.W. Pabst. A presença gloriosa de Gloria Swanson também preencheu a década, apagando-se após a revolução do sonoro em 1927, um eclipse simbolicamente imortalizado em 1950 por Billy Wilder no seu Crepúsculo dos Deuses.

Para se ter uma ideia da predominância das mulheres, há um século, nos níveis empresariais e criativos mais elevados da indústria do cinema é preciso recordar que metade dos filmes produzidos durante o período mudo foram escritos por mulheres. A Universal Pictures, por exemplo, entre 1912 e 1919, tinha onze realizadoras a trabalhar para o estúdio em permanência, incluindo Lois Weber, Ida May Park e a francesa Alice Guy que dirigiram 170 filmes nesse período. Depois, durante seis décadas, entre 1920 e 1982, até Amy Heckerling realizar a comédia Fast Times at Ridgemont High, Hollywood não contratou uma única diretora para grandes produções. Mulheres atrás das câmaras durante mais de meio século? Contam-se pelos dedos de uma só mão. Mesmo as credenciadas, como Dorothy Arzner e Ida Lupino, trabalharam por sua própria iniciativa ou à margem dos projetos de vulto. Mas porquê?
No início dos anos de 1910, Hollywood era uma colina agreste, quase desabitada. O cinema dava os primeiros passos como atividade comercial de massas e tudo se fazia pela primeira vez. Nessa atmosfera de charneira, era necessário retirar o negócio dos ambientes machistas, proletários e bafientos dos nickelodeons, as salas primitivas. Tornava-se necessário atrair as mulheres. Tanto elas como os gestores masculinos depressa perceberam que 80% do público potencial da novidade artística e tecnológica era feminino (83% em 1927, segundo o Moving Picture World, então o maior jornal do métier). Pensou-se: quem melhor para criar histórias apelativas às mulheres do que elas próprias? É preciso recordarmo-nos que o direito das mulheres ao voto apenas seria legalmente consagrado no conjunto dos estados dos EUA em 1920.
Nesse contexto, Lois Weber foi uma revolucionária. Nascida na Pensilvânia, a atriz, guionista, realizadora e produtora depressa criou o seu próprio estúdio, numa fase histórica onde mais de uma centena destes se multiplicavam pelos vales da Califórnia, antes das majors (os chamados big five, Loew’s/MGM, Paramount, Fox, Warner Brother’s e a extinta RKO) tomarem conta da indústria, em finais dos anos 20. Presidente de câmara durante um curto período, precursora dos sindicatos de trabalhadores no cinema, Weber era um dínamo, a força centrífuga que sustinha uma corrente inorgânica, mas poderosa, de mulheres ao longo da cadeia de valor da futura fábrica de sonhos, essa Hollywood "com mais estrelas do que as há no céu". Dos estúdios originais, não menos do que vinte tinham administrações femininas. Weber foi a primeira mulher a ser admitida na Motion Pictures Directors Association e a única realizadora entre os 250 membros fundadores da Academy of Motion Pictures Arts and Sciences, sob a égide da qual os Óscares começaram a ser celebrados a 16 de maio de 1929. Recrutou centenas de jovens profissionais da escrita, da montagem, do som, da iluminação e dos décors para trabalhar, ombro a ombro, com os seus colegas masculinos - ou hierarquicamente acima destes -, incluindo a carismática guionista Frances Marion, contratada como assistente no verão de 1914. Marion viria a assinar o argumento de 325 filmes, vencendo dois Óscares em anos consecutivos por The Big House (1931) e pela história de The Champ (1932).

Segundo o livro e documentário Without Lying Down, de Cari Beauchamp, dedicado ao papel principal das mulheres na criação cinematográfica desse período, as argumentistas foram responsáveis por metade dos filmes com direitos de autor registados entre 1915 e 1925. A produtora de Lois Weber não era um conjunto de armazéns em território semidesértico, como seriam os backlots dos primeiros estúdios da Paramount ou da Fox. Sediava-se, antes, numa antiga mansão de jardins frondosos capazes de albergar um bom "chá das cinco" - ou sessões copiosas de bourbon entre as funcionárias; as que se arrastavam pelas noites de sexta-feira chamavam-se cat parties -, cujos interiores serviam de plateau para curtas e longas-metragens de um detalhado realismo, atentas a problemas sociais candentes como a violência doméstica, as desigualdades sociais, a prostituição e o aborto, denunciando a hipocrisia patriarcal vigente e colocando os censores de cabeça à roda. O público, maioritariamente feminino, adorava, agora em longas filas para encher os elegantes e luxuosos cineteatros inaugurados um pouco por todo o país.
A burguesia urbana e cosmopolita chegava ao cinema e, em larga medida, quem a atraiu foram Weber, Frances Marion (cujo salário não tinha rival entre os competidores masculinos, pois em 1927 ganhava 50 mil dólares por ano na Famous-Players Lasky) e a controversa Anita Loos. Outra argumentista de enorme talento, autora principal do guião de The Women, obra importantíssima dirigida por George Cukor, e da peça teatral que inspiraria Os Homens Preferem as Loiras, de Howard Hawks. Ou Mary Pickford, a individualidade mais poderosa da história do cinema, regente sem coroa, semideusa do ecrã - imaginem alguém com o sentido de gestão de Sheryl Sandberg (atual COO do Facebook), a capacidade de influência de Kathleen Kennedy (presidente da Lucasfilm) e o apelo no box-office de Nicole Kidman e de Angelina Jolie combinadas. Antes de criar a sua própria produtora, a United Artists, com Chaplin e o marido Douglas Fairbanks, de resultados comerciais fabulosos durante perto de uma década, Pickford assinou um contrato com o produtor Adolph Zukor, a 24 de junho de 1916, que lhe garantia total liberdade na escolha dos projetos, um salário de 10 mil dólares por semana e o direito a metade (!) dos lucros de cada longa-metragem que protagonizava com a garantia mínima de um milhão de dólares - hoje 18 milhões, caso adicionemos a inflação.
A partir de 1920, tudo começou a mudar. Nesse ano, o diretório de Los Angeles listava cem empresas produtoras na sua área metropolitana. Em 1927, restavam sete, o ano em que se estreou o primeiro talkie, a longa-metragem sonora. Enquanto os filmes ganhavam voz, as mulheres perdiam-na. O divertimento popular transformara-se num meganegócio, com a ainda minúscula Hollywood a chamar a atenção dos gigantes predadores de Wall Street. O cinema assumia uma escala demasiado grande para escapar ao apetite de controlo dos acionistas e investidores da Costa Leste ? todos, evidentemente, homens. Weber, Marion ou outra pioneira como Alice Guy-Blaché, fundadora, em 1908, da Solax Company, a maior produtora pré-hollywoodiana e séria candidata a inventora do cinema narrativo (La Fée au Choux, de 1896), viram-se obrigadas a ceder o palco aos movie moguls, os magnatas da indústria: Irving Thalberg, Jesse Lasky, Samuel Cohn ou o tirânico Louis B. Mayer, cujo assédio às atrizes sob contrato com a sua MGM, em controlo de todos os aspetos da vida privada das estrelas reluzentes, faria corar de vergonha Harvey Weinstein ou o malogrado Jeffrey Epstein.

Frances Marion ainda conseguiu fazer a transição para o sonoro. Mas Weber e Pickford eram mães e filhas do mudo. A sua linguagem desaparecera. Quando o livro de orientação profissional Careers for Women foi publicado, em 1933, a atividade "realizadora de cinema" tinha sido removida da lista. De acordo com um estudo da escola Annenberg de Comunicação e Jornalismo, da Universidade do Sul da Califórnia (USC), por cada realizadora contratada entre 2007 e 2017 foram recrutados 22 diretores masculinos. O ano de 2017 ficaria conhecido como o da eclosão do escândalo Harvey Weinstein, célebre impulsionador do novo cinema independente americano nos anos 90 e coproprietário dos estúdios Miramax, acusado formalmente de assédio sexual e de violação por dezenas de mulheres, cujo sofrimento impulsionaria os movimentos #MeToo (a partir de um tweet de 15 de outubro de 2017 da atriz Alyssa Milano) e TimesUp, autênticos maremotos no oceano já escarpado da indústria audiovisual um pouco por todo o planeta.
Dos cem filmes com melhores resultados globais de bilheteira em 2017, só 10% o eram escritos por argumentistas femininas. E apenas 8% foram dirigidos por mulheres. Pior: de acordo com Inclusion in the Director’s Chair?, um estudo conduzido por Stacy L. Smith ao abrigo da USC Annenberg Inclusion Initiative, caso somemos os 1.223 diretores à frente das 1.100 longas-metragens mais lucrativas, entre 2007 e 2017, apenas 45 tinham mulheres ao leme. Dessas, constavam duas diretoras afro-americanas, duas de origem asiática e uma latina. Se outros motivos não existissem, o peso avassalador dos números bastaria para a história de Lois Weber, Frances Marion ou Mary Pickford jamais ser esquecida.
(Re)ver as mulheres de Hollywood

Pouco a pouco, algumas das raras longas-metragens do período mudo, escritas ou dirigidas por mulheres, que não desapareceram (os filmes de então eram registados em película de nitrato, altamente inflamável e deteriorável) vão sendo recuperadas, restauradas e editadas em formato digital. Está disponível para compra online Pioneers: First Women Fimmakers (USA, 1911-1929), uma edição em Blu-Ray da Kino Lorber que permite descobrir uma geração praticamente desconhecida de cineastas femininas. Inclui não apenas algumas das obras mais importantes de autoras como Lois Weber, Alice Guy ou Mabel Normand, como trabalhos de realizadoras ditas ‘menores’, casos de Ida May Park ou Cleo Madison, com novas bandas sonoras de acompanhamento e comentários áudio. Para um primeiro contacto com Lois Weber (ver texto principal), a Milestone Films lançou em edições de luxo DVD e Blu-Ray três das suas longas-metragens: Shoes, The Blot e The Dumb Girl of Portici. Do trio, Shoes é obrigatória.

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