
Devíamos ter um segundo filho, antes do primeiro, para não sacrificarmos o pobre infeliz à nossa ignorância e ansiedade, e convinha também que conseguíssemos fazer um estágio na velhice, enquanto ainda somos novos.
Penso nisto quando constato que, pela milionésima vez, não consigo cumprir uma missão, com princípio, meio e fim. Por exemplo, agora mesmo desci as escadas em busca dos meus óculos, mas confrontada com a máquina da loiça por esvaziar, pus-me a arrumar os pratos no armário, só que fiquei a meio porque, entretanto, tocou o telefone e aproveitei estar à conversa para emparelhar meias que, como toda a gente sabe, é uma meta exigente e de insucesso garantido, já que há sempre alguma que fugiu para a terra das meias desemparelhadas. Por esta altura já não tinha a mais remota lembrança do que me levara a deixar a secretária e voltei a sentar-me ao computador, deixando atrás de mim um rasto de tarefas incompletas. Quanto aos óculos, só me lembrei deles quando vi tudo desfocado à minha frente.

Mas, provavelmente por isso, fechei por instantes os olhos e fui assaltada pelas imagens dos momentos em que ajudava a minha mãe, então já velhinha, a preparar-se para se deitar, e me ocorreu que ganhávamos muito em ser Benjamin Button's, nascendo de bengala na mão e regredindo até à infância.
Nesses dias, tirava-lhe o casaco de malha, procurando não a magoar nos ombros desconjuntado pelas artroses, e ela ordenava:
— Ponha-o no assento daquela cadeira, e apontava para uma cadeira específica.

Eu obedecia.
Seguia-se a camisa, e ela mandava, com a convicção de uma mãe de oito filhos:
— Agora a camisa, direitinha no espaldar da cadeira.

As instruções continuavam, os sapatos à direita, a carteira à esquerda, tudo tinha um lugar certo e imutável. E eu, rebelde, reagindo ao que me parecia um teste de autoridade sobre a mais nova, troçava: Que mal fazia que fossem antes os sapatos à esquerda e a carteira à direita, e porque não arrumar o casaquinho diretamente na gaveta?
Miúda estúpida, era o que era, porque — começo a percebê-lo agora! —, aquela organização meticulosa funcionava como uma ferramenta fundamental para garantir a autonomia e independência a que se agarrava com todas as forças. Quando se levantasse de manhã podia voltar a vestir-se sozinha sabendo, de antemão, onde tudo estava, sem depender de ninguém. Da mesma maneira que, na cozinha, encontrava imediatamente a taça dos cereais, o bule, a chávena e o chá, no hall de entrada, as chaves de casa, no bengaleiro, o chapéu de chuva, na mesinha ao lado do sofá da sala, o tricot, o livro de orações e o comando da televisão. O resultado é que aos oitenta e muitos anos não andava como eu ando agora, feita barata tonta escada acima, escada abaixo, e os óculos ainda por aparecer...
Visto de fora, o comportamento podia ser erradamente diagnosticado como transtorno obsessivo-compulsivo, mas não tinha nada de patológico, pelo contrário. Não se tratavam de rituais impulsivos para afastar a ansiedade, ou pelo menos não apenas, mas de estratégias inteligentes e ponderadas para manter o foco e contornar os obstáculos do envelhecimento. Porque nem os gurus das vitaminas para a veia ou do botox e quejandos podem negar que o relógio biológico é imparável, e que ficamos mesmo mais esquecidos, com as articulações mais perras e uma agilidade mental reduzida para o multi-tasking. Aliás, num tempo em que a falta de concentração se tornou universal, consequência de cérebros viciados na dopamina dos estímulos fortes que os ecrãs proporcionam à distância de um toque, suspeito que as técnicas da minha mãe são ainda mais essenciais para colmatar o desgaste dos neurónios e da fita magnética da memória. São para levar a sério, juntando-lhe bengalas como o alarme do telemóvel para não esquecer a reunião zoom, as listas — mas escritas a papel e caneta, porque os estudos mais recentes garantem que supera em muito o mesmo exercício feito no digital e, claro, ter a disciplina de colocar as coisas nos sítios delas.

Ah, como a minha Mummy deve estar feliz por finalmente me ver fazer-lhe justiça, mesmo que suspeite que é bem mais fácil prometer do que cumprir. Mais vale tarde, do que nunca.

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