A poesia erótica de Maria Teresa Horta

Escritora, poetisa, jornalista, feminista. Espírito livre, apaixonado, irrequieto, contagiante. Maria Teresa Horta é a grande aventureira a primeira mulher a publicar uma antologia de poesia erótica no mundo ocidental.

A poesia erótica de Maria Teresa Horta
12 de setembro de 2012 às 06:53 Máxima

Olhos azuis enquadrados numa sala de paredes verdes. Maria Teresa Horta vibra. Não é raro ouvi-la dizer, em entrevistas, que escrever é voo e sobressalto. Também ela é assim. Fala como escreve, sempre apaixonada, intensa, generosa. Não podia, afinal, ser de outra forma, tal é a fusão entre a literatura e o seu próprio corpo – palavra que usa para se descrever, para se definir, para se eternizar. As Palavras do Corpo (Dom Quixote), a antologia de poesia erótica que acaba de lançar, foi o pretexto para uma conversa sobre escrita, livros, memórias e mulheres. Como anjo da guarda que é, a (sua) Marquesa de Alorna entrou incontáveis vezes na conversa, sempre sem pedir licença. É evidente que a autora ainda não se despediu da figura que a acompanhou nos últimos 14 anos da sua vida e que ganhou asas nas mais de mil páginas de As Luzes de Leonor (Dom Quixote), o romance que editou no ano passado, e que lhe mereceu a atribuição do Prémio Literário Dom Dinis.

Sempre preferiu os livros às bonecas. Como se deu essa descoberta, esse encantamento?

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Costumo dizer que nasci no escritório do meu pai. Aquele espaço era o meu grande fascínio. Aos 3, 4 anos, pedia à minha avó para me ler os livros, cheios de histórias, e ela acedia, mesmo respondendo que não iria perceber nada. Aos 5, aprendi a ler sozinha, ia pelos sons, perguntava pelas letras e ia fixando. Um dia o meu pai apercebeu-se da aprendizagem caótica que eu tinha e contratou uma professora para pôr ordem naquela desordem. Em 15 dias estava a ler e a escrever. Foi muito bom. Até então, dizia uma coisa que ninguém entendia: “Eu sou muda.” E o meu pai respondia que não, que se falava não era muda, mas eu insistia naquilo. De repente, deixei de o dizer e só me apercebi disso em adulta. Sabe qual foi esse momento? Quando aprendi a escrever.

Essas imagens da primeira infância estão surpreendentemente nítidas.

Sempre tive uma boa memória, mas fiz 17 anos de psicanálise, foi uma regressão muito grande. Tenho excelentes recordações da minha infância. A minha mãe levava-me todos os dias a passear no jardim do Palácio do meu tio José, o Marquês de Fronteira. Cresci ali e isso teve uma influência enorme na minha escrita. Há toda uma busca de beleza que creio vir dali. Depois, com a separação dos meus pais e a morte da minha avó, tinha eu 9 anos, tive de me defender. Passei a viver apenas com o meu pai, um homem que não sabia exprimir os seus afetos, e vi-me obrigada a crescer. A minha infância acaba nessa altura, até então tinha sido uma ficção, uma coisa maravilhosa. Ao contrário da minha adolescência, em que só queria crescer rapidamente para acabar com aquela fase. Mas tinha a literatura e a literatura salva.

É nessa altura que começa a ler poesia.

Sim, aos 12 anos. Na biblioteca do meu pai não havia poesia, nem sequer um livro assinado por uma mulher. Daí a importância do momento em que a minha mãe me fala da minha avó, a poetisa Marquesa de Alorna, de quem tinha uma biografia, em cima de uma mesinha. A minha avó paterna também tinha muita poesia. Era muito culta, foi a primeira mulher a frequentar o liceu em Portugal, a primeira pessoa a fazer traduções de francês para português para o Diário de Lisboa. Muito mais tarde descobri que aqueles encontros de amigas a que me levava eram, afinal, reuniões de feministas. No quarto, tinha livros de Cesário, de Antero, de Sá de Miranda, os poetas do Cancioneiro. Não me lembro de não ouvir ler poesia. É mais fácil ler poesia do que ficção. As pessoas é que não o fazem desde cedo, tal como não ouvem música clássica. Mas se crescerem com ela, ficam pasmadas quando os outros dizem que não a entendem. Há toda uma aprendizagem. Costumo dizer às pessoas que leiam um poema por dia, não custa nada. Ficam iluminadas e não dão por isso. E a vida muda por dentro. A poesia é a minha vida.

Quando é que a leitora começa a escrever?

Desde sempre. Em pequena dizia que fazia romances. O primeiro que li, do princípio ao fim, numa tarde só, foram as Meninas Exemplares, da Condessa de Ségur. Logo eu, que de exemplar nunca tive muito. Depois tinha imensas leituras proibidas, segredos entre mim e a minha avó. Quando comecei, dizia que escrevia romances, mesmo que tivessem apenas meia dúzia de linhas. Mais tarde, ia buscar os cadernos de capa de oleado que o meu pai deitava fora e escrevia neles. A poesia chegou na adolescência, é nessa altura que escrevo o meu primeiro poema.

Por ter sido uma fase mais complicada?

A minha poesia não tem nada a ver com dor, mas com regozijo. Era a minha salvação. Na minha poesia raramente se nota sofrimento. Está cheia de sensualidade, de vida. É o meu lado claro, a minha estrada, o meu caminho, o meu país. A poesia aparece aos 12 anos, quando fui viver com a minha mãe que, apesar de ser menos culta que o meu pai, era mais aberta. Começo a ter uma semanada e a comprar livros de poesia. Aos 14 anos, lembro-me de fechar a porta do quarto à chave e de ficar a ler Cesário Verde na beira da cama, em voz alta, até não entender o significado das palavras. Ao ler tantas vezes, tentava incorporar o significado da poesia, procurava que ela fizesse parte de mim. Tanto que já nem necessitava de perceber o que estava a ler, porque eu era o poema. Li Antero, depois Florbela, mas não tão obsessivamente como Cesário ou Camões, que me acompanha até hoje. É o poeta.

O poeta tem sexo?

Tudo tem sexo e os poetas também. Só mais tarde descubro as poetisas. Em Portugal havia poucas traduzidas. Só aos 18 anos, quando começo a ler francês, é que as descubro e, então, abre-se outro caminho na literatura. É então que leio a Simone de Beauvoir que, tal como a Marguerite Duras, abre caminhos para a minha escrita. Uma disse-me “tens razão, por isto, por isto e por isto” e, uma vez mais, pôs ordem na minha desordem. Outra explicou-me por que razões eu sentia que as mulheres eram oprimidas e injustiçadas, e que era preciso lutar, fazer alguma coisa contra. Comecei a ler a biblioteca dos pais das minhas amigas, que ficavam admiradas, porque não tinham os mesmos hábitos de leitura.

Não tinha com quem partilhar esse mundo. Era angustiante, essa solidão?

Não tinha com quem ter um diálogo, é verdade. Era um mundo que me era reservado, uma salvação. Comecei por pedir uma lanterna, para poder ler debaixo da cama, noite fora. O meu pai dizia que eu era uma rapariga estranha, a minha mãe dizia que eu era diferente.

E a Maria Teresa, o que dizia?

Sentia-me diferente, mas era olhada com estranheza. Não era natural que uma menina tirasse fotografias com um livro voltado para a câmara, em vez de uma boneca. Lia tudo. Era uma loucura. Lembro-me de, aos 10 anos, o meu pai me autorizar a ler romances policiais, porque já não tinha mais nada para me dar. Isso fez-me um bem desgraçado. Os bons livros policiais são ótimos. Ajudam ao raciocínio e a resolver literariamente. Pôr de lado uma Patricia Highsmith ou considerá-la um lado menor da literatura menor é de uma grande injustiça. E, como ela, podia referir várias mulheres, já para não falar da Agatha Christie. Estas leituras só eram possíveis porque tinha a tal lanterna. Descia a coberta, acendia a luz e ficava a ler.

Viajava. Fala muito em voo para se referir à sua poesia...

Os poetas voam, claro que sim. Toda a minha poesia está cheia de coisas que voam, de anjos, que são os mediadores, os poetas do imaginário. Quando escrevo não penso em nada, sinto. Esta antologia reúne poemas de todas as alturas da minha vida. Tinha de ser feita por mim, escolhida por mim. São quase 300 páginas, é preciso tempo, é preciso escrever muito.

O erotismo é indissociável da sua poesia?

Sim, esse peso nota-se na dimensão do livro. A sexualidade é a nossa vida. Ignorar isso é um preconceito, é tapar algo que faz parte do ser humano, do ser vivo. Se formos à poesia mais ancestral esse lado está lá. Mas falamos de uma poesia escrita por homens.

Esta é a primeira antologia de poesia erótica assinada por uma mulher?

Sim, no mundo ocidental, pelo menos, o outro não conheço tão bem. Quando o David Mourão Ferreira, de quem era muita amiga, lançou o livro Música de Cama, disse-lhe: “Lindo!” E ele respondeu: “Não, lindo será um dia a Teresa fazer uma antologia destas.” Isso ficou, quase como uma promessa, a mim própria e ao meu amigo. Era um dos meus três projetos de vida. Outro, também já concretizado, é Feiticeiras, um livro bilingue, uma cantata, com música do António Chagas Rosa, um músico erudito. E tem um espetáculo associado que tem andado por várias partes do mundo, exceto Portugal. Este país não gosta das suas coisas.

E o terceiro projeto é a Leonor?

Não, esse só aparece mais tarde e preencheu-me durante 13 anos e meio. Ainda continuo com ela porque tenho um livro de poesia relacionado com ela por editar. Continuo a escrever sobre ela, a escrever poesia para ela.

Não quer fechar essa porta?

Há ali magia. Às duas por três parava de escrever e pensava quem quereria ler aquele livro, sendo ele tão grande. Ela era tão desmesurada e eu sou tão excessiva. É um encontro de duas poetisas de dois séculos diferentes, com as mesmas raízes. Quando o meu pai se perguntava a quem sairia eu, respondia-lhe que saía a mim mesmo. Hoje em dia, se ele fosse vivo, já o teria procurado para responder à pergunta eterna: saio à Marquesa de Alorna, minha avó. As Luzes de Leonor é um livro de intertextualidades, algumas das quais ninguém notou. Pus na boca da Leonor, em diários, em cadernos, em monólogos, frases de outras escritoras. Por exemplo da Teresa de Ávila, ou até da Ana Luísa Amaral. Nem ela deu por isso. Toda a gente achou normal que uma mulher do século XVIII dissesse aquilo que dizia a Ana Luísa. E ponho dois versos meus num diário da Leonor: “Para a minha sede nenhuma água chega.” Isto é a Leonor. É o fulgor dela mas também a minha busca que, ao procurar as raízes da minha avó, estou à procura das minhas.

É curioso que, nessa tentativa de se definir, acaba por falar mais de si como filha ou como neta do que como mãe ou mulher. Isso deve-se a quê?

Quando fui à procura da Leonor, fui à procura das minhas raízes. As pessoas só entendem quem são ou porque são quando vão lá atrás. Ao que está na génese. E fiz psicanálise, que muda sempre o projeto de vida das pessoas, aquilo que sentem. Ensina-nos quem somos, porque somos e porque fazemos certas coisas. Torna-nos mais felizes. Foi uma grande viagem, com grandes consequências na minha escrita, que assim ganhou amplitude.

Este livro reúne poemas escritos ao longo de uma vida. O que sente agora quando o relê?

Que sou uma mulher da sensualidade. Vejo isso através da minha escrita. Para mim, tudo tem corpo. O calor, o frio, os objetos, os sentimentos, as palavras, a escrita. O erotismo é o corpo da poesia. Cada palavra tem um corpo diferente. Sou uma colecionadora de palavras, adoro-as, tenho cadernos cheios com elas. Adoro as palavras novas que as pessoas trazem. Gosto de desencontrá-las, dar a volta ao sentido, colocar palavras num sítio onde não tinham entrada. Isso é poesia.

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