Presas em terra de ninguém
Há quatro mulheres com documentos portugueses em campos na Síria. Outras sete foram casadas com jihadistas lusos. Juntas tomam conta de mais 20 crianças com direito à nacionalidade portuguesa.

"Alhamdulillah, cheguei em segurança ao Shaam. Irmãs, não hesitem. Sinto-me tão bem em casa. In Shaa Allah, Alá irá reunir-nos a todos em breve." Estávamos em agosto de 2014. E foi com estas quatro simples frases que Ângela Barreto anunciou à família e aos amigos, através da sua página no Facebook, aquilo que, durante meses, tinha organizado em segredo: a viagem para a Síria para ir viver sob o jugo do autoproclamado Estado Islâmico (EI). Os preparativos também tinham sido feitos online. Foi aí, na Internet, que conheceu o jihadista português Fábio Poças, com quem viria a casar em Raqqa, a chamada capital do grupo terrorista.
Os primeiros tempos correram-lhe bem. "Antes chamava alegria a momentos temporários de felicidade. Só agora, que vim para um Estado Islâmico, percebi que todos os ingredientes da felicidade estão aqui, pois estou no paraíso", escreveu no Facebook. À família dizia que fazia uma vida normal, ia ao supermercado, às compras e, sobretudo, não sentia nas ruas olhares reprovadores por cobrir todo o corpo de negro. Numa entrevista ao jornal holandês De Telegraaf, dada depois de a sua viagem ser divulgada pelos órgãos de comunicação social, afirmou: "Estou aqui pela minha fé. Escolhi viver no Estado Islâmico. Aqui não recebo olhares estranhos por causa da minha burqa. Odeio a Holanda. Aqui não sou abordada, nem abusada. Aqui é mais fácil professar a minha fé de acordo com o Corão e a Sunnah." E garantia: "Nunca mais vou voltar, nem que me oferecessem um milhão." Passara a chamar-se Umm Al Andalus.

Quase cinco anos depois, tudo mudou na vida de Ângela Barreto. O marido, Fábio Poças, que dava pelo nome muçulmano de Abdurahman Al Andalus, morreu há cerca de um ano. Ela e os dois filhos do casal, uma rapariga e um rapaz, acompanharam a fuga dos membros mais radicais do Estado Islâmico de aldeia em aldeia até ao último reduto dos jihadistas, Baghouz, uma pequena localidade na margem do rio Eufrates. Durante meses sobreviveram aos bombardeamentos e aos ataques das tropas da coligação internacional, acompanhados no terreno pelas tropas curdas, as SDF (Syrian Democratic Forces, em inglês). Mas foi já com a filha mais velha ferida por um estilhaço de bomba na cabeça que a luso-descendente entrou no campo de Al-Hol, no nordeste da Síria, no final de março deste ano.
A criança acabou por não resistir aos ferimentos. Morreu a 4 de abril, véspera de Ângela dar uma entrevista à RTP, onde explicou o que aconteceu à filha. "Um estilhaço da bomba ficou-lhe na cabeça. Esteve 10 dias no hospital e nos primeiros cinco dias não me permitiram estar com ela. Ia todos os dias à direção do campo dizer que queria ir ter com a minha filha, mas diziam-me que não podia", contou, em inglês. Quando chegou ao campo, disseram-lhe que o fragmento acabaria por sair. Mas, sem melhoras, ao fim de uma semana foi ao hospital de Al Assakah fazer uma TAC. "Não falava, não andava, os olhos andavam à volta. Só então me disseram que tinha mesmo de ir ao hospital ou ela podia morrer. E quando a levei ao hospital disseram que não a podiam operar porque já deveria ter ido antes." O estilhaço estava demasiado profundo. Por fim, desabafou: "Ainda bem que a minha filha partiu porque isto não é fácil."
Ângela sabe do que fala. A vida no campo de Al Hol é tudo menos fácil. Não só devido à detenção, mas sobretudo por causa da sobrelotação e da incerteza quanto ao destino de milhares de mulheres e crianças. Com a derrocada do Estado Islâmico, mais de 10 mil jihadistas foram parar a prisões controladas pelos curdos e por outras forças rebeldes na Síria. Destes, cerca de 2 mil serão europeus. Mas é em relação às suas famílias que os números se tornam verdadeiramente assustadores. De acordo com as mais recentes estimativas, só no campo de Al Hol encontram-se 74 mil mulheres e crianças, das quais 10 mil são estrangeiras ? justamente aquelas que são consideradas as mais perigosas e radicais e que estão a criar, ali, sob vigilância, um mini-califado islâmico.

As tendas brancas onde estão alojadas espalham-se por uma extensão de terreno de terra batida a perder de vista, onde crianças brincam entre a sujidade, dejetos e lama. A comida é limitada. E os cuidados de saúde escasseiam. No campo, as três pequenas clínicas existentes não têm recursos para tratar tantos feridos. Muitas vezes os médicos não têm mais do que antibióticos para lhes dar. De acordo com as Nações Unidas, estas crianças sofrem de cansaço, trauma, anemia e fome. Nos últimos meses centenas faleceram vítimas de ferimentos, fome, frio e outras doenças desde que deixaram Baghouz, onde serviram de escudos humanos enquanto os seus pais lutaram até à morte. Haverá ainda mais de 1.200 mulheres grávidas.
Com falta de recursos para as manterem indefinidamente, as forças curdas têm apelado aos países europeus que recolham os seus nacionais. Contudo, até agora, muito poucos aceitaram fazê-lo. França, recentemente, repatriou um pequeno grupo de crianças órfãs e entregou-as às famílias. A Bélgica diz também estar disponível para levar para casa os menores de 10 anos, mas não os seus pais. Só a Macedónia repatriou – e julgou – vários combatentes em agosto do ano passado. Já a Rússia, desde o verão de 2017, resgatou centenas de crianças e mulheres.
A norma entre os países ocidentais – onde se inclui Portugal – é a recusa de resgatar cidadãos que possam pôr em causa a segurança nacional. Publicamente, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, tem defendido que esta é uma questão muito "complexa" que "está a ser tratada com toda a atenção e a necessária reserva" e que procura "compatibilizar" dois objetivos: "A defesa da segurança nacional e a proteção de concidadãos em situação vulnerável."
No fundo, estas mulheres e crianças encontram-se num limbo. Estão em campos de detenção, de onde não podem sair, mas não estão oficialmente presas. Também não são consideradas refugiadas. Se conseguirem chegar a uma representação diplomática portuguesa e pedirem apoio, o governo terá de as ajudar a regressar à Europa. Mas como não estão autorizadas a abandonar os campos onde se encontram, ninguém as vai buscar. Uma situação que não se sabe quanto tempo durará, mas que não poderá prolongar-se eternamente. "Os curdos têm recursos limitados e, mais tarde ou mais cedo, aquelas pessoas terão de sair dali", diz à Máxima uma fonte dos serviços e forças de segurança que acompanha de perto o fenómeno terrorista. "Mas, para já, nada está a ser feito", garante. Contudo, ao nível dos Serviços de Informações e das polícias portugueses, a posição dominante é que estas famílias ? sobretudo as crianças ? devem poder regressar à Europa. Isso mesmo foi assumido pela Secretária-Geral do Sistema de Informações da República Portuguesa, embaixadora Graça Mira Gomes, num seminário, realizado no passado dia 11 de março, por ocasião do 5.º aniversário do Dia Europeu em Memória das Vítimas do Terrorismo. "Na zona de conflito da Síria/Iraque permanecem em campos de detenção filhos de cidadãos de origem europeia, de ex-combatentes. Entre eles alguns poderão ter pais ou mães portuguesas. Eles não escolheram, nasceram durante a ascensão, o domínio e o declínio da organização terrorista Daesh, foram transformados em danos colaterais de uma guerra a que são alheios e a violência é, provavelmente, a única realidade que alguma vez conheceram", disse. "Estas crianças merecem ser objeto de um apoio especial em termos de reintegração ou de enquadramento na sociedade", continuou. Para isso, "nada melhor do que voltar à escola, de poder brincar com outros colegas". Um processo que, assumiu, não será "fácil" nem "rápido" e requererá uma abordagem "interdisciplinar" entre vários atores da sociedade: polícias, justiça, saúde, educação, segurança social, habitação e serviços de informações.
Mas em última instância, a decisão de ir buscar estas mulheres e crianças será sempre do governo. Que, além do contexto nacional e europeu, enfrenta ainda outra dificuldade: como as forças curdas não são uma entidade estatal internacionalmente reconhecida, os governos europeus não podem abrir canais de negociação oficiais, sob o risco de hostilizarem países aliados como a Turquia. São rebeldes que lutaram no terreno contra o Estado Islâmico, com o apoio militar declarado da coligação internacional, mas são também vistos como terroristas pelo governo de Ancara. É por isso que todos os contactos existentes entre as famílias destas mulheres e crianças e o Estado Português têm sido feitos através da intermediação da Cruz Vermelha Internacional.
Os números
Ângela Barreto é apenas uma de quatro mulheres com documentação portuguesa que se encontram em campos de detenção na Síria. As outras são Vânia Chérif, Catarina Almeida e Isabel Barnoui, retidas nos campos de Roj e Ain Issa. A estas juntam-se outras sete mulheres de cinco nacionalidades que foram casadas com jihadistas portugueses com quem tiveram vários filhos. Ao todo, haverá 20 crianças com pais portugueses ? a maioria já falecidos – retidas na Síria.
Vânia Lopes Cherif e Catarina Almeida encontram-se no campo de Roj, também ele controlado pelas forças curdas. A primeira, natural de Carrazeda de Ansiães, vivia em França quando, aos 21 anos, viajou para a Síria com o marido, o franco-tunisino Malik Sherif. Com eles foi também um bebé com poucos meses. Já na Síria nasceu mais uma menina do casal. Quando o marido morreu, Vânia, de 24 anos, tentou fugir. Mas foi capturada pelas tropas curdas e levada para Roj. Em entrevista à SIC garantiu que pensava estar a ir de férias para a Turquia e que foi enganada pelo marido: "[Ele] trouxe-nos sem eu saber. Fomos para a Turquia de férias e depois, porque não sei falar a língua nem nada, dei-me conta que estávamos na Síria. Ele disse-me que se arrependia, que não sabia que isto era assim e queria voltar para casa. Mas as coisas não foram assim tão fáceis."
No campo de Roj, tal como em Al Hol, as condições são duras. "Faz frio, tenho duas crianças, a minha filha mais velha está doente do coração, precisa de ser vista por um especialista, mas aqui não há. Ninguém me ajuda. Não há comida, dinheiro, nada. (…) A minha filha está doente, o que eu vou fazer?", questionou. "Não sabia que vinha para aqui. Todos cometemos erros. Todos temos direito a uma segunda oportunidade", disse, antes de garantir: "Não temos ‘pinta’ de terroristas ou de fazer atentados. A única coisa que queremos é voltar para Portugal e para as nossas famílias. Não têm de ter medo de nós."
Foi em Roj que Vânia conheceu Catarina Almeida. Com raízes na Guarda, mas nascida em França, esta mulher, de 57 anos, diz ter uma história diferente. De acordo com o que contou às autoridades locais e também numa entrevista à SIC, viajou para a Síria para tentar salvar o mais velho dos seus quatro filhos, Dylan Omar Almeida, quando soube que ele se tinha juntado ao autoproclamado Estado Islâmico. "Apanhei um avião, queria vir buscar o meu filho mas ele não queria sair, queria ficar na Síria", disse. Muçulmana convertida após o segundo casamento, Catarina viajou primeiro para Gaziantep, na Turquia, e daí atravessou a fronteira. Primeiro esteve em Manbij – cidade onde viveu Ângela Barreto –, depois em Raqqa e mais tarde fugiu para Deir ez-Zor. Foi aí que pagou a um contrabandista para a levar para a Turquia com o neto. "Mas ele entregou-me aos curdos." Passou três meses na prisão antes de ser levada para o campo de Roj. "Consegui salvar o filho do meu filho. Mas agora não tenho novidades, nem do meu filho, nem da mãe do meu neto", garantiu. "Eu tinha uma vida antes, uma casa, uma família, ia de férias para Portugal. Nunca pensei ficar aqui ‘entalada’", disse, antes de afirmar: "Não sou terrorista."
No entanto, tal como em relação às outras mulheres detidas, o grande desafio das autoridades é confirmar se as histórias de inocência que contam são verdadeiras. E na maioria dos casos, a menos que haja testemunhos, tal é muito difícil. Se no caso de Vânia, a maioria das fontes contactadas pela Máxima é da opinião de que ela diz a verdade, no caso de Catarina a história é mais complicada e existem dúvidas sobre qual foi o seu verdadeiro papel durante o tempo que passou na Síria. Dúvidas que aumentaram, recentemente, depois de o jornal Le Parisien divulgar que Catarina não deixou que o neto, de três anos, fosse resgatado pelo governo francês. Segundo o mesmo jornal, a criança devia estar entre o grupo de cinco menores que foram salvos no início de março. O que só não aconteceu porque Catarina Almeida não permitiu. "Esta franco-portuguesa passou vários anos no autoproclamado califado. O seu filho morreu em combate. E isso dá-lhe uma forte ascendência sobre as outras mulheres. Os guardas curdos hesitaram perante a determinação da matriarca e recuaram perante a sua cara ameaçadora", escreveu o jornal. Já ao site Franceinfo, a avó materna da criança, Nádia, lamentou-se: "Ela já me roubou a filha e agora ela rouba o meu neto. Sem essa criança ela estaria na prisão." A advogada francesa Samia Maktouf, que representa a família materna da criança, confirmou: "O comportamento dessa pessoa perigosa, recrutadora, na linha da ideologia mortífera do Daesh, impediu o repatriamento dessa criança." Ao Expresso a jurista foi mais concreta: "O estado, as polícias francesas e os serviços secretos conhecem bem esta mulher. E sabem o perigo que ela representa. Catarina era em França uma recrutadora ativa de jovens e de crianças para o Daesh, tendo radicalizado várias pessoas." E concluiu: "Catarina está a usar o neto como refém, como escudo para poder escapar à prisão."
No mesmo campo estão ainda a luso-francesa Isabel Barnoui e várias viúvas de jihadistas portugueses, nomeadamente Fatuma Majengo e Reema Iqbal. Nascida na Tanzânia, a 20 de novembro de 1993, Fatuma Majengo conheceu Edgar Rodrigues da Costa quando este último teve treino terrorista no país, no início de 2012. Casaram e quando voltaram à Europa instalaram-se em Massamá. Foi na freguesia da Venteira, na Amadora, que a 25 de julho de 2013 nasceu o primeiro filho de ambos, Zakaria. Em outubro desse ano, o casal viajou para a Síria e aí tiveram mais duas crianças: Maria e João. Já no território do Estado Islâmico, Edgar casou, pela segunda vez, com a indonésia Seri Kejiki. Esta e o filho de ambos, Suleiman, encontram-se no campo de Ain Issa. Em Roj, Fatuma estará na companhia de Reema Iqbal, uma britânica de origem paquistanesa que, ainda em Londres, casou com Celso Rodrigues da Costa, irmão de Edgar. No Reino Unido, Reema teve o primeiro filho de Celso, Ibraheem. Já na Síria nasceu o segundo filho do casal, Musa. Tal como o irmão, Celso Rodrigues da Costa arranjou uma segunda mulher na Síria. Alemã de origem bósnia, Sabina Tafilovic encontra-se detida no campo de Ain Issa acompanhada pela filha, Aisha. Em Ain Issa está também Zara Iqbal, irmã de Reema e viúva de Sadjo Turé. Os dois conheceram-se e casaram em Londres. No final de 2011 viajaram para a Tanzânia, onde as autoridades acreditam que Sadjo e os amigos tiveram treino terrorista. Foi aí, em Dar es Salaam, que a 9 de fevereiro de 2012 nasceu o primeiro filho de ambos, Yusha. A criança acabaria por ser registada na secção consular da embaixada de Portugal em Ancara, na Turquia, a 9 de agosto desse ano.
Após o regresso a Londres, Sadjo acabou por ser preso pelas autoridades britânicas por suspeita de atividades terroristas. Em liberdade, Zara viajou para Portugal de onde partiu – novamente grávida – com o filho para a Síria. Sadjo juntou-se-lhes, em 2014. Aí conheceu Dasia e teve mais uma criança, Yunus.
Em campos na Síria estarão ainda a viúva de Sandro Marques, a britânica de origem zimbabweana Mayibongwe Sibanda, e a filha de ambos, Yaminah, bem como Ruzina Khanham, a primeira mulher de Fábio Poças, que viajou para a Síria com a filha do casal, Noor.
Todas, sem exceção, querem regressar à Europa. Seja ao Reino Unido, a França ou a Portugal. No caso das mulheres com origens britânicas, tal poderá ser complicado, uma vez que o governo de Londres decidiu retirar a nacionalidade a várias delas com o argumento de que poderão pedir a cidadania dos países de origem das famílias – o que estes rejeitam. Isso fará com que as mulheres possam não ter outra saída do que recorrer à nacionalidade portuguesa das crianças para arranjarem uma saída: ao contrário de outros países europeus, a lei portuguesa não permite a retirada da cidadania.
Caso consigam regressar serão provavelmente presas – algo que, para elas, é preferível à situação atual. É esse o caso de Ângela Barreto. Inserida na lista de combatentes terroristas estrangeiros da Holanda, em dezembro de 2016, a luso-descendente sabe que é alvo de um mandado de captura europeu por suspeitas de recrutar três adolescentes holandesas, através da Internet, quando já estava na Síria.
Na entrevista à RTP, Ângela esqueceu a anterior promessa de não voltar à Europa, nem que lhe oferecessem "um milhão de euros", e disse querer vir para Portugal: "Se me aceitarem de volta estou disposta a ir." Para isso precisa apenas que o governo autorize a Cruz Vermelha Internacional a transportá-la para uma zona de trânsito. Algo que se não se afigura fácil já que a própria parece continuar a defender os ideais que a levaram à Síria. "Acredito num Estado que siga as regras do Islão. Eu apoio as regras do Islão, usar o hijab, não fumar… O Estado Islâmico foi por vezes noutra direção", afirmou. Caso a autorização para viajar não surja – que implicaria sempre uma extradição para a Holanda, que também não está disposta a ir buscá-la –, o futuro é incerto: "Se não me aceitarem, eu tenho de ver como saio disto."
