Opinião

Jane Birkin era o estilo francês: o bom gosto é para quem pode

Sabem aquela frase que diz que as meninas boas vão para o céu e as más vão para todo o lado? Birkin sobreviveu a todos os clichés e escreveu a sua própria história. Muito do estilo francês assenta na sua imagem de despojamento, que foi refinando ao longo da vida.

Foto: Getty Images
16 de julho de 2023 Patrícia Barnabé

Não se acredita mais nas meninas más, mas nas meninas desobedientes do sistema, e que muito fizeram para criar o mito rebelde das parisienses, ou seja, mulheres que jogam nos dois campos femininos ao mesmo tempo: o das meninas boazinhas e o das mulheres selvagens. Jane Birkin começou por jogar esse jogo com uma grande evidência: parte da sua fama veio do facto de ser a namorada muito bela, e demasiado jovem, de Serge Gainsbourg, o famoso crooner maravilhoso e maldito, de origem judia russa, com tanto de duro como de pinga-amor. Mas Jane Birkin conseguiu sair da sua sombra, e se era uma grande sombra, lutou pela sua própria narrativa. Ela própria disse, várias vezes, que as vidas fáceis a aborreciam.

Tornou-se uma das it-girls francesas mais conhecidas de sempre.
Tornou-se uma das it-girls francesas mais conhecidas de sempre. Foto: Getty Images

Podemos gostar mais da versão de Je t'aime moi non plus que Gainsbourg gravou com Brigitte Bardot, mas a mais conhecida, e que ainda ecoa, é de Jane Birkin. Que sempre pareceu ter a capacidade de dar nas vistas sem fazer grande alarido. Primeiro, pela sua juventude e beleza de manequim, depois pelo lugar certo da vida em que sempre caminhou, pelas causas certas que abraçou junto de outras mulheres como Aung San Suu Kyi, ou pelas marchas de rua em que participou contra Le Pen, empoderando as três mulheres que criou, de três pais diferentes. As duas mais novas, Charlotte Gainsbourg e Lou Doillon, continuam a ser das fashion sirens mais copiadas: o mundo inteiro gostava de ter aquela pinta natural e sem esforço que não se ensina, e que é tão Paris.

Jane Birkin, 1969.
Jane Birkin, 1969. Foto: Getty Images

E se parece ser mais difícil ter-se pinta sem grande artifício, é porque é. É como ser interessante, é uma graça que vem do conhecimento, da inteligência e do aprofundamento da vida, são camadas e camadas de um bom gosto que dispensa dar nas vistas. É saber muito para depois deitar quase tudo fora. Ser interessante em moda é saber tanto que se retiram os enfeites todos, porque tudo parece estar a mais. Para a essência brilhar, é preciso que se tenha algo para dizer, sem precisar de falar por cima dos outros. E por muito que a moda se faça também de espanto - o que permanece, o estilo -, está nos detalhes, no delírio, no não querer saber, que é o mais difícil de tudo.

Jane Birkin, no filme Catherine & Co, 1975
Jane Birkin, no filme Catherine & Co, 1975

É crescer com todas as ferramentas e não precisar de nenhuma delas, porque se passou do parecer para o ser. O estilo francês é o ser, por excelência. E quando todos querem sobressair, como na era que vivemos, é uma benção não se precisar disso para o conseguir naturalmente. Nem sequer é preciso pintar os cabelos de loiro platinado, aquele truque fácil que parece permanecer – as parisienses pintam-se pouco ou quase nada, dos cabelos ao rosto. São a anti-Barbie boazona. Elas apostam antes numa luz que brilha, natural, de dentro para fora e que só as pessoas certas, e poucos homens, os certos, entendem realmente. Faz parte de um snobismo de Paris, encantador quando doseado.

Jane Birkin deixa-nos aos 76 anos.
Jane Birkin deixa-nos aos 76 anos. Foto: Getty Images

O verdadeiro estilo como ainda o concebemos hoje vem da escola parisiense e, precisamente, dessa naturalidade. Se não, veja-se o look francês que andamos todas a tentar copiar desde, sei lá, o século XVIII? O centro da arte até se mudou para Nova Iorque nos anos 50, mas a moda nunca saiu de Paris, antes espalhou pelo mundo inteiro o seu profundo conhecimento de tudo saber sobre a beleza das coisas, para depois tudo poder descartar. As outras capitais bem inventam as suas semanas de moda, mas nenhuma é tão sexy e sofisticada como Paris, porque nenhuma tem a sua memória de estilo.

Em palco, com apenas uns jeans, uma t-shirt e a sua icónica franja.
Em palco, com apenas uns jeans, uma t-shirt e a sua icónica franja. Foto: Getty Images

Curiosamente, algumas das mais célebres parisienses são estrangeiras: das austríacas Marie Antoinette e Romi Schneider, à americana Josephine Baker e à inglesa Jane Birkin. Modelo, cantora e atriz, Birkin tornou-se o símbolo da pinta relaxada de Paris. E é responsável por alguns símbolos de moda: o look bohème, a franja demasiado grande sobre os olhos, que já vinha da nouvelle vague, estética dos anos 60 de que é herdeira. E uma evidente e descontraída sensualidade, jamais explícita, que ainda hoje é vigente: a mini-saia ou o vestido transparente usados como se não fossem, camisas de homem bem engomadas ou t-shirts brancas ou sweats confortáveis, sem mais, enfiadas em jeans coçados. Mas também o tailleur de calças Yves Saint Laurent, o trench-coat com sabrinas ou ténis estafados e uma relação tão saudável com a nudez, como a de uma criança, que até há bem pouco tempo era a imagem de marca das manequins de Carine Roitfeld quando dirigiu os tempos mais áureos da Vogue Paris: o chique natural e super sexy que fuma demais e jamais se deita cedo.

Com a famosa cesta, que se tornaria numa imagem de marca, e inspirou a Hermès.
Com a famosa cesta, que se tornaria numa imagem de marca, e inspirou a Hermès. Foto: Getty Images

E claro, como não dedicar um parágrafo à carteira Birkin da Hermès, inspirada na cesta, que usava para todo o lado, quando se tornou no centro das atenções na capital francesa. Lançada em 1984, consta que era feita de cana do Algarve, de Castro Marim, onde foi passar férias com os seus pais, logo após a separação do compositor John Barry (com quem namorou, tinha ela 17 anos e ele mais 13, e de quem teve a primeira filha, Kate Barry, fotógrafa e entretanto falecida). Assim como consta que o pai de Lou Doillon (a mais nova das suas três filhas, que teve com o realizador Jacques Doillon, com quem foi viver em 1980 quando deixou Gainsbourg) lhe destruiu a cesta numa discussão mais acesa. Passou a ser a sua imagem de marca, e nós ainda andamos com as cestas para todo o lado e sonhamos comprar, um dia, uma Hermès.

A caríssima Hermès Birkin (esta custa mais de 25 mil libras).
A caríssima Hermès Birkin (esta custa mais de 25 mil libras).

O estilo francês é muito fácil de identificar, e Jane Birkin criou quase todos os padrões. Caroline de Maigret descreve-o melhor quando enumera o que nunca se encontra no guarda-roupa de uma parisiense: logótipos, ("não és nenhum cartaz publicitário"); carteiras falsas ("são como os seios falsos, não se resolve um complexo com imitações"); os tecidos sintéticos (porque "transpiras e brilhas ao mesmo tempo, não só cheiras mal como isso é visível"); as botas Ugg ("porque não"); os tops demasiado curtos ("porque já não tens 15 anos"); os fatos de treino ("só o professor do ginásio te pode ver assim vestida") e os jeans com bordados e pedras e demasiados enfeites ("peças excelentes para Bollywood"). Na verdade, acrescenta, "a parisiense seria feliz se pudesse viver nua numa gabardine Burberry". E que é uma das imagens de marca de Jane Birkin.

"Como todas as mulheres jovens de artistas famosos, ela viveu sempre o legado de Serge Gainsbourg." Foto: Getty Images

Gainsbourg quando a conheceu disse, embevecido, que ela encarnava o feminino apesar da sua silhueta andrógina. Depois, tinha aquela mistura de meninice e sedução, uma elegância aérea que é irresistível e a faz ser amada por homens e mulheres. Por homens, porque é o sonho namorar uma jovem manequim, ligeiramente ingénua, mas fogosa. Mas, inteligente, ela conseguiu resgatar a sua imagem objetificada, que tão bem serviu a sua chegada à fama, com a procura de ser levada a sério no seu talento artístico. Começou a ser aceite pelos intelectuais ao entrar em Blow Up de Antonioni, e depois de filmar com Patrice Chéreau, Jacques Rivette, James Ivory, Alain Resnais, Jean Luc Godard e ser a Jane B de Agnés Varda, em 1988. Falta ver o derradeiro Jane par Charlotte realizado pela filha do meio, Charlotte Gainsbourg, também ela uma estrela em nome próprio e ícone de moda para a casa Balenciaga.

Em Cannes, em 2021, na estreia do filme
Em Cannes, em 2021, na estreia do filme "Jane Par Charlotte (Jane By Charlotte)" Foto: Getty Images

Como todas as mulheres jovens de artistas famosos, ela viveu sempre o legado de Serge Gainsbourg. Ainda assim, é nela admirável o facto de ter crescido e evoluído através do "feminino", por assim dizer. Ultrapassou o papel de Lolita, que se fascinou pelo brilho de um homem vivido e inteligente, 18 anos mais velho do que ela, e lhe deu um lugar na primeira fila e que ela soube segurar com muito trabalho, duas mãos cheias de filmes e discos. Ganhou uma voz própria. Voz essa que era um fio de voz e que até hoje identifica o estilo francês de cantar (embora Nico também o tenha levado para Nova Iorque, para os Velvet Underground). Uma brisa leve de sedução e inteligência que ela sempre soube usar, a mesma voz que animou um baile de encerramento da ModaLisboa, no hotel Ritz, em Lisboa, há cerca de duas décadas. Sim, sim, Jane Birkin cantou para nós, numa voz de veludo e num corpo de gazela.

Saiba mais
Mundo, Atualidade, Jane Birkin, Francesa, Estilo, Parisiense, Serge Gainsbourg, Hermés
As Mais Lidas