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Para lá do caso Kamila Valieva. A verdade sombria que esconde o mundo da patinagem artística

O escândalo de drogas que envolve o prodígio adolescente Kamila Valieva é a mais recente polémica num desporto que exige sucesso a todo o custo. Kamila Valieva ficará na história como a primeira mulher a completar um Salchow quádruplo – mas agora arrisca a desonra.

Foto: Getty Images
22 de fevereiro de 2022 às 10:00 Máxima

Mesmo para um desporto tão elegante, era um esquema particularmente impressionante. Kamila Valieva, a patinadora russa de 15 anos, deixou os espectadores boquiabertos no Capital Indoor Stadium, em Beijing, na passada segunda-feira, ao tornar-se a primeira mulher a executar, com sucesso, um salto quádruplo nos Jogos Olímpicos de Inverno.

Ao som de Bolero de Ravel, o prodígio adolescente fez manobras de mestre sobre o gelo, vestida com um maillot preto e vermelho. Depois, deu o salto, fazendo história ao completar um Salchow quádruplo: quatro rotações no ar, executadas em 0,7 segundos. Aterrou no gelo sobre a parte externa do pé direito. Instantes mais tarde, repetiu o feito, desta vez acrescentando um toe loop quádruplo.

Foto: Getty Images

"Ela desafia as leis da física", disse Clare Balding, da BBC, assistindo à emissão ao vivo do evento a partir de Londres. "É tudo o que nos fica no coração."

Com uma impressionante pontuação final de 178,92 – mais de 30 pontos do que a segunda classificada – Valieva estava a caminho de se consagrar a campeã de destaque da competição este ano.

Agora, porém, a sua medalha está em suspenso. O primeiro sinal de perigo foi quando o Comité Olímpico Internacional anunciou que estava a atrasar a cerimónia de entrega da medalha do evento devido uma questão "legal". Mais tarde, foi divulgado que Valieva testara positivo para trimetazidina, um fármaco utilizado para prevenir ataques de angina e tratar vertigens, mas que também pode contribuir para a resistência e aumentar a eficiência do fluxo sanguíneo. Resta saber se ela tomou o fármaco fora da competição (que é permitido) ou durante a competição (que não é), enquanto alguns relatos sugerem que o teste de drogas teve lugar em dezembro passado. O COI está a investigar.

Independentemente do resultado, o alegado escândalo sublinhou uma verdade infeliz sobre a patinagem artística. Atrás da beleza e da elegância existe brutalidade, dizem treinadores e antigos patinadores: um regime de treino extenuante alimentado por um stress intenso.

Foto: Getty Images

"Existe uma pressão constante sobre as raparigas que está muito presente", diz Benoit Richaud, que patinou pela equipa nacional de dança no gelo francesa entre 2005 e 2009, na adolescência tardia, e agora treina jovens patinadoras artísticas em toda a Europa. "As raparigas têm a sensação de que o pico da sua carreira deve ser aos 15 anos… que devem ser adultas aos 15 anos. É ridículo."

As exigências físicas brutais do desporto levaram, em alguns casos, a uma cultura de dietas obsessiva. Antigas patinadoras falam sobre a pressão para se manterem bonitas e magras e os distúrbios alimentares são comuns. A russa Yulia Lipnitskaya, que venceu a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Sochi em 2014, quando tinha 15 anos, reformou-se posteriormente da patinagem artística por sofrer de anorexia crónica. Três anos mais tarde, a campeã norte-americana Gracie Gold retirou-se do Japan Open devido a um tratamento em curso para depressão e ansiedade.

15 year old Russian prodigy, Kamila Valieva performs an incredible quadruple jump. Nails it with perfection pic.twitter.com/OxwwhMwxC8

Os treinadores foram acusados de obrigarem as raparigas a pesarem-se em público, numa tentativa de as envergonhar e levá-las, assim, a perder peso. As rinoplastias abundam, bem como a lipossucção para reduzir as ancas e o polimento dentário.

Na Rússia, o regime é ainda mais brutal. Em 2019 o país foi banido das competições desportivas internacionais durante quatro anos devido a alegadas acusações de doping patrocinado pelo estado, mas dezenas de atletas russos estão atualmente a competir nos Jogos Olímpicos de Inverno sob o estandarte do Comité Olímpico Russo.

As raparigas que parecem promissoras no gelo são, por vezes, conhecidas como "bonecas russas", uma referência à sua aparência jovem e inocente. Crescendo com invernos brutalmente frios na cidade de Kazan, no sudoeste da Rússia, Valieva tinha apenas cinco anos quando a mãe a inseriu no mundo da patinagem artística. Outras patinadoras têm apenas dois anos quando dão os primeiros passos no gelo.

Se mostrarem potencial, raparigas como Valieva são escolhidas a dedo para as melhores academias de patinagem. A sua formação académica – e frequentemente a família – são relegadas para segundo plano. Valieva tinha apenas seis anos quando foi enviada para Moscovo para treinar a tempo inteiro.

As jovens patinadoras enfrentam rotineiramente 12 horas no gelo, além de se dedicarem a exigentes exercícios de fitness e flexibilidade. As melhores são, em seguida, enviadas para a treinadora das estrelas: Eteri Tutberidze; Valieva tinha apenas 12 anos quando assegurou a sua entrada para este grupo de elite da patinagem.

Ao longo da última década, Tutberidze produziu campeãs que vencem competições executando saltos extraordinariamente difíceis, como o esquivo quádruplo desta semana. Estes saltos valem cerca do dobro dos pontos que um salto triplo tradicional, o que significa que as patinadoras que os executam são quase impossíveis de superar. A profissional de 47 anos também treinou estrelas da patinagem como Anna Shcherbakova e Alexandra Trusova, ambas com 17 anos. Juntamente com Valieva, o trio é conhecido na Rússia como o "Esquadrão Quádruplo". Em março de 2020, agraciaram a capa da edição russa da Tatler, um sinal do seu estatuto de Lista A no país.

Tutberidze – a quem foi atribuída a Ordem de Honra da Rússia por Vladimir Putin em 2018 – aperfeiçoou um método polémico para ganhar, concentrando as suas energias em jovens raparigas, cujos corpos esguios e de ancas finas lhes dão vantagem sobre as mulheres adultas. O seu rácio ideal de força/peso e estatura leve faz com que seja mais fácil para elas girar o corpo.

"Quando aprendemos os elementos na adolescência, tudo se torna mais fácil – psicologicamente e as lesões curam-se mais depressa", disse em tempos.

Nestes Jogos Olímpicos, com os atletas a competir em eventos de equipas e de pares, Tutberidze poderá conquistar cinco medalhas de ouro.

Quando as câmaras desaparecem, porém, o destino das patinadoras deixa de ser notícia de capa. O interesse esmorece. A glória nacional empalidece.

"Assim que descemos do pódio, acabou-se. Já não somos ninguém", disse Tutberidze ao website desportivo russo Sports. "Ganhámos medalhas no passado, mas isso não vai ajudar-nos no futuro"

Dois dos três membros do "Esquadrão Quádruplo" padecem de lesões desconhecidas, que se pensa estarem relacionadas com excesso de treino. Outras duas atletas ficaram para trás, na Rússia: fraturas ósseas recentes impediram-nas de se qualificarem para os jogos. Em novembro, Daria Usacheva, de 15 anos, sofreu uma lesão na anca enquanto fazia o aquecimento, que se revelou tão grave que a obrigou a regressar a Moscovo de cadeira de rodas. O mundo da patinagem alude, em tom de brincadeira, a um "prazo de validade Eteri", por volta dos 17 anos – a idade com que as atletas da treinadora desistem com frequência do desporto, devido a lesões e maus resultados.

"Sabemos que as raparigas de 15 anos não têm o mesmo corpo que as de 18", diz Richaud. "Existe a questão da puberdade. É um sistema em que um atleta vence os Jogos Olímpicos aos 15 anos e, em geral, termina a sua carreira aos 17. É completamente o oposto do que acontece nas disciplinas profissionais."

Nos bastidores, longe das luzes brilhantes do rinque de patinagem, os patinadores podem rapidamente insurgir-se uns contra os outros. Alguns dizem que o seu equipamento foi roubado ou danificado por rivais. Um concorrente alemão diz que teve de se retirar de uma competição importante depois de as lâminas dos seus patins serem estragadas com um alicate, enquanto uma dupla norte-americana descobriu, mesmo antes da competição, que os seus fatos tinham sido rasgados.

O público está familiarizado com a concorrência feroz entre os patinadores artísticos. Em 1994, a patinadora norte-americana Tonya Harding tornou-se a protagonista de uma polémica internacional ao assumir-se como culpada numa conspiração para chegar a acordo judicial relativamente à acusação de ter cometido um ataque violento contra a sua rival, Nancy Kerrigan. A sua reputação ficou destruída durante mais de duas décadas, sendo ligeiramente reabilitada por um filme de Hollywood, Eu, Tonya, lançado em 2018, no qual foi interpretada por Margot Robbie.

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Contudo, a pressão exercida sobre as jovens patinadoras aumentou consideravelmente desde meados da década de 1990, dizem os treinadores. Vão-se tornando mais novas a cada competição e as medalhas vão sendo ainda mais cobiçadas.

Os paralelos com a ginástica – um desporto igualmente dominado por raparigas adolescentes magras – são evidentes. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, no verão passado, a estrela norte-americana Simone Biles, que iniciou a sua carreira na adolescência, foi obrigada a desistir da final feminina. Mais tarde disse, numa conferência de imprensa: "Já não confio tanto em mim como antes… Acho que devemos pôr a saúde mental em primeiro lugar".

A sua decisão desencadeou, pela primeira vez, um debate sobre a cultura do perfecionismo, maus-tratos e adoração de treinadores que inegavelmente domina desportos como a ginástica e a patinagem artística.

Por enquanto, Valieva, de 15 anos, tem permanecido em silêncio. Voltou aos treinos como habitualmente, na passada quinta-feira. Com um casaco de carapuço azul-marinho e collants pretos, foi vista a rir com os treinadores antes de ensaiar o seu esquema de patinagem livre.

Espera-se que o COI divulgue mais informação sobre o seu caso nos próximos dias. Poderá Valieva tornar-se a mais recente vítima do lado mais sombrio da patinagem? Tudo o que ela pode fazer agora é esperar para ver.

Créditos

Texto: Verity Bowman/Luke Mintz/Genevieve Holl-Allen-The Telegraph/Atlântico Press

Tradução: Érica Cunha e Alves

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