“Eu não queria mostrar pessoas gays a sofrer.” Carolina Markowicz, realizadora do filme Pedágio
Uma mãe solteira trabalha numa portagem no meio da estrada, o filho usa perucas e faz playbacks de canções de grandes divas para alcançar os seus sonhos mais espontâneos. A mãe decide levá-lo a uma terapia de conversão para gays. O filme "Pedágio" tenta desmontar o preconceito proveniente de algumas políticas de Bolsonaro. Conversa em Lisboa com a realizadora e um dos atores do filme.
No topo do Chiado, o Cinema Ideal persiste utópico com sessões de filmes de autor que se prolongam dia e noite. Quando se atravessa o foyer, ainda se ouve o vai e vem de elétricos ecoar nos prédios estreitos da Rua do Loreto. O ruído vai embalar-nos ao longo da entrevista. Lá fora há massas de turistas que ocupam os passeios. Nos corredores do Ideal mergulhamos nas caras de atrizes e atores que dão vida aos cartazes de inúmeros filmes, obras que veem dos quatro cantos do mundo, gritam diversidade e temáticas construídas em dinâmicas que se opõem aos blockbusters de Hollywood.
A realizadora brasileira Carolina Markowicz aguarda-nos contra um espelho, serena, sentou-se no fundo do Cinema. Ao seu lado, o ator português Isac Graça tem o cabelo pintado de loiro. Vimos as peças que fez no extinto Teatro da Cornucópia, acompanhámos a sua deambulação no filme Verão Danado de Pedro Cabeleira. No filme Pedágio ele dá vida a uma espécie de curandeiro que entre pregar uma espiritualidade bacoca, tenta convencer (ou "curar" jovens gays) a abdicar das suas escolhas espontâneas de vida. Há momentos de absoluta magia no filme, quando a personagem principal interpretada por o ainda adolescente Kauan Alvarenga, encarna as grandes divas da música soul. Em playback, o seu corpo ganha a vida dos sonhos que conseguem quase sempre ser mais fortes que o preconceito.

A sua mãe decide pagar para que curem a sua homossexualidade.

Tu usaste a frase do ex-presidente Bolsonaro como motor para escrever o teu filme. Ele dizia, "Prefiro ter um filho morto que um filho gay". Que violência foi esta que vocês viveram no Brasil durante 4 anos? Tendo um presidente assim e sendo tu uma pessoa LGBTQ+?

Carolina Markowicz: Nos últimos 4 anos essa violência foi exacerbada, porque foi promovida por uma figura de muito poder. Essa violência existe desde sempre, não foi o governo do Bolsonaro que a criou, ela já existia. O Brasil é o país do mundo que mais mata a população trans.
Mas nesses últimos anos as pessoas sentiram-se autorizadas a demonstrar todo o preconceito e toda a homofobia. Diziam, "se o presidente pode falar isso, porque não posso eu?". Essas figuras que deveriam servir como exemplo acabaram por validar coisas inacreditáveis. O que mais me intrigou, nesses anos, foi a forma como foi dado poder a uma certa forma de absurdo.
No Brasil chegámos a ter deputados que iam para o congresso com perucas ou levam bonecas da Frozen (eles dizem que ela é lésbica) para dizer às crianças que não podiam brincar com bonecas assim. Mas essa violência não terminou com o Bolsonaro, está longe disso.

Isac Graça: A sensação que tenho, é como se isto fosse um sketch humorístico de mau gosto que as pessoas acabam por levar a sério, e faz com que endeusem estas figuras políticas e sociais.
Carolina Markowicz: No Brasil isso acaba por ser mais violento, acho que aqui na Europa é mais controlado, as pessoas não saem a bater umas nas outras nas ruas, no Brasil as pessoas morrem por causa dessas piadas.

Há algo curioso na personagem do filho. O Tiquinho ouve músicas muito doces e é uma criança muito responsável. Há a doçura dele a contrastar com o cinzentismo da cidade em que se passa a ação do filme. Que vontade foi esta de trabalhar em universos tão diferentes? Há aquelas personagens que o querem curar da sua homossexualidade, movimentam-se num mundo extremamente urbano, e o mundo queer surge depois com a doçura de uma balada de Nina Simone.
C. Markowicz: A cidade é muito cinza realmente, achei isso interessante metaforicamente para o filme, enquanto ele não é aceite pela mãe vai existir um layer cinza na vida dela. Eles são muito ligados, essa doçura representa o "eu" verdadeiro dele, e o que ele quer pôr cá fora e do qual ele não pode abrir mão.
E a cidade é a resistência e o sufocamento que ele sofre da parte da mãe. Achei interessante esse cinzentismo, era como se houvesse sempre uma sombra ou uma pedra no sapato na vida desse menino, ou seja, é a relação não resolvida com a mãe. A mãe (interpretada por Maeve Jinkings) é uma mãe solo, e tem dificuldades financeiras porque tenta criar um filho sozinha e ganhar pouco num trabalho bem salubre... E na verdade o problema dela é um problema que não existe (a homossexualidade do filho). Ele é um bom menino. A frieza de Cubatão (nome da cidade onde o filme foi rodado) era conhecida. Em determinado momento foi uma das cidades mais poluídas do mundo.
Mas no Brasil diz-se que Cubatão é um paraíso da ecologia?
C. Markowicz: Sim, é uma loucura. Porque de facto é uma cidade envolta de mata atlântica. Tem indústria e mata. É uma cidade com contrastes muito gritantes que se assemelham muito à própria história do filme. As pessoas lá são muito felizes, o cinza da cidade não passou para as pessoas. Isso fascinou-me e fez-me escolher filmar lá.
No Brasil há muitas igrejas diferentes, muitas crenças. E isso leva-me à história da terapia de conversão ou "cura gay" que acaba por ser central no teu filme. O que ligou estas micro seitas religiosas às terapias de conversão, e porque quiseste construir uma narrativa à volta disso?
C. Markowicz: Inicialmente o que me instigou foi o cenário político e o tipo de escárnio de pessoas com muito poder. Para mim isso foi um gatilho. Ter políticos a pregar para deixares de ser quem és realmente. Eu depois estudei as terapias de conversão, e na realidade elas são muito mais violentas do que no filme.
A ideia nunca foi fazer um filme que imolasse o documental. Eu não queria mostrar pessoas gays a sofrer. Já vi isso mil vezes. O meu interesse era mostrar quem faz aquilo, quem profere e acredita naquilo. De certa forma representa também uma certa classe política que tem poder nas mãos. A minha ideia foi a de dar luz a essas pessoas. Também não queria filmar um pastor velhinho, eu queria algo diferente. Há agora muitas igrejas com um tom meio life coach que misturam uma espécie de pseudociência.
Procurei muitos atores para este papel no Brasil, e quando me apresentaram o Isac fiquei meio fascinada pela maneira como ele entendia o absurdo da situação e o humor ali implicado. Construi a personagem com ele e foi assim que ele virou o Pastor Isac.

Quando te propõem fazer uma personagem assim tão diferente de tudo, em que pensas? Pensas: "Não quero fazer um boneco, não quero fazer uma pessoa assustadora?"
Isac Graça: Não foi sempre assim, mas de há um anos para cá, tento não fazer bonecos. Apesar de tudo, estou a criar um ser humano.
E esses seres humanos existem?
Isac Graça: Sim, parto de mim e dou o meu corpo às balas. Responsabilizo-me pela personagem e começo a compor com o meu universo também. Fui fazer a audição sem ter lido o guião, depois de ter tido uma conversa com a Carolina. Estava prestes a apanhar o avião para Lisboa, o nosso encontro aconteceu em São Paulo. Há uma história de amor que surge a meio do filme. Talvez no meio de uma terapia... Mas não vamos revelar isso aos leitores da entrevista. A esperança é uma maneira de sobreviver a discursos tão bárbaros como os que existem no Brasil? Ou achas, Carolina, que a ficção necessita de um escape para dar alguma esperança ao espectador?
C. Markowicz: Há uma ironia que permeia o filme inteiro. A mãe do filme tem sempre o foco no lugar errado, essas ironias vão-se sucedendo.
Isac Graça: Alguém depois da estreia veio ter comigo e disse-me que o filme, embora seja sobre estas terapias, consegue também ser universal nesta coisa que são os desentendimentos que existem entre os pais e os filhos.
O que tentaste trabalhar na relação mãe e filho, durante os ensaios, antes da rodagem?
C. Markowicz: Era importante não haver maniqueísmo. Não tornar essa mãe numa vilã e esse filho numa vítima. Era importante que fosse uma relação real. Por mais que o filho fosse a pessoa que estivesse a ser incidida pelos preconceitos da mãe, não queria que ele fosse um pobre coitado. Queria que ele fosse um adolescente chato também. E queria que a mãe fosse um produto de uma sociedade que impõe muita coisa, uma sociedade que é "too much". Queria que o espectador se colocasse também no lugar dela e não só no dele. Há uma relação entre os dois, no filme, que é muito importante, e que está à espera de ser resgatada.

O que te deu vontade de fazer cinema no início de tudo, na tua vida?
C. Markowicz: Gosto muito de coisas esquisitas, de histórias improváveis.
A parte visual para mim vem sempre ao serviço de uma história. Eu penso nas personagens, o que elas vão fazer, e onde vivem. Sinto que me interesso muito pelas histórias e pelas complexidades humanas. Então o cinema vem como uma maneira de contar isso, o cinema vem como uma forma de ver pessoas e histórias ganharem vida.
O que achas dos labels que são dados às obras criativas atualmente? Por exemplo dizer que um filme é LGBTQ+ ou um livro é feminista? Achas que é dar liberdade a uma obra, ou ao contrário estás a fechá-la numa gaveta?
C. Markowicz: Como em tudo há complexidades. Por um lado, acho que um label pode dar destaque a um tipo de personalidade que se calhar deve ter mais destaque. Por exemplo, as pessoas queer enquanto realizadores ou como personagens de ficção merecem esse destaque, merecem ser mais vistas... Por outro lado, não é só porque eu sou queer que o meu cinema é queer. Não acho que se resuma a isso. Considero-me como uma realizadora que conta histórias complexas com misturas de tons. Mas o mundo, de certa forma, quer ter caixas para poder entender as pessoas. E isso interessa-me muito menos.
