Em vésperas de estrear um novo programa e um ano depois da criação da associação Corações com Coroa, fomos descobrir a fórmula mágica de uma mulher que nunca perde o pé nem desfaz o sorriso.
Catarina Furtado: do fundo do coração
16 de janeiro de 2014 às 07:00 Máxima
“O que é que me vais perguntar? Já sabes tudo sobre mim...” Confesso que a pergunta também me tinha passado pela cabeça. Não que soubesse tudo sobre ela (nada mais longe da verdade), mas, contas feitas, era já a quarta vez que entrevistava a Catarina. A primeira, provavelmente, já há uma década, quando ela se preparava para estrear uma peça de teatro, como protagonista. A segunda, quando esperava a sua filha (é mãe de Maria Beatriz, de sete anos, e de João Maria, de seis). A terceira, quando foi distinguida enquanto Embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População e se preparava para regressar ao terreno para filmar mais uma temporada da série de documentários Príncipes do Nada. Era quase como se, em diferentes momentos, tivesse conversado com três diferentes mulheres, quando, na verdade, era a mesma pessoa que lá estava. A mesma que reencontro agora, supostamente mais velha, ainda que a sua aparência (e o seu discurso) não denunciem quaisquer vestígios de cansaço... e isto apesar das muitas obrigações e solicitações em que diariamente se desdobra.
PUB
Quem pensa que Catarina se movimenta apenas entre os holofotes dos estúdios da RTP, as cadeiras do salão de Marina Cruz e o sofá lá de casa não podia estar mais enganado. As suas prioridades estão todas impecavelmente alinhadas e a agenda bem organizada. “A missão mais maravilhosa da minha vida é a de educar os meus filhos. Nada ultrapassa isso nem o privilégio que é ter dois filhos saudáveis, ter tido uma maternidade segura e dois partos assistidos. Este amor que tenho por eles... enfim, é como todas as mães...” A família, mais do que um porto de abrigo, é o ponto-chave, o lugar que a tranquiliza, o elemento que a estrutura, o sítio onde se sente feliz. “Francamente, acho que sou uma pessoa equilibrada. E hoje, mais do que nunca, tenho pensado nisso, talvez por assistir ao desmoronar de algumas situações... Creio que isto tem a ver com as escolhas que fiz, mas assenta sobretudo nos meus pais e na educação que tive. Há uma coisa muito importante: o facto de nunca ter sonhado com isto, com uma carreira na televisão. E esse é um pequeno grande pormenor. O meu pai sempre trabalhou em televisão, por isso a televisão, para mim, era o trabalho do meu pai. O meu fascínio era a dança, mas nunca quis ser uma estrela. À medida que tudo foi acontecendo, houve sempre naturalidade, nunca houve sobrevalorização e, em muitos casos, isso parte das pessoas que estão à volta. Afinal, o que é uma apresentadora de um programa de televisão como o Chuva de Estrelas? É alguém que faz aquilo bem ou mal, não pode ser a última Coca-Cola do deserto. Acho que perceber isso desde sempre foi o meu grande trunfo e creio que ainda é aquilo que realmente me diferencia.” Com isso, o resto ficou mais fácil: “É esse equilíbrio e essa sanidade mental que me deixa espaço para fazer outras coisas, chegar a casa cansada, mas satisfeita comigo própria e sem sentir que estou a falhar em algum sítio. Claro que há projetos que podem correr melhor do que outros, mas nunca me sinto em falta, o que me dá uma grande sanidade mental.”
MAIS >
Também faz toda a diferença ter um marido que é um verdadeiro companheiro, no sentido mais amplo do termo. “Só me consigo equilibrar desta forma multifunções porque o João (Reis) partilha tudo comigo.” E mais não diz, não fosse o zelo pela vida pessoal uma das suas características mais marcantes. Apesar de ser, há já cerca de vinte anos, uma presença regular nas revistas e um alvo natural da curiosidade da imprensa cor-de-rosa, a apresentadora sempre desenhou com firmeza a linha que separa o público do privado, mostrando apenas aquilo que considera sensato. Mas, recentemente, também ela se rendeu às redes sociais. Porquê? “Decidi abrir uma conta no Facebook porque percebi que seria uma excelente ferramenta profissional. Sou eu que o alimento, que escrevo os posts, que decido o seu conteúdo. Admito que fui muito renitente em aderir, mas senti que havia determinadas mensagens que queria fazer passar e que podia usar esse canal. Agora, por exemplo, aquando do relatório do fundo das Nações Unidas sobre gravidez na adolescência... onde é que eu ia falar sobre isto? A imprensa não se interessa sobre estes assuntos. Eu uso o Facebook até para fazer aquilo que os especialistas desaconselham, que é escrever textos enormes, que toda a gente me diz que ninguém lê. Chego a pôr legislação, artigos inteiros, e já houve casos em que tive 350 partilhas e não estava a mostrar o meu marido nem o meu filho ou um vestido novo.” Ainda assim, recentemente, abriu uma exceção para postar uma fotografia com o marido, no dia do 8.º aniversário de casamento, celebrado em julho. “Nunca mostrei fotografias da minha família ou de momentos marcantes da minha vida, mas as pessoas acompanham-me desde sempre e, além disso, o João também é figura pública. Por isso, achámos que devíamos agradecer as muitas mensagens que recebemos.”
PUB
A postura calorosa e o carinho fácil para com as pessoas que gostam dela é outra evidência. Apesar de recatada, não se escusa ao contacto e, porventura ao contrário de muitos, não abre o sorriso só quando as câmaras se ligam. Cumprimenta o senhor do café que a conhece desde os tempos da SIC, acena afetuosamente a quem a reconhece de passagem e, mais importante, não se inibe de dar a mão a quem mais precisa.
Em 2000, Catarina Furtado foi nomeada Embaixadora das Nações Unidas para o Fundo da População. Era o início de um trabalho que desenvolve convictamente todos os dias, às vezes à frente das câmaras, mas, na maior parte das vezes, numa solitária persistência, batendo às portas à procura de financiamentos, visitando escolas para sensibilizar os jovens para questões relacionadas com a pobreza ou a saúde materna, viajando para países do terceiro mundo, acompanhada pelos dois companheiros de sempre, o repórter de imagem Hugo Gonçalves e o realizador Ricardo Freitas. Dessas viagens resultaram as reportagens Príncipes do Nada, que dão conta das realidades tão distantes de países como a Guiné-Bissau ou São Tomé, mas também do trabalho das muitas associações e voluntários que procuram fazer a diferença. Recordo-me de muitas imagens dessa série. Das mulheres que, graças à presença daquelas pessoas, podiam ter bebés em condições mais dignas, das comunidades inteiras a respirar de alívio com a oferta de uma ambulância que lhes dava esperança da vida, dos enfermeiros que confessavam nunca ter passado por nada assim na vida. E recordo-me dos textos. Assinados pela própria Catarina, que regressava aos tempos de jornalista e denunciava aquilo em que se viria a tornar: uma acérrima defensora dos direitos humanos.
PUB
“Passámos muito tempo no terreno, dentro das comunidades. Conseguimos perceber como é que as pessoas vivem. Tudo isso fez com que fosse natural que, ao regressar a Portugal, quisesse dar uma continuação a esse trabalho. Isto também coincidiu com um ano em que tive menos trabalho visível na RTP, o que me deu a oportunidade de pensar com calma na possibilidade de criar uma associação sem fins lucrativos.” Era o princípio da Corações com Coroa. “Teria de o fazer sempre com pessoas da minha inteira confiança porque se houve uma coisa de que me apercebi neste meio das ONG’s e das Associações Sem Fins Lucrativos é que há pessoas sérias a fazer um trabalho meritório... mas também há outras que não o fazem. Por tudo isto, só faria sentido se a minha associação tivesse como princípio básico a questão da transparência. Sendo eu uma figura pública e tendo uma vida privilegiada, jamais poria em causa, de forma leviana, aquele que é o meu maior património, a minha carreira, seja ela considerada como for, mas que já tem 22 anos. Acho que tenho uma imagem de seriedade e de profissionalismo e, por isso mesmo, nunca deixaria que essa imagem fosse beliscada por alguma suspeita.”
O passo seguinte foi rodear-se das pessoas certas. E por isso escolheu duas amigas: Ana Torres e Ana Magalhães. Sabendo que Catarina é uma mulher de fidelidades e que gosta, com todo o desassombro, de misturar trabalho e afetos, não será de todo surpreendente encontrar nomes como o do marido, João Reis, e do seu agente de sempre, Rui Calapez, na estrutura da associação. Depois mergulhou na parte burocrática, ultrapassando todas as barreiras e entraves para pôr o projeto de pé, e, mais recentemente, encontrou uma sede, na Biblioteca de Belém. “A associação tem como objetivos a promoção dos direitos humanos, da não discriminação, da não violência, da igualdade de género. Tem sido um trabalho pós-laboral porque é e será sempre voluntário. Há muita coisa que é feita à noite porque todas nós temos as nossas profissões e somos as três que desenhamos os projetos. Depois cabe-me a mim a função de encontrar apoio financeiro para os concretizar. Num ano, já muito foi feito.” A saber: “Este mês vamos dar o nosso primeiro ordenado, temos uma pessoa a trabalhar connosco a tempo inteiro e assim podemos abrir a porta todos os dias. De há um mês para cá temos, às quartas de manhã, atendimento psicológico gratuito para todas as mulheres e jovens. Vamos ter também atendimento gratuito jurídico-legal. E, num terceiro dia, consultas de saúde materna/sexual reprodutiva, com uma enfermeira, e cursos de preparação pré e pós-parto – o projeto Corações XXL – que apoia jovens duas vezes por semana. Muitas vezes estas jovens estão desprovidas do ponto de vista afetivo e, se não recebem, não dão. É um curso de parentalidade positiva, com todas as componentes que precisam de ser trabalhadas de forma a haver uma maternidade segurada. Temos ainda uma parceria com uma clínica dentária. As pessoas não pensam muito nisso, mas, quando há violência doméstica, os dentes são um alvo fácil, mas difícil de ser recuperado. Como é que uma pessoa sem dentes consegue trabalho?”
PUB
Este ano realizou-se também a primeira edição do Prémio Comunicação Corações Capazes de Construir, resultante de uma parceria com a Sonae/MC com o objetivo de distinguir trabalhos de comunicação (Rádio, Televisão e Imprensa) que se destaquem na promoção da informação e proteção dos Direitos Humanos, numa perspetiva de igualdade de direitos e oportunidades, bem como de inclusão social. “Não posso fingir que não venho deste meio, tem de haver uma coerência entre aquilo que é a minha vida e aquilo que quero que a associação seja. E a verdade é que estas temáticas são normalmente muito pouco exploradas pela comunicação social. Eu própria sinto muitas vezes dificuldades em convencer os meus editores da importância destes projetos. Por isso, às vezes, é preciso encontrar novos caminhos.”
A necessidade de inventar uma alternativa, quando ela parece não existir, justifica também a criação das Bolsas CCC, que apoiam bons alunos do ensino secundário ou superior com dificuldades financeiras: “Achámos que era importante não agir apenas num plano imediato, mas mais preventivo. Nestes anos todos, tenho ido a milhares de escolas e falado com muitos jovens, de forma a criar uma força de cidadania. As bolsas (mensais, com a duração de três anos) alimentam este lado. Já atribuímos três a jovens com notas extraordinárias e que estavam na iminência de abandonar os estudos por falta de recursos.” Basta ouvi-la falar para perceber que não são apenas “casos”. São a bombeira voluntária que é aluna de notas excelentes ou a jovem de etnia cigana que quer ser advogada. “Ganho anos de vida com isto, é absolutamente mágico! E é também um trabalho que tira umbigo. Em televisão, estamos permanentemente concentradas em nós próprias: se estamos bonitas, se não estamos, se estamos a fazer ou não. Sempre ouvi a minha mãe dizer que a idade traz coisas boas, a tal relativização, a vontade de arriscar. Isto para mim é um ato de coragem.” O tal risco que ela parece não correr quando gere uma carreira equilibrada, constante, sólida... mesmo quando o projeto seguinte não é necessariamente o projeto desejado.
PUB
“Estou prestes a estrear um programa novo, de culinária, imagina”, diz ela, ainda meio incrédula. “Apresentaram-mo como sendo pensado para quem não sabe cozinhar, dizendo-me que faria todo o sentido que o apresentasse precisamente porque não cozinho. Argumento infalível e cá estou eu.” A dar o corpo às balas, como sempre faz quando veste uma camisola. “É um formato português e isso também me agrada. É uma escola que me faz lembrar a escola da Operação Triunfo, tendo essa componente pedagógica e didática, podendo dar esperança a pessoas que queiram mudar de vida radicalmente e que vejam ali uma oportunidade para contornar a crise.” É entretenimento, claro, é sempre. Mas também é mais do que isso. Tal como ela poderá ser vista como a apresentadora de televisão (para muitos a melhor) ou a entertainer com o sorriso mais luminoso. Mas também é muito mais do que isso. No pequeno ecrã, em terras africanas ou junto de comunidades desfavorecidas, o objetivo dela é sempre o mesmo: “Poder mudar a vida das outras pessoas.” E isso é magia.