O nosso website armazena cookies no seu equipamento que são utilizados para assegurar funcionalidades que lhe permitem uma melhor experiência de navegação e utilização. Ao prosseguir com a navegação está a consentir a sua utilização. Para saber mais sobre cookies ou para os desativar consulte a Politica de Cookies Medialivre
Atual

"Os desequilíbrios na saúde mental, as desigualdades económicas e a discriminação persistem em proliferar"

Dotada de uma voz inconfundível e rica em sonoridades, Selma Uamusse não é desconhecida ao coletivo artistísco português - pelo contrário - mas agora dá cartas em nome próprio com o novo (e segundo) disco Liwoningo.

Foto: Luís S Tavares
09 de setembro de 2020 às 07:00 Rita Silva Avelar

Depois de ter esgotado o concerto de apresentação na Gulbenkian, o novo disco de Selma Uamusse viu a luz do dia. Em Liwoningo, a artista confirma aquilo que já sabiamos: Uamusse desmultiplica-se em mil sonoridades, criando um registo musical autêntico que soa a alegria e apela a um lado solar. Liwoningo significa precisamente luz, em Chope, uma das línguas tradicionais de Moçambique.

Nascida em Moçambique, em 1981, mudou-se para Portugal com apenas 7 anos, canta desde adolescente, percorrendo musicalidades tão distintas como o o rock (WrayGunn), o afrobeat (Cacique’97), passando pelo gospel Gospel Collective, Gospel Sisters), pela soul e pelo jazz (Rodrigo Leão, tributos a Nina Simone e Miriam Makeba) sempre a par de cantar também sobre o poder transformador social e político de música. Com o primeiro disco, Mati, lançado em 2018, atuou em 9 países numa tour com mais de 60 concertos. (que significa luz em Chope, uma língua tradicional de Moçambique). As suas colaborações com artistas portugueses são frequentes: Ana Bacalhau, Rita Redshoes, Márcia, The Legendary  Tigerman, Luisa Sobral, Elisa Rodrigues são apenas alguns exemplos.

Em 2019, Selma foi a mentora e a organizadora do movimento "Mão Dada a Moçambique", que reuniu mais de 50 artistas e figuras políticas que contribuíram com a sua voz e presença no evento de angariação de receitas para combater a catástrofe humanitária resultante da passagem do ciclone Idai, em Moçambique. A preocupação com o seu país, sobretudo ao nível social e político, evidencia-se em Liwoningo.

Sentiu a urgência de cantar sobre o que está a passar no seu país, e também um pouco pelo mundo?

As mensagens que procuro transmitir às vezes são particularizadas, mas partem sempre de uma base de uma mensagem comum e mais global das realidades que vivo sejam elas portuguesa, moçambicana ou de alguma nação que conheça. Vivemos num tempo em que apesar de haver imenso avanço tecnológico, níveis de riqueza nunca dantes imaginado, medicina avançada, maior consciência ecológica, os desequilíbrios na saúde mental, as desigualdades económicas, de acesso a saúde e transporte, preconceito, discriminação e assimetrias persistem em proliferar.

Considera-se uma ativista?

Nesse sentido, não sendo uma ativista política (talvez mais social), mas considerando que todos os nossos comportamentos são um ato político, senti que era preciso dizer ao mundo que precisamos mesmo de ser Sal e Luz. De forma mais particular há situações, como os ataques terroristas que estão a acontecer em Cabo Delgado em Moçambique, que são naturalmente alvo da preocupação, mas canto sobre agir em todas as nossas áreas de influência, pela paz, pela não indiferença, por uma vida vivida com propósito, por ser influência, por ser resiliente, cheio de amor e gratidão.

De que maneira é que as suas convicções humanísticas se expressam em Liwoningo?

No tema "Mama" canto um elogio às nossas mamãs africanas que tanto sacrificam para poderem dar uma vida melhor aos seus filhos, há uma exaltação do papel da mulher e do sofrimento atroz que muitas sofrem em prol das suas famílias, no tema "No Guns" "aponto" o dedo à responsabilidade de quem governa, dirige no sentido de não promoverem guerras ou leis que "matem as nações" e desafio no "Maputo" a mantermo-nos fiéis aos nossos valores independentemente das circunstâncias adversas pelas quais passamos. Aqui e ali há sempre um apontar do Liwoningo a olhar para o outro, para o proximo de forma generosa e compaixão e este é um desafio que coloco em primeiro lugar a mim mesma.

Por outro lado, Liwoningo significa luz em língua chope. Há sempre uma esperança de mudança?

Tenho sempre essa esperança de mudança, não por ingenuidade mas por fé que o principal propósito para o qual fomos concebidos é o de mudar de forma positiva e construtiva a nossa envolvente e o nosso mundo.

Foto: Rafael Berezinski

É um disco solar e "doce". Este conceito da luz atravessa todo o disco? Como nasce o conceito deste projeto?

Penso que sim, a luz vai acompanhando todo o disco, por vezes de forma mais evidente de outras menos. Comecei cedo a traçar o caminho deste segundo álbum e antes de pensar em canções pensei do conceito, a LUZ. Muita da luz que temos [em nós] quase sempre serve para o nosso reservatório individual e é usada de forma autocentrada. O Liwoningo é no fundo um desafio a mim mesma, mas também a quem me escuta para deixarmos a nossa luz irradiar e tocar a vida das pessoas dentro e fora da nossa área de influência, com pequenos ou grandes gestos mas num claro "não" à indiferença perante o que se passa à nossa volta.

Reúne um conhecimento de sonoridades que vão do rock ao gospel, passando pelo afrobeat, jazz e, claro, soul. É uma mescla de influências que a deixa feliz?

Não sei é a mescla que me deixa mais feliz, mas garantidamente a "mescla" é quem sou, e acredito que todos nos sintamos mais felizes quando somos honestos com nós próprios, inclusive no processo de fazer música. Ainda assim dentro dessa "mescla", busco sempre a coerência e tenho trabalhado para criar uma mistura fina de todos estes amores musicais em estúdio e no palco. É no entanto difícil esquecer a espiritualidade e liberdade que aprendo com o gospel, a irreverência e postura em palco que trago do rock, a dança e carácter de intervenção do afrobeat, o improviso e matemática do jazz e a alma da soul quando faço e componho a minha música, principalmente quando estou em palco. Trago todos estes mundos porque são naturais e estou de certa forma entranhados em mim e isso faz-me feliz.

Se num primeiro disco estava em descoberta, este revela uma nova maturidade. O que é que a música lhe tem ensinado sobre si própria?

Esta "possível maturidade" implica correr mais riscos e saber que errar faz parte do processo de aprendizagem e construção de quem sou pessoal e artisticamente. Sobre mim tenho aprendido o quão importante é não ter receio de fazer e ainda menos de errar mas penso que a maior lição tem sido aprender a gerir o tempo. Saber esperar, ser paciente e resiliente. Não desistir daquilo em que acredito, daquilo que é o meu propósito e papel na música e claro nunca desistir de fazer a minha caminhada, combatendo um bom combate, permanecendo e buscando sempre a minha identidade.

Quão essencial é entregarmo-nos à música, à dança, nestes tempos sombrios e incertos?

A música e a dança são formas de expressão corporal e emocional mas para mim também uma forma de expressão espiritual. São parte de quem sou quando quero comunicar com os outros, com Deus e comigo mesma por isso serão sempre uma arma que me enche de paz, alegria e acima de tudo esperança neste tempo sombrio... a "luz/liwononingo" no meio das trevas e escuridão sem dúvida. De forma quase mágica quando canto e danço estou no meu elemento e pouco mais importa. Haverá quem sinta esta entrega na escrita, na pintura, leitura, tempo com familía mas acredito que a Arte de uma forma geral tem algo de "divino" e que cura a nossa alma, afasta a incerteza e traz esperança.

As Mais Lidas