“Se a intenção das pessoas quando acordam é 'vamos destruí-lo', não está a surtir efeito." Zé Lopes fala sobre ser chamado de caveira, rótulos e o peso dos padrões sociais

Em entrevista exclusiva à Máxima, o apresentador confronta o bodyshaming, transformando o seu relato pessoal numa reflexão sobre uma cultura que reduz indivíduos a corpos.

Zé Lopes aborda o bodyshaming e padrões estéticos em entrevista. Foto: DR
26 de dezembro de 2025 às 15:19 Patrícia Domingues

Durante anos, o corpo de José Lopes foi visto como demasiado. Demasiado grande, demasiado visível, demasiado presente. Hoje, o comentário mudou de forma, mas não de intenção. Entre o “antes” e o “depois”, permanece a mesma vigilância: a ideia de que o corpo está sempre a ser avaliado, corrigido, interpretado. Num vídeo recente publicado nas suas redes sociais, o apresentador transformou a arena onde o chamam de “caveira” e “múmia” no seu palco, celebrando a diferença e assumindo o poder que sempre lhe pertenceu. Porque falar de corpo é falar de poder: quem pode ocupar espaço sem ser questionado e quem é permanentemente corrigido? Numa era em que o Ozempic domina as manchetes, o cyberbullying mantém-se - constante e como uma tendência muito mais antiga e enraizada.

Zé Lopes perdeu 70 kg, mas o julgamento apenas cresceu. Talvez o problema nunca tenha sido ele, mas a forma como a sociedade decide quais os corpos que são aceitáveis e quais merecem comentários. Ao longo dos anos - sete deles passados na frente das câmaras da televisão - aprendeu que nunca se está totalmente “no lugar certo” para os outros e construiu uma armadura invisível que lhe garante um sorriso, mesmo frente à crítica mais cruel. A sua maior vitória veio na medida certa: reconhecer que o corpo é apenas um corpo e que a única avaliação que realmente importa é a que ele dá a si mesmo. “É triste viver num mundo onde precisamos de uma capa para não nos magoarmos.”

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Nos últimos tempos, tens recebido comentários recorrentes sobre o teu corpo. Quando percebeste que isso estava a deixar de ser apenas ruído e a tornar-se um tema constante?

Eu tenho uma preocupação muito grande em ler o que as pessoas escrevem, porque acho que trabalho para o público e é importante entender a opinião que o público tem em relação a mim, em relação ao meu trabalho, de forma muito particular, porque, no fundo, o que me torna figura pública é o trabalho que eu faço enquanto apresentador de televisão. E comecei a perceber que os comentários eram muito em torno do meu corpo e nunca em relação ao meu trabalho. Antigamente era em relação à minha orientação sexual...

Sinceramente, como, ao longo do tempo, têm sido tão frequentes os comentários sobre tudo aquilo que eu faço - e que tem a ver com a minha vida pessoal e não com a minha vida profissional - eu já quase construí uma capa que permite que eles não me atinjam.

Senti que tinha de me manifestar quando isso deixou de ser um ruído e começou a ser barulho, quando percebi que esses comentários, embora fossem direcionados a mim, estavam a atingir outras pessoas, e isso eu já não posso permitir.

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Em diferentes momentos da tua vida, o teu corpo foi avaliado por razões opostas, de um corpo criticado por ser “demais” para um corpo questionado por ser “de menos” - o que é que isso te diz sobre os padrões que usamos para avaliar os outros? Existe a ideia de que, se o corpo mudar, o julgamento termina. Na tua experiência, isso alguma vez aconteceu?

Em primeiro lugar, acho que só alguém que esteja muito mal resolvido é que pega num telemóvel, num tablet, num computador, o que quer que seja, para escrever um comentário destrutivo em relação a alguém, apenas baseado no corpo, ou seja, no aspeto físico dessa pessoa. Eu jamais o faria.

Depois, acho que vivemos numa sociedade que tem os ideais da perfeição muito presentes. Eu defendo a mesma filosofia, que era a que já defendia quando tinha excesso de peso: para mim, um corpo feliz e um corpo bonito é um corpo no qual nos sentimos bem e um corpo que tenha saúde. No meu caso, quando eu estava em obesidade mórbida, o meu corpo não tinha saúde e eu tive de agir para o tornar num corpo saudável. Neste momento, o meu corpo está completamente saudável. Eu entendo a estranheza de quem me viu com 139 kg e me vê agora nesta forma física. Causa algum impacto, é uma diferença muito considerável. É outra imagem, é outra pessoa fisicamente, embora os meus valores sejam exatamente os mesmos e permaneçam inalterados.

O que eu não entendo são os comentários de mal dizer. Isso eu não entendo. Quando a preocupação é genuína, eu sou o primeiro a acalmar essas pessoas.

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Existe uma ideia persistente de que o corpo é um indicador direto de saúde. Que perigos vês nessa associação? Sentiste, em algum momento, cansaço de teres de provar que estás bem (saudável, feliz, equilibrado) só para que os outros parem de comentar?

Devo contar-te que há pessoas que são extremamente educadas e eu noto mesmo que é cuidado da parte delas quando me abordam nesse sentido. Ainda ontem fui ao mercado do Bolhão, houve um senhor que me veio dizer: “Bem, você está muito diferente, está muito melhor assim, mas diga-me só uma coisa, não teve nenhum problema de saúde, pois não?” E aí eu percebo que há uma preocupação genuína. Ele elogiou-me, mas pensou: “Bem, este elogio pode não ser um bom elogio se, de facto, esta perda gigante de peso tiver a ver com um problema de saúde”, o que não é o caso.

Eu estou ótimo de saúde, nunca tive os valores tão bem. Eu sou acompanhado por uma equipa multidisciplinar; portanto, eu faço análises, exames com muito maior regularidade. E tranquilizo essas pessoas dessa forma, para entenderem que está tudo bem.

Quando não estava tudo bem, eu agi. Neste momento está tudo bem, por mais que as pessoas estranhem ou que não gostem, eu estou saudável e estou na versão física que eu gosto. Eu gosto de estar assim.

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Muitos desses comentários vêm embrulhados em preocupação. Onde é que, para ti, termina o cuidado e começa a invasão?

Ah, eu acho que, por lidar com pessoas há tanto tempo - eu trabalho em televisão vai fazer oito anos, em contato direto e diário com um monte de pessoas, das mais variadas faixas etárias, profissões, pessoas muito diferentes umas das outras - já consigo lê-las e entender quando a preocupação é genuína e quando já há maldade implícita.

E, aliás, os próprios comentários são muito diferentes. Ninguém que me chame múmia, caveira, monte de ossos, estará preocupado comigo, porque se estivesse… não faria esse tipo de comentários.

Acho que dá para perceber muito facilmente os que vêm com preocupação genuína e os que só querem destruir, porque provavelmente não estarão bem consigo próprios quanto ao corpo deles, não sei.

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Em meados de dezembro, Zé abordou nas suas redes sociais o tema, num relato sincero.

Quando um corpo se torna um tema recorrente de conversa pública, o que é que se perde sobre a pessoa que o habita? Hoje, quando olhas para o teu corpo, o que gostarias que as pessoas vissem, para lá da forma?

Honestamente, gostava que as pessoas não se baseassem no meu corpo. Eu trabalho muito todos os dias, faço um programa de televisão diário de duas horas, em que todos os dias tento ser um bocadinho melhor profissional. Isso é que eu queria que fosse objeto de análise, porque o que me torna "figura pública", embora eu não goste do termo, é precisamente o meu trabalho. Não é a minha orientação sexual, não são as roupas que eu visto.

Quando a Maria Botelho Moniz também foi assunto pelo corpo dela, porque houve uma crónica muito infeliz que foi escrita numa altura em que ela estava a fazer tratamentos de fertilização, lembro-me de uma frase dela: “Eu usar o 36 ou 38 de calças nunca vai determinar o que eu sou enquanto apresentadora de televisão.” E é isso que eu queria que as pessoas pensassem. Nenhum convidado meu, nenhum que se senta à minha frente, vai dizer que eu estava mal preparado, que eu não tinha estudado, que eu não sabia a lição, que eu não sabia como conduzir a conversa, que eu não tinha empatia por ele.

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Isso, para mim, é o foco. No dia em que me criticarem por isto, aí vou preocupar-me muito, porque é a profissão que eu sempre quis ter. Enquanto os comentários forem só fúteis e à volta da imagem, sinceramente, eu já construí essa capa que permite que não me atinjam. Só não quero que atinjam outras pessoas, como disse no início desta entrevista.

Há ainda pouca conversa pública sobre a pressão estética nos homens. Sentiste, em algum momento, que, por seres homem, isso não te deveria?

Eu acho que, lá está, começou-me a afetar a partir do momento em que tive relatos de pessoas próximas que estavam a ficar afetadas com esses comentários que eram feitos.

Os comentários eram direcionados a mim, mas eu não quero estar aqui a desvendar mensagens que recebi, mas foram muitas, de pessoas que têm distúrbios alimentares ou condições de obesidade ou de anorexia, e que acabavam por ler os comentários que eram feitos na minha página e que me chamavam de múmia, de caveira, do que quer que fosse, e pensavam: “Se calhar as pessoas também pensam isso sobre mim.” E essas pessoas estavam com distúrbios e eu não posso permitir que, numa rede social em que eu quero que se propague a empatia e o amor - que é isso que eu quero nas minhas redes sociais - alguém que vá lá e que goste de me seguir esteja a dar de caras com essa série de comentários que vão afetar a saúde dessas pessoas.

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Isso é que eu não posso permitir. E mesmo a minha família, porque a minha família também tem redes sociais, também lê o que é escrito, e isso eu não posso mesmo normalizar.

Concordo contigo que a indústria é muito mais injusta com as mulheres, muito mesmo. Mas o que a mim me afeta é perceber o impacto que esses comentários têm em terceiros, porque, infelizmente - eu digo infelizmente porque deixa-me mesmo triste - que mundo é este em que eu tive de construir uma capa para permitir que as coisas não me atinjam? Houve tantas tentativas de destruição que já construí essa capa. Era tão melhor que não tivesse chegado ao ponto de criar essa capa, era sinal de que não tinha recebido esses comentários frequentes, destrutivos.

Como é que foste criando essa capa?

Quando o impacto que tu tens de alguma coisa é tão regular, chega uma altura em que já acabas por considerar normal aquele ataque. E acho que foi um bocadinho isso que aconteceu. Como foi tantas vezes, eu já nem sinto o impacto desses comentários.

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A minha família e os meus amigos são a minha âncora. Eu tenho mesmo um núcleo estreito muito, muito forte e ao qual eu confio tudo. Ainda não precisei de terapia, mas, se precisar, serei o primeiro a recorrer. Acho que é uma ferramenta poderosíssima. Em relação ao corpo, ainda não precisei, porque, lá está, tem acontecido com tanta frequência e com ações sobre tudo aquilo que eu faço, o que eu visto, com quem me deito, o tamanho que uso na roupa, que, honestamente, já não deixo mesmo que esses comentários me afetem.

Se a intenção das pessoas quando acordam é “vamos destruí-lo”, não está a surtir efeito. Também é por isso que bloqueio imensas pessoas.

Existe uma expectativa implícita de que corpos maiores sejam mais expansivos e corpos magros mais contidos. Já sentiste pressão para ajustar a tua presença ao corpo que tens hoje?

Não, nem no processo de perda de peso, nem nunca. Eu já percebi que tu nunca tens que te diminuir para caber. E mesmo profissionalmente, às vezes tentavam incutir-me isso, porque tinha muitos tiques, porque gesticulava muito... E eu entendi que é precisamente esta minha personalidade que me torna diferente. Se eu fosse mais um, provavelmente não marcaria algumas pessoas.

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E marcar é uma palavra… Tem peso, porque podes marcar positivamente ou marcar negativamente, e é válido. Há de haver pessoas que gostam muito de mim e outras que não gostam nada. Isto é tudo certo. O que eu acho é que eu nunca me vou diminuir para caber, porque, se calhar, se eu não couber ali, é porque não estou no sítio certo. Nem em relação ao peso, nem em relação a nada na vida.

Existe uma indústria inteira a lucrar com a ideia de que o corpo precisa de ser corrigido. Quando comentários sobre corpos passam sem resposta, isso torna-nos cúmplices? Onde começa a responsabilidade coletiva - dos media, das redes, das pessoas?

Acho que a principal responsabilidade e a postura que deve ser adotada é exatamente dar voz aos protagonistas, que foi o que a Máxima fez com esta entrevista. Nós podermos dizer em viva voz aquilo que sentimos, a forma como estamos. Foi por isso que eu publiquei aquele vídeo que teve uma repercussão muito grande, nem eu imaginava que teria tanta, mas foi um vídeo sem nenhum tipo de filtros. Foi um vídeo gravado em minha casa, sem maquilhagem, no meu sofá, mas percebi que era um desabafo sentido que eu queria que chegasse às pessoas.

Essencialmente a essas que me têm enviado mensagens. E olha que algumas das partilhas dessas pessoas, sobre os distúrbios alimentares são mesmo muito fortes, muito violentas, deixam-me a pensar. Já recebi, por exemplo, mensagens de uma jovem e depois da mãe dela a agradecer-me por eu ter ouvido a filha, por ter aconselhado, por ter estado ali para ela. Eu acho que isso também é a minha função enquanto figura pública. Enquanto eu puder fazer, enquanto eu puder responder, enquanto eu puder ajudar, enquanto eu puder ter uma voz ativa para que haja respeito e empatia, eu terei sempre. Seja na cor da pele, na orientação sexual, no peso, na imagem, em tudo. Enquanto eu puder ser a voz da empatia e do respeito pelos outros, eu serei. E podem vir as pessoas que quiserem contra mim, podem dizer que eu sou das causas, podem dizer que eu sou das bandeirinhas, porque eu tenho orgulho em ser.

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Se quisermos realmente mudar a forma como falamos de corpos, o que achas que tem de mudar primeiro?

Pensarmos se aquilo vai acrescentar alguma coisa a alguém, porque em 98% dos casos não vai acrescentar nada.

Que mensagem gostarias que ficasse para quem lê esta entrevista e vive em silêncio com comentários semelhantes sobre o seu corpo?

Um corpo bonito é um corpo saudável no qual nos sintamos bem. Se nos sentirmos bem ali e estiver tudo bem com a nossa saúde, não interessa as vozes de ninguém. Há um ditado popular antigo que diz: “Vozes de burro não chegam aos céus.” Mentalizem-se disso e lutem por terem o corpo no qual se sintam bem, desde que ele tenha saúde. No meu caso, quando estava em excesso de peso, não tinha saúde, decidi agir. Neste momento, sinto-me bem no meu corpo, que é a minha casa, e ele está perfeitamente saudável.

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Quais são os teus planos para 2026?

Em termos corporais vou continuar com a alimentação regrada, com o acompanhamento do Centro de Inovação Médica através dos vários médicos, nomeadamente o Dr. Luís, que é o meu nutricionista e que me marca todo o plano para que não me falte nenhum tipo de vitamina. Tem que haver, esse cuidado, como é lógico. No acompanhamento físico, mantenho o PT Rafael Domingues, com o qual treino uma vez por semana, treinos personalizados à minha força, ao meu peso, fazemos medições semanais, portanto está tudo direitinho.

Em termos profissionais, quero evoluir como apresentador de televisão. O bom de fazer um programa diário, de segunda a sexta, é que todos os dias começa do zero, todos os dias é uma nova oportunidade de fazer melhor do que o dia anterior. Isso, para mim, é muito desafiante.

Estou muito bem apoiado pela minha equipa, que me dá muita estrutura, pela Merche, que, para além de colega, é amiga, portanto é o melhor dos dois mundos.

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E por isso só quero evoluir. Se vierem novos desafios profissionais, cá estarei para os agarrar com o mesmo empenho que tenho desde o primeiro dia. Porque se há uma coisa que me orgulho é que, quando eu era estagiário e recebia convidados que chegavam ao programa, mesmo sabendo que não era aquilo que eu queria fazer para o resto da vida, o meu empenho era exatamente o mesmo com que entro hoje em estúdio para apresentar um programa. E acho que é isso que mostra que sempre fui apaixonado pela televisão.

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