Histórias de Amor Moderno: “Quando pensava em alguém com quem me permitisse uma escapadela adúltera, costumava pensar nele”
“Dentro da minha cabeça, num pensamento que eu preferia não admitir que lá estava, interrogava-me, ‘mas porque é que lhe faz tanta confusão o ativismo do outro?’” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Fizemos aquele joguinho, supostamente inocente, que os casais às vezes fazem nas comédias românticas do canal Hollywood. “Se pudesses escolher uma pessoa, e só uma, para me trair por uma noite, sem seres castigada, quem é que escolhias?” Foi ele que se lembrou de perguntar. Eu não tinha resposta pronta. Não era assunto em que tivesse pensado. Não me entendam mal, não estou aqui armada em púdica, nem em donzela. Sou apenas séria o suficiente para não ter na ponta da língua uma resposta pronta a dar.
Pensei um bocado. “Mas só entre pessoas famosas, certo?”, inquiri. Ele confirmou - sim, nada de incluir o canalizador que cá esteve na semana passada, ou o homem da televisão por cabo, se é que isso ainda existe, e nem mesmo o proverbial padeiro, pai de todos os filhos de pai desconhecido, ou ainda o tarado que é vizinho da frente e que nos espreita por detrás das cortinas do seu apartamento, com sabe-se lá o quê na mão (um picador de gelo que usa freneticamente? O comando da televisão com falta de pilhas? Uma bomba manual com que enche uma gigantesca bola de basquetebol? Nunca saberemos).
“O Jorge Corrula”, disse eu, por fim, mas sem grande convicção. Ele olhou-me com um misto de espanto e incompreensão, como quem diz, “ahn? Como assim?” Tratei de lhe explicar, ou de tentar explicar, pelo menos. Revelei que, desde que vira, há já muitos anos, O Crime do Padre Amaro, que achava o ator muito atraente. E que, por alguma razão, quando pensava em alguém com quem me permitisse a aventura de uma escapadela adúltera - que não era, na verdade, um pensamento que me ocorresse com frequência, já agora -, costumava pensar nele, imaginar como seria se nos envolvêssemos, sei lá. “Isso é aquele da Soraia Chaves, não é?” Supondo que o Bruno se referia ao filme em que ambos, Jorge e Soraia, contracenaram, respondi-lhe que sim, que era esse mesmo. O Bruno fez uma expressão afirmativa fez que sim com a cabeça e com o queixo proeminente uma série de vezes.
Ele não disse nada, logo naquele momento. Ficou a digerir. Percebi que alguma coisa o tinha melindrado, mas não consegui perceber o quê. Fora ele a puxar a conversa, a insistir para que eu escolhesse alguém. A minha escolha não foi imediata nem óbvia, fiz até um certo esforço para chegar a uma conclusão. Tentei evitar as ideias batidas, os brédpites e os dicáprios da vida, para o contemplar com uma resposta digna, diferente, arrojada. E ele reagiu com silêncio carrancudo. Lábios para baixo, quase beicinho. Deixei-o estar.
Passado um momento, agarrei-me ao braço dele, com carinho, e perguntei-lhe o que se passava. “Nada.” Sei muito bem o que significa esse “nada”. Há quem atribua este tipo de resposta esquiva e indefinida às mulheres que estão amuadas, mas se conhecessem o Bruno perceberiam que esse comportamento está longe de ser exclusivo das mulheres.
Eu ia insistindo e ele ia repetindo, “nada”, “nada”, “nada”, até que, irritado, me respondeu que, se eu tinha direito a defletir perguntas incómodas com respostas vazias, também ele podia fazê-lo quando a conversa não lhe agradava. Chamei-o à atenção, tinha sido ele a começar com o joguinho parvo e a perguntar-me com quem é que eu o traía uma vez, se pudesse; que eu nem sequer pensava nessas parvoíces e que só alinhei porque ele insistiu até obter resposta. “Sim, mas esperava tudo menos essa resposta.”
A reação dele surpreendeu-me e intrigou-me. “Pensei que fosse uma brincadeira inocentre, Bruno. Não sabia que havia respostas certas ou erradas.” Foi então que se fez luz. “Sim, porque é que tinhas de escolher logo esse esquerdalha wokista, sempre cheio de causas e todo ativista?” Ok. Fiquei sem palavras. Então, o problema do meu namorado com a minha resposta a uma brincadeira idiota era que o nome que eu escolhera fosse o de alguém ativo nas redes sociais em defesa de causas sociais e direitos? “Qual é o mal de uma pessoa ter convicções e defender direitos?”, perguntei. Virou-me as costas e saiu.
Não sei onde foi o Bruno, mas esteve ausente durante um par de horas. Decidi não o aborrecer mais, não por tão pouco. Intrigava-me um bocadinho aquela reação de repulsa à minha escolha - nunca imaginei que eleger o Jorge Corrula para uma brincadeirinha destas pudesse ter tamanho efeito -, mas considerei que não valia a pena aprofundar a discussão. (E, dentro da minha cabeça, num pensamento que eu preferia não admitir que lá estava, interrogava-me, “mas porque é que lhe faz tanta confusão o ativismo do outro?”) Quando ele chegasse a casa, ia arranjar maneira de aligeirar o assunto.
O Bruno entrou, vinha meio acabrunhado, mas com um ar meio amedrontado. Talvez sentisse remorsos. Talvez receasse que eu quisesse discutir. Sorri-lhe, tentando mostrar-lhe que estávamos em paz, que tudo estava bem. “Desculpa, precisei de espairecer”, e sorriu de volta. Tudo bem, claro. Então eu disse-lhe “mas a nossa conversa ainda não acabou, meu amigo”, e a expressão dele, completamente aterrada, foi impagável. Ele percebeu que me estava a meter com ele, desatei-me a rir. E então descomprimiu, sorrindo, “bolas, já estava a ficar aflito”, e sentou-se ao meu lado, com um ar aliviado. “E tu, quem é que escolhias?”
O Bruno não estava a contar que a conversa continuasse. “Mas queres mesmo saber?”, perguntou, a sorrir. Eu disse que sim, claro. Se eu tinha dito. “Não, é melhor não…” Vá lá, vá lá, insisti eu, se eu disse tu também dizes, também não há de ser assim tão mau, a não ser que escolhas a vizinha da frente ou a minha irmã, ahahahah, mas essas não valem porque tem de ser alguém famoso, ahahahahah, vá lá, diz, não sejas palerma. “Rita Matias.”
Silêncio. Um longo, loooooongo, muito, muito longo silêncio, foi o que aconteceu naquela sala enquanto eu tentava processar a situação, a conversa, aquela resposta. “Então? O que é que tem?” A minha incredulidade não foi inteiramente compreendida e devidamente interpretada pelo Bruno, que ainda acrescentou “desculpa, acho-a bem gira” e “não me parece que seja uma escolha de mau gosto”. Levantei-me e disse-lhe que a escolha dele acabava por revelar e explicar a sua reação à minha resposta a este jogo estúpido, que nunca devíamos ter feito.
Peguei no casaco, “agora vou eu espairecer”, e saí. Bati com a porta. Depois voltei atrás, abri a porta e ia dizer-lhe que nem acreditava, mas voltei a bater com a porta e prossegui o meu exercício de espairecimento.
Durante o meu passeio ao fresco, tomei uma decisão terrível: abrir o Instagram da Rita Matias. É extraordinária e esmagadora a quantidade de coraçõezinhos que o meu namorado - o meu namorado! - deixa no perfil dessa pessoa. Só por curiosidade, e nutrida por um sentimento de “já que estamos a escavar, vamos lá ver onde está o petróleo”, fui seguindo o trilho dos correligionários da Rita Matias, incluindo o seu inefável líder. Queria ver se os corações do Bruno se espalhavam ideologicamente ou se era a estonteante beleza da Rita que o encantava. Constatei que, embora a frequência dos corações do Bruno batessem com maior frequência nas publicações de Rita Matias, surgiam também com relativa frequência nos perfis dos partidários dela.
E agora não sei o que fazer. Adoro o Bruno, estamos apaixonados, estamos juntos há quase dois anos, mas não sei se consigo lidar com esta divergência política flagrante que existe entre nós. Nunca pensei, aliás, que a política pudesse ser um fator a separar-nos. Mas a verdade é que não me consigo identificar com alguém que se revê naquelas ideias. E não concebo uma relação séria com alguém com quem não me identifico.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.

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