Nuno Maulide: "Ainda existe estigma à volta do envelhecimento. É química, é uma oxidação, é uma combustão"
O cientista português, professor em Viena e eleito Cientista do Ano em 2018, esteve em Lisboa e conversou com a Máxima sobre o seu novo livro. Numa troca de palavras fluída, lembra como a Química toca todas as questões da nossa vida, até as mais existenciais.

O que dizer de um livro cujo título é: "Como se transforma ar em pão?". Não era o título eleito por Nuno Maulide, mas no fim da edição teve que concordar que esta pergunta reunia intriga, sensacionalismo, dúvida e algum cepticismo. Cientista e professor premiado, Nuno Maulide nasceu em Lisboa mas cedo quebrou fronteiras para continuar a estudar a sua área de especialização: a Química. Atual diretor do Instituto de Química Orgânica da Universidade de Viena, Nuno foi eleito Cientista do Ano em 2018, e logo depois percebeu que tinha uma missão: tirar o rótulo de bicho papão da Química. Durante praticamente todo o tempo da pandemia dedicou-se a escrever um livro com a jornalista Tanja Traxler. Na contracapa do livro, editado pela Planeta, lê-se: "A Química não tem boa fama." Por isso, e ao longo de 200 páginas, propôs-se a responder a questões com que nos cruzamos frequentemente no nosso quotidiano que envolvem Química (e que por vezes nem sonhamos).
Antes desta entrevista, Nuno Maulide senta-se ao piano do Hotel Florida para tocar, enquanto ensaia a pose para uma fotografia, de forma tão segura como a que nos responde às questões que lhe colocamos.
A Química não foi um acaso, mas também não foi uma escolha assim tão premeditada. Era a paixão da música?
O que eu queria mesmo era ser músico. Ser pianista profissional. Fui fazendo os estudos de música ao mesmo tempo que seguia Ciências na Escola Secundária. Quando acabasse era o que queria seguir, a música. Estudei no Instituto Gregoriano de Lisboa, uma escola de vida, um sítio muito especial.

E aprender piano foi um acaso?
Quando eu estava na escola primária, houve um programa do Ministério da Educação que propunha ensinar música a crianças da escola primária utilizando um método que não é o normal quando se ensina música, é um método baseado em números. Usa-se uma série de simbologias à volta desses números, para substituir a conotação mais comum da música que são as pautas e as notas. A verdade é que isso desapareceu, mas nesse tempo tive a sorte de beneficiar dessas aulas. Cantávamos, escrevíamos, desenhávamos. No fim da escola primária, a professora contactou os meus pais para dizer que eu tinha muito talento e devia continuar a seguir música. Quando cheguei ao IGL (Instituto Gregoriano de Lisboa), perguntaram ao meu pai que instrumento eu iria escolher e ele disse que não sabia. Havia cravo, piano ou órgão. Escolhemos piano.
Conta, no livro, que por ser uma vida solitária, pensou em seguir outro caminho.
Sim, no fundo foi voltar a uma escola "normal", com uma vida escolar, com aulas todo o dia. O piano era um hobby para o qual eu nunca tinha muito tempo, e tinha sempre vontade de ter mais, mas quando se transforma um hobby numa profissão há ali qualquer coisa essencial que muda. Ter 8h por dia para se fazer só uma coisa é demasiado.

Uma perspetiva muito presente no livro é a de que a Química não tem boa fama. É esta a razão que justifica a escrita do livro?
Muitas pessoas que lêem o livro (na versão alemã) dizem-me: "Ah, se eu tivesse aprendido Química assim era completamente diferente." Longe de mim criticar programas de ensino, mas eu acho que há uma oportunidade muito grande para ligar a Química e os seus conceitos, a coisas que têm relevância no nosso dia a dia. Quando se aborda a Química dessa perspetiva, a pessoa percebe que se calhar vale a pena aprender determinadas coisas para perceber outras. Mesmo no Ensino Superior, eu sinto a necessidade de, sempre que possível, fazer a ponte entre estes conceitos muito abstratos com coisas do dia a dia, como é disso exemplo a química do enxofre. Quanto mais puxamos as coisas nesse sentido mais fácil fica desenvolver a apetência. Há muito mais na Química daquilo que é ensinado. E se as pessoas forem capazes de ter uma compreensão de base, que lhes permita extrapolar para outras coisas? Por exemplo, porque é que o óleo e a água não se misturam? O que devo fazer para conseguir uma vinagrete? A Química na Culinária é uma área riquíssima.

Há mais razões para a má fama da Química?
Sim, infelizmente não temos "advogados" para a nossa Ciência, como se calhar a Física tem. A Física tem um lobby fortíssimo, porque mesmo sem as perceberem o que quer que seja, estão convencidas de que aquilo é muito importante. Por que carga de água é que a descoberta de ondas gravitacionais muda a minha vida? No entanto, os físicos são ótimos a convencer todo o mundo a parar e a ficar surpreendidos com esse tipo de coisas.
Foi também por isso que quis escrever este livro?
Sim, porque me faz confusão que as pessoas tenham um fascínio por estas coisas tão abstratas, e por outro lado ficarem com ideias preconcebidas como acharem que tudo tem químicos, que a comida não pode ter químicos. O que não faz sentido, isso aliás é uma frase de desinformação. Tudo é Química. A mensagem transversal do livro é que não há químicos bons nem químicos maus, todos os compostos químicos podem ser bons ou maus dependendo da quantidade.
Se pudesse escolher um ensinamento do livro para contar a crianças, qual seria?
Ou o das maçãs (que fazem todas as frutas à sua volta amadurecerem mais rapidamente) ou o de se chorar quando se cortam cebolas. Porque são os mais comuns, e as crianças hoje em dia têm cada vez mais apetência para ajudar os pais a cozinhar.
O livro está estruturado em várias áreas, do ambiente à beleza, para esclarecer precisamente isso?
Sim. O livro foi orientado na base do: em que é que isto nos toca, e em que medida é fácil explicar como nos toca? É um livro que, se a pessoa sobreviver às primeiras 20 páginas, vai ler todas.
Chegar ao título foi difícil?
O meu primeiro título era: Tudo isto é Química. Mas depois achámos, em conjunto com a editora, que a palavra química não era boa para estar central. Um dos títulos possíveis era: porque é que choramos ao cortar cebolas?
Quais foram os capítulos que deram mais luta?
O primeiro, e o último, sobre a estética e a beleza, por ser mais abstrato. Chegando ao fim, podíamos dar-nos ao luxo de ter algo mais complexo.
Qual é o maior mito da indústria da beleza?
Que se consegue parar o envelhecimento com cremes. Os cremes são bons porque têm antioxidantes, retardam a oxidação, mas não param o envelhecimento. E alguns deles dão apenas "festas". É um mito. Era bom se nós, como sociedade, deixássemos de ter tanto estigma à volta do envelhecimento. É natural, é inevitável. O envelhecimento é química, é uma oxidação, é uma combustão dos nossos átomos de carbono que se vão oxidando em CO2. Os que estão dentro de nós não os vemos, o que estão fora geram as rugas. É uma reação do ponto de vista da termodinâmica (que estuda se uma reação é muito ou pouco provável), ou seja, se eu calcular a probabilidade de eu, ser humano, me transformar em CO2 e água, o ponto de partida está aqui, o ponto de chegada está lá em baixo [faz gesto]. Quando percebi isso assustei-me. Afinal estamos aqui num estado meta estável completamente à espera que o nosso destino se realize. Depois, e noutra área da Físico-Química, a Cinética diz-nos: quando a reação é provável, qual é a velocidade a que ela se dá? Felizmente a Cinética dá-nos alguns anos (risos).
O que é que a Química nos diz sobre a morte?
A morte é o equilíbrio químico. Todas as reações químicas tendem a atingir o equilíbrio. Que é um ponto em que o material de partida se está a transformar no produto, mas o produto também se está a transformar no material de partida e as velocidades relativas destas transformações são as mesmas. Isto é a definição de equilíbrio químico. Toda a vida está fora do equilíbrio, está a fugir do equilíbrio. Quando atinge o equilíbrio dá-se a morte. As milhões de reações que estão a acontecer dentro de nós quando é atingido o equilíbrio químico….
Viemos para destabilizar o que já cá estava, portanto.
É verdade. Mas não só nós. Todas as formas de vida.

Nuno Maulide, Lisboa, Tanja Traxler, Instituto de Química Orgânica da Universidade de Viena, CO2, Cinética, artes, cultura e entretenimento