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O Jazz, o assédio e o #MeToo em Portugal. “Aliciou-me para uma noite de prazer que acabou comigo a fugir da Ajuda”

Já se contabilizam cerca de 100 acusações desde que Liliana Cunha expôs o seu caso. A Máxima falou com a DJ sobre a denúncia que tem vindo a abalar a indústria do jazz, agora que se passaram semanas da explosão daquilo que pode vir a ser o #MeToo português.

Foto: @Sérgio Monteiro
21 de novembro de 2024 às 11:39 Joana Rodrigues Stumpo

"Aliciou-me para uma noite de prazer que acabou comigo a fugir da Ajuda às 6 da manhã com nojo, sujidade e tristeza". Tágide, nome artístico da DJ Liliana Cunha, partilhou a acusação na sua página de Instagram no dia 4 de novembro. Denuncia um caso de violação que sofreu em maio de 2023 às mãos de um pianista de jazz, cujo nome refere nessa denúncia - João Pedro Coelho. A queixa - que formalizou junto das autoridades - veio desvendar dezenas de outras situações abusivas no meio musical e não só.

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"O facto de ver várias amigas minhas do meu círculo abordadas e perseguidas nas redes sociais pelo João Pedro Coelho" foi, para a DJ, uma das principais razões para ter exposto o caso, apesar do tempo passado. À Máxima, diz que "o que me move é a reivindicação e o meu ocupar do espaço público enquanto mulher séria, íntegra e conhecedora dos meus direitos e deveres. Uma vítima tem a vontade simplesmente de poder contar a narrativa através dos seus olhos, de se sentir válido e de ter essa opção e direito". Para ajudar a concretizar a opção de denúncia, Liliana está a colaborar numa recolha de testemunhos de vítimas de assédio sexual através de um endereço de email. E, desde que partilhou a sua história nas redes sociais, já são cerca de 100 as acusações contabilizadas.

Abuso de poder, violação, perseguição e agressão sexual são algumas das práticas a ser denunciadas, bem como stealthing. A palavra diz respeito ao ato de, durante a relação sexual, retirar o preservativo sem o consentimento do parceiro, colocando-o em risco de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis e de gravidez indesejada. Para a DJ, deve ser "reconhecido e abordado como um problema sério de agressão à autodeterminação e liberdade moral, mental e física de cada indivíduo(a)". Por isso, tem utilizado as suas redes sociais para partilhar uma petição pública que visa a criminalização do stealthing e que já soma cerca de 9500 assinaturas. Em países como a Espanha, Alemanha e em alguns estados dos Estados Unidos da América, a prática é considerada criminosa.

Das cerca de 100 acusações enviadas para o endereço disponibilizado, "entre 50 e 60" dizem respeito a João Pedro Coelho, o pianista que foi professor no Hot Clube de Portugal. O músico já fez chegar às suas redes sociais um comunicado em que afirma "a falsidade" da acusação "de práticas de cariz sexual" e onde se assume inocente. Face a esta negação, Liliana Cunha rejeita qualquer sentimento desmotivante. Diz, porém, que o pianista se deveria "consciencializar de que os seus atos afetaram dezenas, senão, centenas de raparigas e mulheres". Já o Hot Clube, instituição onde João Pedro Coelho lecionou, emitiu também um comunicado em que se demarca do caso. A associação esclarece que o músico cessou funções no ano letivo de 2022/23 e que o caso em questão "não está relacionado com a nossa instituição".

Porém, essa mesma declaração menciona "duas situações de assédio" que foram identificadas no ano letivo 2021/22 e que levaram ao "afastamento dos professores em causa". Face às acusações, o Hot Clube anunciou a criação de um Código de Conduta, um Gabinete de Apoio ao Aluno e um Canal de Denúncia.

O nome apontado por Liliana Cunha a 4 de novembro não é o único a ter ecos em várias acusações. Um saxofonista, atualmente docente na Universidade de Évora e presidente da Associação de Jazz de Leiria (AJL), tem sido alvo de "várias queixas" recebidas no endereço de email partilhado pela DJ. Aliás, as denúncias contra o músico - que terá sido um dos docentes afastados do Hot Clube de Portugal após uma queixa de assédio - já levaram à demissão de um professor da Escola de Jazz de Leiria. "Não me revendo na posição que a AJL adotou, sinto-me obrigado a cessar todas as minhas funções para com esta entidade", escreveu Paulo Jorge Batista Santo no Instagram. Cessou funções enquanto docente e como membro da Orquestra de Jazz de Leiria, por ter entrado em desacordo com a AJL face ao silêncio da associação, como reportou o Jornal de Leiria. Desde a demissão do docente, que terá sido comunicada à instituição no dia 9 de novembro, a associação já se pronunciou relativamente ao assunto: vai manter na presidência o músico acusado de assédio. Em comunicado, a AJL informa que "deliberou pela não destituição do Presidente" e que nunca o mesmo "foi alvo de qualquer queixa por parte de docentes ou alunas da Escola de Jazz de Leiria, nunca tendo sido relatados quaisquer comportamentos menos próprios atribuídos ao visado".

Liliana Cunha diz que já conhecia de vários casos de abuso sexual no universo do jazz em Portugal, "simplesmente estavam abafados", explica. Ainda assim, não é só desta indústria musical que chegam as queixas de práticas abusivas. "Espalham-se para o fado, eletrónica, rock e indústria do teatro, produção e audiovisual também", esclarece a DJ. Já se conta cerca de uma centena, ainda que "dar a cara tenha um custo. É uma avalanche, consome-te mentalmente e fisicamente". Tágide conta que "houve já tentativas de exposição de casos gravíssimos de abuso de poder, assédio e violação dentro do meio musical, teatro, cinema e audiovisual". Atribui, no entanto, a falta de sucesso de iniciativas passadas ao "facto de que não tinham um rosto". Na denúncia do assédio no jazz não há apenas um rosto - são dezenas os que se juntaram para pôr fim ao silêncio.

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