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Inseminação caseira. Os riscos da nova “trend” das redes sociais

No Facebook, há testemunhos de mulheres que fizeram inseminações em casa e ofertas de dadores de esperma em grupos privados. A "Máxima" falou com Miguel Lopo Tuna, médico ginecologista com subespecialidade em medicina da reprodução, para saber quais os perigos desta prática para mulheres e bebés.

Foto: Getty Images
05 de maio de 2025 às 15:18 Madalena Haderer

Nas últimas semanas, têm vindo a público notícias que dão conta da crescente partilha de testemunhos de mulheres que fizeram inseminações caseiras, bem como de ofertas de esperma para o efeito, em grupos privados do Facebook. Em entrevista à agência Lusa, o presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA), Carlos Calhaz Jorge, reagiu a estas informações de forma algo impetuosa, dizendo que a inseminação realizada em casa "é um crime" e uma "fantasia cultural" que deve ser evitada. O presidente do CNPMA comentava assim a notícia do Correio da Manhã que referia existirem casos de mulheres a engravidar em casa sem sexo, um método sem assistência médica, em que é inserido esperma na vagina com recurso a uma seringa. 

Por seu lado, a cronista do semanário Expresso, Isabela Figueiredo, num texto intitulado "Espermatozoides Ilegais", critica a reação de Carlos Calhaz Jorge partilhando com o leitor a seguinte reflexão: "Alega o presidente que a inseminação caseira é uma 'completa ilegalidade'. Pensei, 'ora, se é ilegal, significa que existe legislação sobre o que faço no quarto, mediante consentimento das partes envolvidas'. Pareceu-me estranho. Coloquei-me na situação em que um amigo adulto pretendesse ter um filho comigo, sem sexo a dois, doando o esperma. A decisão seria totalmente nossa, nos moldes em que a acordássemos, porque cada cidadão é livre de se reproduzir. [...] Sem entrar em minudências eróticas, faço com o esperma que me oferecem o que bem entender. Não devo explicações ao Estado sobre a minha vida privada. A forma como engravido é da minha conta."

A Máxima aproveitou a oportunidade para esclarecer junto de Miguel Lopo Tuna, médico ginecologista com subespecialidade em medicina da reprodução, quais os riscos que esta prática pode trazer para as mulheres e as crianças que, consequentemente, venham a nascer.

A que riscos é que a prática da inseminação caseira expõe a mulher no imediato?

No imediato, pode expô-la a infeções sexualmente transmissíveis, uma vez que o " dador" de esperma não passa por qualquer avaliação analítica ou clínica orientada por médicos. No limite, pode até haver uma violação, caso a inseminação envolva um ato sexual que, em determinado momento, a mulher decida não aceitar. E pode ser inútil, caso a mulher não esteja no período fértil. Para além disso, se tiver mais de 39 anos a probabilidade de engravidar por tentativa é mínima, ou se a mulher tiver as trompas ocluídas ou o esperma for de "baixa" qualidade. 

Também pode dar lugar a reações alérgicas, se um esperma não tratado laboratorialmente for introduzido não apenas na vagina, mas diretamente no útero. E pode ainda causar hemorragia ginecológica (do colo ou da vagina) com a introdução de certos "instrumentos" (ou kits de inseminação disponíveis na internet) na vagina ou mesmo intra-uterinos.

Num ponto de vista mais a longo prazo, imaginando que a inseminação caseira é bem sucedida, quais são os possíveis riscos desta prática, tanto para a mulher quanto para a criança que nascerá?

Sem falar dos riscos de infeção para a grávida, que poderá sofrer as consequência de uma DST durante a gravidez, podem existir também problemas de incompatibilidade entre os grupos sanguíneos da grávida e do "dador", que pode originar isoimunização ABORh [também conhecida como doença hemolítica do recém-nascido, acontece quando existe incompatibilidade entre o tipo de sangue (ABO ou Rh) da mãe e do feto, resultando da produção de anticorpos consequente à passagem, através da placenta, de glóbulos vermelhos fetais para a circulação materna] que, no limite, podem levar a morte fetal.

[De um ponto de vista legal,] para a mulher vai causar o problema de ter uma criança que, no Registo Civil, será filha de pai incógnito [a lei portuguesa não permite a existência de crianças filhas de pai incógnito, sendo obrigatória a instauração de um processo de averiguação oficiosa da paternidade pelo Ministério Público sempre que tal se verifique – processo que causará, sem dúvida, um grande transtorno, mesmo que acabe arquivado por ser impossível obter respostas]. Ou o inverso: vir um dia o "dador" afirmar ser o pai da criança, coisa que um teste de paternidade confirmará. De resto, a grávida nunca terá uma garantia de confidencialidade, já que o "dador" pode, a qualquer momento, revelar, a amigos e família (dele ou da mulher) ou até à criança, a sua origem.

Nas inseminações artificiais efetuadas nas clínicas, é fornecido um documento comprovativo do tratamento com doação de esperma, que isenta da necessidade de averiguação de paternidade perante as autoridades, e que torna impossível o dador ser alguma vez dado como pai da criança. 

Para a criança há risco de transmissão vertical de doenças infecciosas, transmissão de doenças genéticas, e risco de consanguinidade um dia que deseje ter filhos (algo que também é evitado quando o tratamento de inseminação é feito nas clínicas).

À partida, ocorrendo um nascimento, a criança nunca terá um historial clínico familiar completo. Em que medida é que isso pode ser um problema?

Como já referi, há risco de doenças genéticas, consanguinidade, etc. Além disso, leva, por vezes, a uma iatrogenia de exames e intervenções médicas por não se ter acesso a um historial familiar completo.

Esta é uma situação que preocupa os médicos, de facto? Ou algo que terão tendência a descartar, enquanto moda passageira?

Qualquer situação que coloque em risco a saúde das mulheres e das crianças nos preocupa, especialmente existindo uma alternativa segura. Embora os números não pareçam ser altos (desconhecemos os números reais já que não há registos), sabemos que, ao serem autorizadas nas clínicas as inseminações com esperma de dador a mulheres solteiras e a casais de mulheres, essas mulheres já têm uma opção devidamente enquadrada clínica e legalmente, o que poderá tornar essas inseminações caseiras muito menos frequentes.

O que é que acontece ao sémen numa inseminação em contexto clínico que não acontece num contexto caseiro?

Há um consentimento informado do tratamento, para a mulher entender os passos do procedimento e utilizar no registo da criança. Há uma "escolha", feita pela mulher, das características físicas e do grupo de sangue do dador. Além disso, [o esperma] provém de um dador que passou por testes clínicos e analíticos normalizados e só se utiliza o esperma que, depois de devidamente tratado, tenha qualidade média/alta. 

Há também um limite estabelecido para as dádivas de esperma e número de crianças nascidas (para diminuir risco de consanguinidade). De resto, o esperma é "melhorado" e introduzido diretamente no útero da mulher – em ambiente asséptico – num dia garantido de período fértil da mulher.

O presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, Carlos Calhaz Jorge, não terá exagerado nos seus comentários quando disse que era uma prática "ilegal"? Afinal, o Estado português faz parte de um conjunto alargado de países que não se intromete no que se passa no quarto das pessoas – até porque não é viável ter um polícia à porta do quarto de cada um.

Não me querendo intrometer numa área que não domino, posso comentar o seguinte: é ilegal fazer procedimentos de inseminação fora do contexto dos centros devidamente certificados pelo CNPMA por parte de profissionais de saúde – isso é bem claro e está legislado. Fora do contexto médico, não envolvendo profissionais de saúde no exercício das suas funções e envolvendo consensualidade informada entre dois adultos, sem contrapartidas económicas ou outras,  não me parece, numa análise de leigo em questões legais, que seja ilegal, a não ser que o dador saiba estar a transmitir doenças genéticas ou outras de forma premeditada. Eu diria que é "alegal", ou seja nao é legal nem ilegal uma vez que não está especificado na lei.

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