Qual é o benefício das dietas hiperproteicas? E o perigo das gorduras trans? Há vantagem em retirar o glúten da alimentação? E o leite?
03 de janeiro de 2017 às 06:00 Máxima
Porque é que voltamos a engordar depois de fazer regime? Davide Carvalho, médico endocrinologista, e Helena Santos, nutricionista clínica, respondem a algumas das questões que mais nos confundem quando falamos de alimentação.
Dietas hiperproteicas, paleolítica, sem glúten, de restrição calórica, regimes vegetarianos, vegan e outros. Todos os anos, na chamada "época alta" das dietas de emagrecimento, somos bombardeados com tanta informação sobre alimentação que até já há quem fale em "terrorismo nutricional". Concorda?
Helena Santos (HS) – É um termo forte, mas tenho de admitir que muitas pessoas vivem sob "terrorismo nutricional". Há muita informação disponível e a maioria das "dietas" divide os alimentos em "maus para emagrecer" e "bons para emagrecer", o que cria medo de comer certos alimentos e obsessão com outros. Por outro lado, toda a gente "parece" saber muito sobre alimentos e nutrientes, mas há muita informação errada. Importante é que cada um tenha consciência de que não é só quando está a chegar o verão que deve ter cuidados alimentares.
Davide Carvalho (DC) – Diante dos primeiros dias de calor, as pessoas apercebem-se que passaram o inverno com uma alimentação desregrada e inativas e despertam para a necessidade de perder alguns quilos e vestirem o fato de banho. Este é um problema que se repete de ano para ano e os media respondem àquela aspiração divulgando, e até inventando, as mais exóticas formas de perder peso. Daí o "terror" e as loucuras das restrições alimentares.
Uma das características da alimentação moderna, incluindo a dos portugueses, é a ingestão de muito mais proteínas do que as que são necessárias. Como avalia a moda das dietas de emagrecimento hiperproteicas?
Helena Santos é nutricionista clínica. Atualmente, reside na Suíça e trabalha para os Nordic Laboratories. É colaboradora da revista online esmeraldazul.com. Sobre o consumo de leite defende que é possível viver perfeitamente saudável sem consumir leite e derivados.
"Importa certificarmo-nos de que temos um nível de vitamina D adequado (medindo-a no sangue) e consumindo todos os dias outros alimentos com cálcio, como amêndoas, sementes de sésamo ou legumes de folha escura. A intolerância à lactose é um problema real que afeta cerca de um terço dos portugueses. Isto significa que um em cada três portugueses não tem ou tem muito pouca quantidade da enzima lactase que digere o leite. Por norma, quem tem intolerância à lactose consegue comer iogurtes e queijos – produtos onde a lactose está já quase totalmente digerida. Mas algumas pessoas não conseguem comer quaisquer alimentos com lacticínios, sob pena de sentirem sintomas gastrointestinais quase de imediato. A quem digere bem o leite, recomendo que consuma leite biológico e que, algumas vezes por semana, varie com outras opções."
mais proteínas em cada refeição, essa refeição será mais saciante, o que é ótimo para quem quer perder peso. Mas não podemos nem devemos cair em excessos porque o organismo tem limites para lidar com os compostos que resultam do metabolismo das proteínas. Pessoas com propensão para problemas renais podem vir a ter sintomas mais cedo. Mais do que a quantidade, o importante é que haja uma boa distribuição das proteínas durante o dia. Ainda assim, podemos dizer que, para um adulto, é suficiente comer um bife do tamanho da palma da mão ao almoço e uma posta de peixe do mesmo tamanho ao jantar ou substituir uma destas opções por dois ovos ou por alternativas vegetais como a soja ou por uma combinação de arroz (ou outros cereais como quinoa e millet) com leguminosas, como o feijão.
DC – A ingestão de proteínas, particularmente de origem animal, tem aumentado nos últimos anos. Simultaneamente, tornou-se "chique" não comer leguminosas secas, que são boas fornecedoras de proteínas. As dietas hiperproteicas e hipoglicídicas estão de facto na moda. Não há evidência de que o seu uso por períodos limitados seja prejudicial em pessoas saudáveis, mas o seu uso prolongado pode provocar alterações ou agravamento da função renal. Já as dietas hiperproteicas à base de suplementos comerciais, é verdade que fazem perder peso, mas devem ser sempre feitas com supervisão médica (causam cetose e como diminuem o apetite comportam o risco de carências graves).
Sem razão de saúde, faz sentido excluir totalmente o glúten da alimentação?
HS – Se não se mudar mais nada na alimentação e estilo de vida, o peso não se vai alterar. Na realidade, o que acontece é que quem opta por retirar o glúten muda também a forma como come em geral, o que acaba por conduzir a alguma perda de peso. Mas podemos manter o glúten e ter na mesma muito bons resultados na perda de peso, desde que se mude a qualidade dos alimentos ingeridos. Há benefícios da retirada do glúten quando existem sintomas de desconforto abdominal, dificuldades digestivas e sinais de inflamação, mas as pessoas devem ser bem aconselhadas. O glúten não é uma molécula essencial: pode ser retirado sem prejuízo para a saúde desde que se seja bem acompanhado e não se caia no "terrorismo nutricional".
DC – As pessoas com intolerância ao glúten, como os celíacos, devem abster-se de o ingerir. Não há evidência científica de que quem não tem intolerância ao glúten tenha benefício na sua eliminação.
Podemos prescindir do grupo dos hidratos de carbono simples?
HS – O cérebro só se alimenta com glicose, que é um açúcar simples, mas nós podemos prescindir do açúcar que adicionamos aos alimentos pois vamos buscar a glicose que precisamos ao arroz, massa, fruta e legumes. O paladar demasiado habituado ao doce é uma das grandes razões para a baixa ingestão de legumes, para a má aceitação de
DC – Um endocrinologista muito conhecido, que também foi o "pai" da nutrição científica em Portugal, o Dr. Emílio Peres, dizia que os problemas da alimentação surgem quando "os abusos se tornam usos". Os hidratos de carbono simples – açúcares – podem fazer parte da alimentação em dias de festa. De resto, são dispensáveis, incluindo os refrigerantes. A água é a melhor forma de matar a sede.alimentos novos e para os excessos alimentares – quando só consumimos alimentos adocicados, tudo o resto nos parece "sem sabor e desagradável". Há que treinar o paladar desde cedo! Diminuir o açúcar que se coloca, por exemplo no café ou no chá, até não se colocar nenhum – ao fim de diversas vezes é possível gostar do chá e café sem açúcar. Sugiro a todos que simplesmente não tenham açúcar branco em casa. Quando se quer fazer uma sobremesa pode optar-se por adoçar com fruta madura, açúcar mascavado em pouca quantidade, mel ou até stevia. Ler os rótulos e preferir alimentos que não têm açúcar adicionado ou que o têm em último lugar na lista de ingredientes é também fundamental.
Porque é que as gorduras trans – presentes nos óleos, margarinas e comida processada – são tão ameaçadoras?
HS – Está provado que aumentam o mau colesterol (LDL) e diminuem o bom colesterol (HDL), aumentam o risco de doenças cardiovasculares, diabetes tipo 2 e inflamação. Como o nosso cérebro é maioritariamente constituído por gordura, a ingestão de trans prejudica também a função mental. Já ingerimos algumas destas gorduras, que existem em pequenas quantidades nas carnes e laticínios, mas podemos e devemos eliminar de vez as que ingerimos nos produtos industrializados: basta ler os ingredientes e não comprar nenhum alimento que tenha "gordura hidrogenada" ou "gordura parcialmente hidrogenada".
DC – Estão presentes nos alimentos processados. Aumentam os níveis de colesterol e provocam doença cardiovascular – enfarte do miocárdio e acidente vascular cerebral. Aqui, mais do que o papel dos consumidores, é indispensável uma atuação da saúde pública para limitar ou proibir o seu uso.
Ninguém consegue viver com saúde sem comer vegetais. E o contrário: é possível ser saudável sendo cem por cento vegetariano?
HS – Sim, mas há que ter atenção a certos pormenores. Vegetarianos estritos (não comem qualquer tipo de alimentos de origem animal) tendem a ter deficiência de ferro, vitamina B12, zinco e aminoácidos essenciais. Só porque se é vegetariano não significa que se é saudável. Se eu for vegetariana e só comer fruta e legumes, vou ter diversas falhas nutricionais que me vão prejudicar. Aos cem por cento vegetarianos recomendo avaliação dos aminoácidos essenciais, homocisteína, ferro e vitamina B12 com frequência; o cuidado de combinar leguminosas com cereais de forma a obter proteínas de elevado valor biológico; algas como a spirulina; um sumo de fruta natural de laranja ou kiwi para otimizar a absorção do ferro ao
consumir leguminosas (feijão, favas, ervilhas, lentilhas) e outros alimentos com ferro; variar o mais possível em termos de fruta, legumes, leguminosas, oleaginosas e sementes e não basear a alimentação só em cereais. Seria benéfico para todos fazer entre uma a três refeições por semana de alimentação vegetariana equilibrada.
DC – Há evidências científicas que sugerem ser possível ter uma alimentação vegetariana que forneça todas as necessidades, mas é algo muito exigente. As dietas ovolactovegetarianas são de realização mais fácil. Para alguns, o vegetarianismo é uma espécie de religião e todos os dogmas têm os seus riscos.
Porque é que definir um plano alimentar só com base na contagem das calorias é uma ideia errada?
HS – Porque os alimentos possuem muito mais do que nutrientes que fornecem calorias. Se só estas importassem podíamos recomendar que se consumissem as 1500 Kcal que precisamos por dia todas na forma de chocolate. Não seria preciso mais do que um dia para a pessoa perceber que não poderia continuar assim. Por exemplo, uma fatia de bolo com 100 gramas (450 Kcal) versus seis maçãs médias (450 Kcal). Ao bolo só vamos buscar gordura e açúcar; à fruta vamos buscar, além de açúcar, fibra, vitamina, minerais, antioxidantes e água. Outro exemplo: 150 gramas de bife de porco versus 100 gramas de salmão podem ter cerca de 300 Kcal. Mas o peixe fornece gorduras anti-inflamatórias que não existem na carne. É o equilíbrio entre todos os nutrientes que nos faz ser saudáveis e, mesmo quando se quer perder peso, não basta ingerir as calorias adequadas: o corpo tem de se sentir saudável para poder funcionar bem em todas as partes do seu metabolismo, incluindo a perda de gordura e o ganho de músculo.
DC – Existe um equilíbrio entre o que se come e a energia que se despende. Por isso, o valor energético ou calórico tem de corresponder ao que precisamos sob pena de causar obesidade ou magreza. Mas não basta. Há necessidades de sais minerais e vitaminas que podem não ser satisfeitas se se atender apenas ao valor calórico.
Estudos confirmam que a maioria das pessoas que faz dietas de emagrecimento volta a engordar. Porque é que tal sucede?
Os motivos são diversos, mas destaco dois. Primeiro, as pessoas procuram fazer uma dieta por um período restrito e acham que os efeitos se vão notar mesmo depois de voltarem aos hábitos anteriores. Depois, optam por dietas restritivas demais que fazem perder peso não só na forma de gordura mas também na forma de músculo – isto leva a uma diminuição do metabolismo, o que faz com que a pessoa cada vez possa comer menos. Quando volta aos hábitos iniciais aumenta de peso inevitavelmente! É importante que nos deixemos de dietas! Temos de assumir um estilo de vida e alimentação saudáveis que sejam consistentes, adaptados à nossa individualidade e que permitam a manutenção e até o aumento da massa muscular enquanto a gordura se vai perdendo. Claro que o exercício físico é também fundamental.
DC – A obesidade é uma doença crónica. Requer tratamento a longo prazo, o que implica uma modificação dos estilos de vida, com um programa alimentar que cause um défice calórico em relação ao dispêndio de energia, que deve ser aumentado por via da atividade física. A mudança de hábitos exige motivação. Manter a motivação a longo prazo é o maior obstáculo.