Histórias de Amor Moderno: “Perguntou se aquilo era um pedido de casamento e se era suposto ele responder-me que sim”
“Eu queria ter filhos, se não com o meu marido, então com o meu parceiro, o meu companheiro, o meu namorado, qualquer que fosse o título que ele quisesse assumir em relação a mim.” Todos os sábados, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Uma vez, eu disse-lhe "Luís, tu nunca me pediste em casamento". Eu estava a falar meio a sério, meio a brincar, disse-o e ri-me um pouco. Ele sorriu, mas pareceu desconfortável com o assunto. "A sério, já namoramos há tantos anos e nunca falaste em casamento." Ele, então, ficou silencioso com um sorriso congelado e inexpressivo no rosto. "Estás a falar a sério? Era suposto eu pedir-te em casamento, é isso?", respondeu. Eu disse-lhe que não, não necessariamente, mas que podia já ter mostrado vontade em algum momento, ou que, pelo menos, o assunto poderia já ter surgido e, sei lá, talvez ele, de algum modo, pudesse ter mostrado vontade, desejo, até curiosidade, pelo menos. O Luís não disse nada. "A não ser que não queiras", rematei. Manteve-se impávido.
Desde essa conversa - lembro-me perfeitamente: passávamos uma tarde de princípio de verão num pequeno apartamento que uma tia dele tinha em Sines; passámos lá uns dias, um fim de semana comprido, só nós dois -, o tema deixava-me inquieta. E se, por um lado, sentia que a conversa o deixava muito desconfortável, por outro, evitar o assunto parecia asfixiar-me. Era como se, de então em diante, eu me censurasse. A minha vontade era pegar nele pelos colarinhos e perguntar-lhe, sem rodeios, "ouve lá, diz-me de uma vez: queres ou não queres casar-te comigo?" Como é evidente, nunca o fiz. Não nesses termos.

Esse fim de semana comprido que passámos em Sines, com a cidade ainda quase vazia por ainda não ter veraneantes, acabou por revelar-se demasiado longo. Tivemos este pequeno conflito, que não chegou a ser discussão nem mal-entendido, logo na primeira noite, enquanto recolhíamos a casa depois de um agradável jantar numa esplanada no centro. O que era para ser uma escapadinha romântica junto ao mar transformou-se rapidamente numas mini-férias muito tensas. Num instante, aquilo que parecia ser uma união íntima e cúmplice transformou-se num sórdido exercício de diplomacia em que medíamos palavras e forçávamos sorrisos, enquanto perscrutávamos o olhar um do outro em busca de o decifrar, como num jogo de espiões.
No último dia, enquanto apanhávamos o último banho de sol e, em silêncio, contemplávamos o mar e o horizonte, arrisquei. "Eu gostava de me casar contigo, Luís", disse-lhe. "Não digas disparates. Nem sequer temos dinheiro para aventuras dessas." Acrescentou que casar saía caríssimo e que a vida a dois comportava gastos e rotinas para os quais talvez ainda nem tivéssemos capacidade. Contrapus, interrompendo-lhe o monólogo, dizendo que já vivíamos juntos havia mais de quatro anos. Indignou-se. Perguntou, com sarcasmo, se aquilo era um pedido de casamento e se era suposto ele responder-me que sim, sem questionar.
A nossa vida nunca mais foi a mesma desde esse fim de semana. Melindrávamo-nos com muito pouco em exercícios de reciprocidade. Tu disseste isto, mas tu antes disseste aquilo, eu fiquei mais magoado, não não, antes de ti já eu estava magoada. Claramente, existia uma ferida aberta. Ambos fomos tentando contorná-la, evitar tocar-lhe, mas era difícil atravessar os dias lado a lado, como se caminhássemos num campo minado sempre com receio de pousar o pé no sítio errado.

A situação agravou-se quando me decidi por uma abordagem diferente. Muito bem, não queria casar-se comigo. Fosse qual fosse o motivo, estava no seu direito. Nem todos entendemos o casamento do mesmo modo, não temos todos de o ter como ambição. E, na verdade, é um protocolo social e um contrato com vista à consolidação da família. "Não é como se casar fosse uma prova irrefutável e imutável do amor recíproco" - esta frase é do Luís e foi-me dita no decorrer de uma das várias discussões que tivemos subordinadas ao tema, mas não deixa de ser verdadeira e certeira.
Mas então e ter filhos? Eu queria ter filhos. E estava no meu direito. E queria tê-los, se não com o meu marido, então com o meu parceiro, o meu companheiro, o meu namorado, qualquer que fosse o título que ele quisesse assumir em relação a mim. "Queres ter um filho? Gostava de ter um filho contigo." Preferi ser franca e direta, evitar os rodeios e os cuidados excessivos com as palavras. Ter um filho é uma decisão concreta que muda a tua vida de uma só vez e para todo o sempre. Não é assunto que se aborde com "tenho andado aqui a pensar" ou, muito menos, com "sabes do que é que eu gostava". Não. O assunto é sério. É para encarar de frente. O Luís ouviu a pergunta, levantou os olhos do telefone, olhou-me com uma espécie de nojo e disse "mas o que é que se passa contigo? Qual é o teu problema?" Levantou-se e saiu, acredito que tenha sido para apanhar ar. Terminámos tudo um ou dois dias depois. E assim nos separámos ao fim de sete anos de namoro e quatro de vida em comum. Nunca mais lhe falei.
A minha história com o Luís é incomum. Conhecemo-nos desde pequenos. No meu caso, diria que o conheço desde sempre, desde que me lembro. Vivíamos na mesma terra, uma pequena vila ribeirinha, junto ao Tejo, daquelas terras onde todos se conhecem, todos sabem quem somos, de quem descendemos, "o teu avô Edmundo era marceneiro, sei muito bem", "ali ao fundo, onde agora é o banco, ficava a loja da tua avó Isabel". Tanto a minha famíalia como a do Luís têm raízes na vila desde há várias gerações.

Contudo, a nossa não é uma história de namoradinhos desde a escola. Tanto quanto me lembro, eu e ele conhecíamo-nos, mas não éramos sequer próximos. Ele é um bocadinho mais velho que eu - não muito, apenas o suficiente para nos termos desencontrado nos anos de escolaridade. E, por isso, as nossas infâncias e adolescências foram vividas lado a lado, mas em separado. Ele era o Luís Carlos, eu era a Ana Cristina, sabíamos, por manifesta inevitabilidade, os nomes um do outro, bem como onde ficava a casa de cada um, mas não éramos exatamente amigos.
Depois de acabar o liceu, ele veio para Lisboa e, um ano mais tarde, eu fiz o mesmo. Por coincidência, entrámos na mesma faculdade. Cruzávamo-nos com frequência nos pátios do Instituto e sorrimos sempre um ao outro, num cumprimento cordial de quem reconhece alguém da mesma terra. Quando começámos a falar, já ele não era Luís Carlos e eu muito menos aceitava ser Ana Cristina. Uma das muitas vantagens da mudança para a cidade grande é a possibilidade de deixar cair, como se esquecêssemos, aquilo que é nosso mas não nos agrada. No caso, os segundos nomes eram dispensáveis, pelo que passámos a omiti-los: ele era agora o Luís e eu chamava-me simplesmente Ana, sem mais adornos.
Reencontrá-lo num novo contexto, longe da nossa terra e sem o peso da familiaridade excessiva teve um efeito misto, complexo. Por um lado, entusiasmava-me, como se descobrisse nele uma pessoa nova, como se fosse um rapaz completamente desconhecido no rosto de alguém que eu já tinha visto; por outro, dava-me uma sensação de conforto aquele rosto familiar, o saber quem era aquela pessoa, de onde vinha, como crescera, onde viviam os pais.
Ao fim de algum tempo, que não foi tão pouco assim, - talvez três semestres - em que simplesmente nos víamos e acenávamos um ao outro, aproximámo-nos com muita naturalidade e fomo-nos descobrindo com grande entusiasmo. Apaixonámo-nos. Começámos a namorar. Foi engraçado quando um dia regressámos juntos à nossa vila e oficializámos a relação, contando às respetivas famílias. Houve felicidade, muitas perguntas e uma frase muito usada, "foi preciso irem os dois para fora!" Claro que essa familiaridade pode ter o seu reverso. A pressão foi quase imediata. Ao fim de apenas semanas, quer de um lado, quer do outro, todos queriam saber quando nos casávamos, para quando um bebé, e todas essas brincadeiras demasiado pesadas, indiscretas e inconvenientes com que se sobrecarregam os casais, como se eles tivessem uma obrigação para com a comunidade e a família - no caso, casar-se e procriar.
Para nos afastarmos da pressão inconveniente, começámos a racionar as idas à terra e as visitas à família. Não sei determinar até que ponto aquela abordagem quase asfixiante a um casal tão recente não acabou por gerar no Luís um trauma suficiente para que ele tivesse posto de parte, desde então, a possibilidade de nos casarmos e de termos filhos. O certo é que, quase oito anos mais tarde, tudo acabou entre nós sem que nunca tivéssemos avançado nessa direção.
Fui sabendo novidades do Luís porque, enfim, não haveria como não as saber. Talvez tenha sido a minha mãe a contar-me ou, se calhar, até foi o meu pai. "Ana Cristina, o Luís Carlos casou-se." Há de ter sido a minha mãe, já que o meu pai nunca me chama pelos dois nomes - ou é Cristina ou, pior ainda, Tininha. Sim, foi a minha mãe que me contou. Fê-lo como quem tira um penso rápido. Doeu no momento, mas passou depressa. O penso seguinte deixou marca maior. "Tininha, sabes quem vai ser pai?" Dessa vez, sim, foi o meu pai a dar-me a notícia.
Gostava de não guardar ressentimentos nem rancor. A minha vida seguiu o seu rumo e sou feliz com o que encontrei no caminho, com o que tenho e com o amor que hoje vivo. O rapaz com quem comecei a sair meses depois de me ter separado acabou por se tornar meu marido. Fiquei grávida logo no início - foi um acidente, nada foi planeado - e ele, quando soube, em vez de reagir com apreensão, mostrou-se muito feliz. Pediu-me em casamento no mesmo dia. E eu, incrédula e sem pensar muito, disse que sim. Claro que sim!
Como eu dizia, gostava de não guardar ressentimentos. E não devia guardá-los. Devia estar grata por tudo o que me aconteceu. E estou. Estou muito grata ao meu destino pelo que me tem proporcionado, por mais que as curvas do caminho tenham sido, por vezes, apertadas. Mas não consigo deixar de sentir uma grande mágoa, uma tristeza enorme de cada vez que penso que o Luís me recusou daquela maneira.
*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado.
