Uma das mulheres que as lendas criadas pelo tempo mais associam ao Festival de Woodstock [no original The Woodstock Music and Art Festival] não esteve perto da quinta em Bethel, a cerca de 170 quilómetros da cidade de Nova Iorque, que se tornou palco da mais mítica das concentrações da história do rock: Joni Mitchell não cantou ali entre 15 e 18 de agosto de 1969, nem "acampou" na plateia para aplaudir algum dos seus pares. Ficando à distância, depois de ter recusado o convite para participar, em decisão semelhante às de Bob Dylan, dos Led Zeppelin, dos [The] Rolling Stones, de Simon & Garfunkel, de Frank Zappa, dos [The] Byrds ou dos [The] Doors, coube à canadiana o papel de arauto dos factos, circunstâncias e consequências de uma reunião que, à sua medida, ajudou a mudar o mundo – foi Mitchell que compôs a canção Woodstock, êxito na versão do grupo Matthews Southern Comfort e um sucesso ainda maior na interpretação dos "namorados" de Joni, o quarteto Crosby, Stills, Nash & Young. Em boa verdade, mesmo que Miss Mitchell figurasse no cartaz de Woodstock, as contas continuariam longe do equilíbrio de género. Um espelho do que acontecia na música popular há meio século, num abismo que foi apenas mitigado. Recorre-se a filmes, discos, programas e narrativas para concluir que houve apenas cinco mulheres com voz própria durante a maratona musical. Ou, para atendermos às reclamações dos mais rigorosos, a soma deve alargar-se às instrumentistas e "meninas do coro" que atuaram à sombra do líder do conjunto funk e soul Sly & The Family Stone. Mas isso seria partir para uma variante da contabilidade criativa, no mínimo.
A primeira mulher – não "dama de companhia" – a atuar deveria ter sido a primeira voz a ouvir-se em Woodstock. Nansi Nevins liderava o grupo Shearwater, um dos precursores do folk psicadélico da costa oeste dos Estados Unidos. Acontece que a banda foi vítima do infernal engarrafamento que atrasou meio mundo no caminho para o recinto, acabando Richie Havens a ser convocado para o pontapé de saída. Ironia ou não, o grande momento de Havens cumpriu-se com uma adaptação de uma canção tradicional, Motherless Child, que abria o álbum de estreia dos Sheawater que atuaram mais tarde e sem grandes condições sonoras para que se usufruísse de um som delicado, que incluía, e de forma destacada, o violoncelo e a flauta transversal. Três meses depois do festival, um acidente de viação deixou sequelas irreversíveis em Nansi que não conseguiu mais do que um rodapé na enciclopédia da música moderna.

Mais tarde, apareceu outra norte-americana, Melanie Safka, também fora da ordem pré-estabelecida, uma vez que atuou na vez da Incredible String Band que se guardou para o dia seguinte, evitando assim a chuva torrencial que a voz de What Have They Done To My Song Ma (título original, depois modificado para Look What They’ve Done…) teve de enfrentar. Curiosamente, a cantora – então com 22 anos – acabou por ser uma das primeiras artistas brindada com uma emocionante ajuda na iluminação: os muitos milhares da plateia iniciaram um ritual que consistiu em acender velas e mais velas (antecessoras dos isqueiros e, agora, das luzes dos telemóveis) para saudar a coragem de Melanie que, um ano depois, evocaria a ocasião – aflorando também a guerra do Vietname – numa das duas melhores criações, Lay Me Down (Candles In The Rain).
Para fechar o primeiro dia, a terceira dama: Joan Baez que, aos 28 anos, já era literalmente uma veterana depois de se ter estreado, em 1959, no festival folk de Newport. Baez vivia um dos ciclos de enorme ativismo, estava grávida de seis meses e tinha o marido preso e em greve da fome em protesto contra a mobilização para a guerra na Ásia. Ironizando sobre a hora tardia a que começou a sua atuação – muito longe do pior que estava para vir –, saudou o público com um "Bom dia". Mas esteve em palco mais de uma hora, tempo suficiente para não deixar escapar Joe Hill ou I Shall Be Released (de Dylan), Swing Low Sweet Chariot ou We Shall Overcome, o hino omnipresente dos guardiões do folk.
Para a segunda jornada estava guardada Janis Joplin, então com 26 anos – pouco mais de um ano depois estaria morta, às mãos de uma dose excessiva de heroína. Tinha trocado de banda, deixando a Big Brother & The Holding Company e iniciando um percurso muito curto com a Kozmic Blues Band. Todas as crónicas, a par dos registos sonoros, teimam em apontar Janis como uma das triunfadoras de Woodstock, apesar da hora algo inconveniente (entre as duas e as três da manhã), com uma entrega total às canções que se tornaram património patenteado, como Piece Of My Heart, Ball and Chain, uma abordagem quase desesperada de Work Me, Lord, ou fenomenais versões de Summertime (Gershwin) e de To Love Somebody (dos Bee Gees).

Se o horário de Joplin parece bizarro, o que foi parar ao colo da última das mulheres em palco é surrealista: Grace Slick, com os Jefferson Airplane, começou a atuar às oito da manhã, ainda para esgotar… a segunda noite. Slick tinha 29 anos – o que fará dela, ainda em 2019, uma octogenária… – e a banda ainda gozava em pleno os favores da crítica e do público. Estava a caminho de editar o álbum Volunteers, cuja canção-título valeu mais uma etapa na contestação ao conflito no Vietname, acabando por transformar-se num dos hinos do festival. Mas não faltaram temas como The Other Side Of This Life ou Plastic Fantastic Lover, bem como os inevitáveis White Rabbit e Somebody To Love. No total, foram menos de cinco horas, as "reservadas" para as mulheres. Podemos pensar – e desejar – que hoje esta repartição seria diferente. Infelizmente, os arquivos não retiveram os nomes de outras duas mulheres que ficam ligadas à mitologia de Woodstock: as que foram protagonistas dos partos ali realizados durante o Festival. Mas há mais consequências na herança dessa reunião caótica, anárquica, mas que só registou três vítimas mortais (e uma delas foi atropelada… por um trator): desde logo, a mudança de comportamentos e a concentração da prática do "amor livre" numa explosão que ainda partia da legalização da pílula anticoncecional nos Estados Unidos. Por fim, não são poucos os analistas que defendem que, até aí, "nunca se tinha exposto tanto o corpo". Era a chegada dos padrões geométricos e coloridos, dos vestidos largos, das botas pelo joelho, múltiplas referências à cultura indígena (sim, a dos índios), a primazia do conforto e de escolhas absolutamente descomprometidas face aos códigos vigentes. Há sites que defendem que Woodstock continua a dar cartas na moda, 50 anos depois [veja-se neste número a produção com Arizona Muse, na página 72 e seguintes], algo que ninguém poderia imaginar a partir de um festival "de paz e de música".
