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Histórias de Amor Moderno: “Não foi uma gravidez particularmente planeada"

“Valorizamos o impulso e a intuição. O Diogo diz que as grandes decisões nunca devem ser puramente calculistas.” Todas as semanas, a Máxima publica um conto sobre o amor no século XXI, a partir de um caso real.

Foto: IMDB/ @Puppy Love
08 de novembro de 2024 às 16:12 Maria Olívia Sebastião

A estrada, à medida que progredimos de sul para norte, torna-se mais triste do que quando conduzimos no sentido inverso. Parece ir ganhando notas de melancolia. Talvez a culpa não seja da estrada. É possível que esta minha sensação resulte do contexto e da circunstância. Íamos deixar, pela primeira vez desde que o adotámos, o Trótsky num hotel para cães.

Eu ia a conduzir. Ao meu lado, o Diogo, meu eterno co-piloto, pendura perpétuo das nossas viagens. Eu amo-o e ele também me ama. Nunca tirou a carta. Diz que não tem jeito, mas na verdade eu acho é que ele não precisa de conduzir. Tem quem o conduza. Eu.

No banco de trás, o cão. Preso pela coleira ao cinto de segurança, em perfeita observância do que vem na lei, vem sentado muito hirto e altivo sobre a manta protetora - uma manta com abas, correias e arneses, cuja finalidade é impedir que o animal suje os assentos da viatura. Debalde. Com tanto pelo e tanto movimento, a capa protetora é até capaz de impedir o modo ecatômbico das babas e dos pelos soltos, mas será sempre impotente no que respeita ao objetivo de conservar limpo o interior do carro.

Longo, comprido mesmo, o animal vem com a cabeça a roçar no tejadilho e a língua fora da boca mais de cinco dedos. É do contentamento. Os seus olhos brilham. Acha que vai passear. Não sabe que o vamos deixar num sítio que é, para ele, estranho. Não temos como explicar-lhe o que vai acontecer. Para ele, tanto quanto lhe será possível compreender, no momento em que o deixarmos e virarmos costas, achará que o abandonámos, como outros lhe fizeram antes de chegar até nós. E não haverá maneira de lhe dizer "calma, são só umas férias, é só por uns dias, nós voltamos".

Chamámos-lhe Trótsky. Melhor, o Diogo chamou-lhe Trótsky. O cão é adotado. Estava com uma amiga minha a quem as circunstâncias da vida não sorriram o suficiente. A certo ponto, viu-se obrigada a mudar de casa e a abdicar de parte do que possuía. Em aflição, tentou entregar o cão a quem pudesse e soubesse cuidar dele. Não terá sido uma decisão fácil. Ninguém é sereno quando posto numa situação de escolha assim, obrigado a decidir deixar para trás um bicho, e logo este bicho, um amigo - o achonchego das solidões, a companhia infalível: o cão.

Ela chamava-lhe Martim. E foi como Martim que o acolhemos em casa. Impressionados com o seu porte e a sua envergadura, o nome pareceu-nos imediatamente curto, demasiado escasso e débil para tanto e tão poderoso animal. O Diogo sentenciou logo que "Martim não é nome que chegue para tanto cão". Precisava de qualquer coisa mais forte, "com maior centro gravitacional", disse ele, "mais poderoso". Quando disse "Trótsky", achei que brincava. "Não, a sério: é o nome perfeito para o cão." Segundo o Diogo, cria uma imagem, uma ilusão e, além disso, ainda acrescenta uma dimensão útil: tem as vogais certas para que o cão decore e reaja ao nome. "Trót-sky", dizia-me ele enquanto tentava convencer-me. Tentei demovê-lo, "mas isso não é demasiado soviético para um animal doméstico?" "Pensa assim", respondia-me, "é um intelectual-socialista sob o nosso controlo". Nunca percebi se isso era bom ou mau, se era meritório ou condenável. Ao nome Trótsky associo pouco mais do que a sua proximidade a Diego Rivera e a Frida Kahlo.

O Trótsky pesa 40 quilos e agora chega com a cabeça ao meu umbigo. É certo que o meu umbigo aponta ligeiramente para baixo. Mas, ainda assim, facilmente se percebe que é um animal de porte considerável. Tem um ladrar profundo, grave e, quando irritado, quase agressivo. "Ladra como um pastelodonte", costuma dizer o Diogo, fundindo nessa designação peculiar a ferocidade de um pastel com a dimensão de um mastodonte. O Trótsky é um amor. Em nossa casa há praticamente um ano, nunca virou tudo do avesso, mas transformou muita coisa. Nunca nos deixa sós. Guarda-nos. Na rua, guia-nos. Observa, acautela, previne. Ladra por precaução. E ameaça quem vier sem ser por bem. Morder, nunca mordeu, felizmente. Se o fizesse, seria grave. E certamente violento. A decisão de o acolher, embora estemporânea e pouco maturada, foi das melhores que tomámos. O Trótsky é hoje peça fundamental nas nossas vidas. Um filho de quatro patas? Talvez. Não gosto desses exageros antropocêntricos. Porém, sim, é seguramente família.

A minha barriga quase bate no volante. O meu umbigo agora aponta um pouco para baixo. A barriga cresceu, inchou, esticou, e o umbigo no limite esticado desta nova bola aponta ligeiramente para baixo. Para que a família possa crescer é preciso que primeiro me cresça a barriga: estou grávida. O Trótsky vai ter mais um familiar no rebanho para guardar, guiar e proteger. Não, não foi uma gravidez particularmente planeada. Em vez de um plano, no sentido convencional do termo, foi antes mais um desafio, um "e se tentássemos?" Tentámos, correu logo bem.

Eu e o Diogo conhecemo-nos há mais ou menos três anos. E, desde que nos encontrámos, as vidas de ambos mudaram por completo, até começarmos a viver juntos. E, desde que começámos a viver juntos, a vida tem vindo a mudar a um ritmo não menos acelerado. Tem-nos acontecido de tudo, de bom e de mau, temos construído coisas, temos dado seguimento a sonhos e desenhado planos. Todos eles, os sonhos e os planos, têm em comum a particularidade de não serem demasiado pensados. Não fazemos demasiado cálculo. Nunca falámos sobre isso, mas acho que nos sintonizamos espontaneamente na maneira de viver guiados pelo instinto. Não é que tenhamos abdicado do bom senso, não pretendemos viver no limite como se cada dia fosse o último. Porém, valorizamos o impulso e a intuição. O Diogo diz que as grandes decisões nunca devem ser puramente calculistas. A verdade é que, apesar de umas quantas adversidades, a nossa vida tem seguido feliz, temperada com um bom espírito de aventura.

Agora que a barriga me cresce, e na iminência de que nos cresça a família, há preocupações práticas que assomam diante de nós. É escusado enumerar todas elas, mas há uma que importa destacar: o Diogo devia ter carta de condução e saber conduzir. Com um bebé e um cão, não termos como viajar com independência será certamente penoso. Este é um dos efeitos colaterais de não planear detalhadamente cada novo passo.

Há que saber lidar com os aspetos menos positivos de uma vida regida pela sensação de liberdade, pelo sentido de liberdade e pela capacidade de intuição. Foi, aliás, graças a todos esses benefícios que vivemos tantas e tão boas aventuras até hoje, quantas delas em intermináveis, incalculáveis e imprevistas road trips. Todas elas têm em comum dois elementos com as suas funções: eu, ao volante, o Diogo como pendura. Mas não mudava um único instante daquilo que vivemos e saboreámos. Nenhum custo é demasiado alto para qualquer das memórias que construímos.

Agora, o momento é outro. E o Diogo vai ter de assumir novas responsabilidades. Além das obviamente inerentes ao estatuto de pai, terá de aprender a conduzir, terá de tirar a carta. Já conversámos sobre isso. Já nos entendemos. "Ok, eu vou-me inscrever no código", já me garantiu. E, por isso, é possível que esta seja a última vez que conduzo sozinha numa viagem nossa a caminho das férias. Sinto que é um momento importante. Que há um ciclo que se fecha, uma etapa que se encerra. Daqui em diante, tudo será diferente.

No banco de trás, o Trótsky vai arfando e enfiando o focinho pela janela, como se tentasse lamber toda a atmosfera. Não sei se se está a rir, mas parece levar um sorriso aberto. Para que não se sinta tão só, comprámos-lhe uma cama que estreou ainda em casa. Assim, quando ficar no hotel, sozinho e sem saber onde estamos nem se alguma vez regressaremos - como funcionará o pensamento de um cão? Terão dúvidas, receios, expectativas, intuição? -, terá a sua cama para que sinta aconchego e, de certo modo, a nossa presença. Ou a nossa existência.

Quando retomamos a viagem, depois de deixarmos o Trótsky aos cuidados do hotel, nenhum de nós conseguia falar. O Diogo olhava pela janela, muito contemplativo. Parecia segurar as lágrimas, com muito esforço. E eu, de olhos embaciados, a tentar manobrar o carro em grandes dificuldades. "Da próxima vez é bom que já saibas conduzir", disse-lhe, e as lágrimas saíram-me. E ele, com as lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto, forçando um sorriso, "sim, sim, eu conduzo", e eu a tentar sorrir também, "mas agora mete música, mete qualquer coisa do meu Spotify".

*Se conhecer uma história real envie-a para m.oliviasebastiao@gmail.com. As suas ideias podem dar origem à história do próximo sábado. 

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