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Isabel Stilwell: "Faz-me confusão a competição entre mães que as redes sociais encorajam."     

O livro "Birras de mãe" dá continuidade a um troca de palavras entre Isabel e Ana, mãe e filha, durante a adolescência da segunda, com um diário para cada uma. Agora, as conversas (e as birras) ganham novas temáticas com um humor que só se consegue com a cumplicidade da maternidade.

24 de novembro de 2020 às 08:29 Rita Silva Avelar

"Guerras entre uma avó e uma mãe, livres do politicamente correto." É assim que se apresenta o novo livro escrito em duo por Isabel e Ana Stilwell, mãe e filha.

Em "Birras de mãe" [Livros Horizonte], a escritora e a artista retomam um caminho literário que começaram na adolescência de Ana, e criaram uma espécie de manual destinado a ajudar mães e filhas a sobreviver aos primeiros braços de ferro, ou seja, a todas as situações em que a expressões "no meu tempo não era assim" e "nos tempos modernos é assim" vêm à baila.

Com um humor e uma complicidade evidentes, e vendo-se separadas durante o confinamento, as duas expõem a nu e com graça todas as pequenas (e grandes) birras que atravessam, afinal, todas as gerações, da avó à neta. Conversámos com as autoras, que mantêm o tom espirituoso e cúmplice do livro.

Como acontece com quase todas as mães e filhas ao longo da vida, há um momento em que as filhas descobrem que além da mãe existe uma mulher, e um momento em que as mães descobrem que além da filha há uma mulher e também uma mãe (quando acontece). Também se passou assim convosco?

Isabel: Tem dias :). Para dizer a verdade há momentos em que sinto a Ana um bocadinho minha mãe, porque tem uma capacidade enorme de ouvir e proteger, mas geralmente não consigo mesmo deixar de a ver como filha. E de a querer manter debaixo da asa. E há ainda aqueles em que a vejo num palco ou numa conferência e penso "Aquela mulher tem muita pinta!". E andamos nisto.

Ana: Eu acho que muitas vezes é justamente com o nascimento dos netos que se dá essa grande mudança na percepção e na relação entre mães e filhas. É no fundo a grande realização daquela profecia do "quando fores mãe vais perceber!". Sinto mesmo que foi quando comecei a perceber que a minha mãe quando me tinha tido era tão nova, tão inexperiente e que teria tantas dúvidas como eu. Isso ajudou-me a destruir um bocadinho (no bom sentido) o pedestal de "mãe" e a vê-la como mulher. Quanto a mim foi quando ouvi chamarem-me mãe pela primeira vez que pensei "ui deve ter havido aqui algum engano, porque eu mal sei atar os sapatos quanto mais ser "crescida" ao ponto de ser mãe.

Foto:

Este é um livro sobre birras. Deu birra, narrá-lo a duas vozes? A pandemia deu-vos esta ideia ou já, de certa forma, existia, mesmo que no subconsciente?

Isabel: O projeto já existia, tínhamos de continuar o nosso "diálogo" escrito, que começou quando a Ana era adolescente e uma birra em redor de uma conta de telefones deu direito a um livro, o diário de uma mãe/diário de uma filha. Mas estava na gaveta, à espera do momento certo, e o confinamento obrigatório foi essa oportunidade. Uma oportunidade muito genuína porque, de facto, estávamos separadas. E esse corte com a rotina, num momento tão inesperado como este em que o mundo se punha do avesso, deixou-nos ver com clareza muitas das birras de que tínhamos, inclusivamente, muitas saudades.

Ana: Acho que para as duas escrever é uma forma de organizar as ideias e de expressar melhor o que sentimos. E neste caos da maternidade há pouco tempo para se falar a "sério", sem interrupções. Por isso acho que no fundo de nós sempre houve esta sensação de estar a ver as nossas birras e pensar "um dia temos que falar sobre tudo isto com mais calma" e por carta parecia uma ideia maravilhosa!

As birras de mãe e filha, e vice-versa, conseguem ser mais difíceis que as das crianças? Quando é que descobriram isso, em relação à vossa experiência pessoal?

Ana: Eu acho que estamos todos mais preparados para as das crianças. Já as esperamos e podemos conversar sobre elas. As entre mães/filhas/sogras/sogros/maridos, etc, que se intensificam tanto neste período de tanto cansaço, dúvidas, e emoções ao rubro como são os primeiros anos da maternidade, são muito mais tabu. No fundo é uma readaptação de toda a dinâmica familiar e isso por vezes é difícil.

Há um momento em que as diferenças de geração se diferenciam quando nos tornamos avós, Isabel? E se sim, Ana, que diferenças emergiram mais entre as duas?

Isabel: A descoberta de que nesta nova viagem vamos estar no banco de trás, na retaguarda, desconcerta os avós. Estavam preparados para continuar a tentar "telecomandar" filhos e netos, mas não só os filhos ascendem ao estatuto de pais, como estão decididos a cumprir com zelo o papel, e isso é uma surpresa. Agradável, quase sempre, mas noutras... mais difícil.

Ana: Uma das maiores diferenças que sentimos foi na visão sobre a amamentação. Que foi a nossa primeira  grande birra e que nos obrigou a perceber que em assuntos mais complexos é mesmo precisar sentarmo-nos frente a frente e a por "as cartas na mesa!", em vez de trocar uma boca de vez em quando, que só fomenta mal-entendidos. Mas também aprendemos que há coisas que são intemporais e intergeracionais, como a criatividade, a imaginação, o humor! Tudo coisas que queremos passar às próximas gerações.

Falar das coisas sem se chatearem era o que faltava para a tal comunhão que a que às vezes não se chega ao falar de parentalidade, e foi o que levou às cartas. Pôr por escrito é uma espécie de cura para todos os males?

Isabel: Deve depender muito das pessoas, mas tanto eu, como a Ana arrumamos melhor as ideias quando as pomos por escrito – a que ela acrescenta a música. A escrita de cartas obriga a pensar antes de passar ao "papel", voltar atrás, elencar as ideias e sobretudo ir bem mais fundo, por oposição ao imediatismo das SMS e WhatsApps, e ao poder destrutivo das "bocas". Nestas cartas queremos deixar claro o que nos separa – a "disciplina", as rotinas, os horários, a hipótese de que de pequenino se torce o pepino, por exemplo —, mas inevitavelmente descobrimos que há tanto que nos une, das memórias do passado aos desejos para o futuro.  

O livro é varrido com um humor muito próprio que reflete a relação entre as duas. O humor (e o amor!) salvam tudo, no fim?

Isabel: É mesmo isso, humor e amor misturados. O humor de que ambas gostamos é acutilante sem ser corrosivo, põe em causa, sem destruir o outro, procura cultivar a capacidade de não nos levarmos demasiado a sério, de sermos capazes de reconhecer os nossos erros. Rimo-nos, acima de tudo, de nós mesmas. O amor faz com que tenhamos a certeza de que venha o que vier, estamos unidas de forma absolutamente incondicional. Mesmo quando nos magoamos e temos vontade de amuar, o que também acontece, acredito que nunca deixamos de saber que vamos superar esse obstáculo.  

Ana: Acho que tive a sorte de receber de herança da minha família, de ambos os lados, o humor e a capacidade de nos rirmos não só de nós próprios como das coisas mais "negras." Acredito que só com o humor ao lado é que podemos ir aos túneis mais fundos da nossa mente e aos temas mais difíceis, sem o risco de nos perdermos.

Para as mães, filhas, avós birrentas deste mundo, se só lhes pudessem dar um conselho, qual seria?

Isabel: Avós, resistam e não digam "Comigo ele nunca faz birras".

Ana: Mães, autorizem-se a viver o momento presente sem a ameaça do "se eu fizer isto hoje ele nunca mais vai...."

Por fim, pelo menos na parentalidade e na educação, às vezes é preciso por mais de lado o politicamente correto?

Isabel: O politicamente correto não faz falta para nada, porque pressupõe que não pensamos, nem sentimos aquilo que estamos a dizer. Porque quando corresponde aquilo que realmente pensamos e sentimos, então é pura e simplesmente a verdade. Temo que se os pais e as mães têm medo de confessar as suas emoções mais negativas — todos temos, às vezes, vontade de voltar a ser solteiros e sem filhos, todos temos "raiva" de um filho que não nos deixa dormir ou nos seringa a paciência de manhã à noite, todos temos momentos em que pensamos "prefiro este ao outro", etc — , vão recalcá-las, culpabilizando-se por elas, passando na oportunidade de receberem o apoio de que precisam, em lugar de as resolverem, libertando-se delas. E isso é mau. Faz-me alguma confusão uma certa competição que pressinto entre mães, que as redes sociais encorajam.     

Ana: É isso, as birras das crianças, por definição, rompem logo com o politicamente correto. Não lhes interessa o que é suposto, nem quem está a ver, nem o que a etiqueta manda para aquela situação. Fazer birras com politicamente correto é amuar e isso não leva ninguém a lado nenhum!

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