Cristina Carvalho, escritora: “Não vejo televisão desde 1978.”
O romance biográfico 'Paula Rego - A Luz e A Sombra' vai ser apresentado este sábado, 24 de fevereiro, na Casa da Cultura Jaime Lobo e Silva, na Ericeira. Depois do lançamento em Lisboa, em dezembro, este evento tem um cariz simbólico já que a pintora portuguesa radicada em Londres passou a infância e parte da juventude nesta vila à beira mar.

No ano passado, Cristina Carvalho foi indicada para o prémio sueco Astrid Lindgren. Em dezembro de 2022, lançou um livro sobre o místico irlandês W.B. Yeats – Onde Vão Morrer os Poetas. No ano anterior, recebeu o Grande Prémio de Literatura Biográfica Miguel Torga com a obra Ingmar Bergman – O Caminho Contra o Vento. Com 23 livros no curriculum, 12 deles no Plano Nacional de Leitura, e um percurso literário invejável que principia em 1989, ser filha dos escritores António Gedeão e Natália Nunes é um dado incontornável da sua biografia, mas pequeno para defini-la.
Porque escolheu Paula Rego para este livro?

Porque é uma pessoa de que gosto. Nunca a conheci ou falei com ela. Imaginava-a da forma que a descrevi. Acho que o desenho que fiz dela na minha cabeça corresponderia certamente à figura dela. Da mesma maneira que escrevi sobre outras pessoas de quem gosto imenso. (fala de Selma Lagerlöf, Ingmar Bergman, Yeats ou Strindberg). Tudo morto já.
Quando viu o filme Paula Rego, Histórias e Segredos realizado pelo filho Nick Willing saiu de lá lavada em lágrimas. Lembra-se do que a marcou mais?
O filme é muito bom. Está muito sensitivo e muito bem feito. Percebe-se que o filho gostava muito dela. Mas não sei se a conhecia tão bem como eu. Como estou de fora, vejo coisas que os que são do mesmo sangue não conseguem ver.


No capítulo do livro que refere o filme fala de melancolia. Foi o sentimento que o filme lhe suscitou?
Além da beleza e da compreensão do filho – que acho total – para com a mãe. Depois o que resta? Resta um sentimento de perda e de desaparecimento. Esfuma-se no ar aquela imagem. Ficou-me só a ideia do filme e o que me emocionei ao vê-lo.

Foi visceral?
Exatamente. A melancolia surgiu a seguir.
Partiu do filme para escrever o livro Paula Rego – A Luz e A Sombra?

Não. A ideia partiu da admiração e curiosidade que tinha em percebê-la. O filme (2017) ajudou-me, mas também entrevistas que Paula Rego deu e outras leituras que fiz. Pedi coisas emprestadas e outras vieram parar-me às mãos.
Dedica um capítulo ao quadro A Dança, um marco na carreira da artista…
É neste quadro que ela assume que foi enganada pelo marido. Mas acho que a cisão entre ela e o marido (Vic Willing) foi permanente. Tanto o marido a enganava, como ela o enganava a ele. Sei que é mais aceitável que o marido a enganasse, mas ela também tinha os seus casos.
A voz narrativa do livro é da própria Paula Rego. Às vezes parece que se está a ouvir a voz dela…
Quando se fala sobre a minha escrita ou das pessoas sobre quem escrevi, acham que é uma transposição. Eu passo-me de facto para aquela pessoa. Saio de mim e avanço para aquela pessoa. Atenção que escrevo romances biográficos, não tenho espírito de investigadora. Julgo que sinto o que a pessoa sentiria. É a segunda mulher – a primeira é Selma Lagerlöf – sobre a qual escrevo. Os restantes são homens. Mas sejam homens ou mulheres, sinto o mesmo. Gosto de ir aos seus sítios. Gosto e vou. No caso da Selma, fui três vezes a casa dela na Suécia. Se assim não fosse, não me conseguiria transportar para dentro da personagem. Quero deixar claro que não estou aqui a pôr nenhum caso de transcendência ou de mística.

A Ericeira e o oeste de Portugal são alguns dos cenários do livro. Ainda há paisagens daquele tempo?
A quinta (de Paula Rego) já não existe. Resta apenas a casa. A quinta tinha 11 hectares e hoje está povoada de guindastes, prédios e uma grande superfície comercial ao lado. Não há nada daquela paisagem. A Paula Rego é uma artista planetária e não há um único sinal de que tenha passado pela Ericeira.
A mulher e o aborto são abordados de forma descomplexada no livro. Há uma descrição terrível no capítulo "Uivos do mar".
Era o que se passava. Estou a falar dos anos 60. Qual a minha opinião sobre o aborto nos dias que correm? Hoje há uma série de facilidades que não havia. Hoje só se engravida se se for muito distraída ou por um acaso. Na altura numa vila de pescadores era totalmente diferente. A Ericeira nos anos 60 não tinha interesse, socialmente falando. Era um lugar muito fechado. Mas voltando ao tema aborto, conheci pessoas que tendo filhas, iam com elas fazer abortos. Não sei se hoje há resíduos sociais ou morais na cabeça das pessoas. Nem sei como evoluiu para a vida social dos nossos dias. Quando eu tinha 14 anos (há 60 anos), a minha mãe levou-me a um ginecologista para tomar a pilula. Na época ninguém punha uma filha a tomar a pílula. A minha mãe explicou-me tudo. Se fosse com uma filha minha, eu ensinar-lhe-ia tudo para que não acontecesse uma chatice dessas. Nem digo moralmente, porque na minha opinião, as moralidades são um bocado treta. Nos anos 60 estamos a falar de pessoas sem instrução que tinham filhos uns atrás dos outros. Mulheres que tinham relações sexuais sem precaução com certeza que engravidavam. O que faziam depois? Iam para a praia fazer desmanchos.
A Paula é icónica na medida em que há um referendo pela despenalização e ela assume os abortos que fez, sendo parte de uma elite.
Esta assunção dela – ao vir de onde vinha – dos abortos é de um valor extraordinário. Porque ninguém falava disso.
E o entrar nessa luta. Com aquela série das mulheres com os baldes, está a põr os pontos nos Is.
Ela era muito corajosa. Não tinha medo nenhum, socialmente falando. Mas temos que notar que ela foi educada numa sociedade que já estava fora destes problemas há muito tempo. Desde os 17 anos que vivia sozinha em Londres.
O pai manda-a para lá porque a mãe era controladora.
Exatamente. (Risos) Ela passa a viver num ambiente em que tem acesso a uma educação completamente diferente da salazarenta. Aí passa a ver a vida de outra maneira.

No livro também fala sobre as depressões dela.
A Paula Rego é absolutamente corajosa, sem medo de nada. Estou a imaginá-la a pensar e a falar sobre todos esses assuntos abertamente. E como não escrevia, pintava. Tudo aquilo está ali: os esgares, as figuras retorcidas, os baldes (na pintura dela). Só não percebe quem for estúpido. Porque é evidente e fantástico. Foi de facto muito corajosa.
No referendo de 1998 não se conseguiu despenalizar o aborto. Era muito mal visto. Hoje a igreja ainda não o vê com bons olhos.
Ora, era mesmo do que ia falar. Temos sempre a igreja por trás. Vivemos a 50 quilómetros de Lisboa, mas as procissões são como há 100 anos. Vai tudo a bichanar atrás do padre durante cinco quilómetros.
Acha que é possível distinguir a Paula artista da mulher?
Não, acho que não. A mulher é a artista e a artista é a mulher.
No filme Paula estabelece um diálogo muito íntimo com Nick Willing e abordam temáticas que normalmente não são discutidas entre mãe e filho…
Penso que depende da mãe e do filho. Da personalidade de cada um. O meu filho do meio é psicólogo clínico e falo com ele à vontade sobre tudo. Sempre falei, era ele ainda estudante. Coisas que nunca falei com a minha filha. Não acho assim nada de extravagante. Depende da mãe e do filho. E se os dois estiverem na mesma onda e acharem natural, falam sobre qualquer tema.
O que lhe trouxe o livro como experiência pessoal?
Cada linha que se escreve é uma experiência. Cada palavra. Estive para desistir. Todos os dias pegava na descrição que estava a fazer e dizia: "não escrevo mais nada". Não era: "não consigo". Era: "não quero." Desgasta imenso. O tipo de escrita de um romance biográfico nada tem a ver com os outros. Este livro, em particular, custou-me muito a escrever. Não sei explicar muito bem porquê. E isso também é um drama.

É um drama ou um mistério?
É um mistério, não é nenhum drama. É um bocado misterioso, só tem um termo de comparação que são os outros livros que escrevi sobre escritores e artistas, pelos quais não sofri nada. Quando escrevo os meus livros ponho os auscultadores e oiço rock aos berros. Desta vez não consegui arranjar nada com que me identificasse musicalmente. Não ouvi nada e isso perturbou-me imenso.
O que gosta de ouvir?
Por exemplo, The Pogues. Os Beatles, que acho geniais. O Freddy Mercury, outro génio. Também gosto muito de Cranberries.
Como é o seu processo de escrita?
É o que for, o que me estiver a sair. É escatológico. A minha hora de escrever é sempre depois das seis da tarde. Isso é uma coisa que já reparei ao longo de muitos livros. Mas não faço ideia, porque o dia é meu. Tenho muito tempo livre. Mas já tem acontecido estar a escrever até às quatro da manhã.
Nos momentos de angústia, lê, faz caminhadas?
Caminhadas odeio, só a palavra me irrita. Vou acabar entrevada porque não gosto. Não escolho os livros que leio. Leio sempre, todos os dias leio. Todos, todos, todos. Não vejo televisão desde 1978. Posso ouvir ao longe ou ver um noticiário. Não faço ideia como se liga a televisão. Não olho para a televisão, não tenho esse hábito. Vou para a cama, regra geral, muito cedo e leio. Leio desalmadamente. Até repito a leitura de muitos livros. Há livros que adoro.
Quando soube que tinha terminado o livro?
Quando escrevi a última parte da memória. Não gosto de livros grandes. Por isso 160 páginas está ótimo. Apesar de ter sido muito cansativo. Este livro não tem tido receção nenhuma, enquanto há outros que tiveram outra projeção. Pode ser que ainda saia qualquer coisa. Isso é importante a pessoa passa um mau bocado e depois gosta de ver a obra reconhecida. Como dizia Oscar Wilde, "o pior de tudo é não sermos falados".

Escreve à mão ou diretamente no computador?
Escrever à mão está fora de questão. Ainda por cima tenho artroses severas nos dedos. Nem consigo pegar numa caneta. Há mais de 20 anos que não escrevo nada à mão. Até porque é muito melhor o teclado, para quem se habitua claro. O pensamento flui e nem sequer olho para o teclado.
Que conselho daria a um jovem escritor?
É uma pergunta difícil. Entra-se em banalidades quando se começa a falar numa coisa dessas. A pessoa sente, escritor, não escritor ou artista de uma outra arte qualquer. Porque literatura, para mim, é como a pintura, a escultura, a música, a fotografia ou a gastronomia. A pessoa sente necessidade. (suspira). Não digo necessidade, que é um bocado piroso. Não sente necessidade nenhuma. As coisas são o que são e a pessoa escreve. No outro dia estabeleci um bom paralelo entre a pintura e a literatura. São artes totalmente diferentes uma da outra. A literatura é muito difícil. Mas a pintura também deve ser. Um bom salmão no forno tem que se saber fazer, tem que se gostar de fazer aquilo, tem que se ter matéria-prima de conhecimento.
O facto de ser filha de pais escritores é uma bênção ou um entrave?
Se tenho ganho por ser filha de quem sou? Acho que não tenho. Mas repare: sou filha única de um casal cujo casamento durou 57 anos. O meu pai era 15 anos mais velho que a minha mãe. Fui educada por duas cabeças. A imagem que tenho dos meus pais é numa sala grande. O meu pai do lado esquerdo e a minha mãe do lado direito sempre a escrever. O meu pai tinha o armário e estava sempre de pé. Só se sentava para comer. Mandou fazer um armário à altura dele. Tinha um candeeiro e as canetas. Em cima da cabeça a fotografia do Einstein com a língua de fora. A memória da minha mãe é também atrás de uma secretária cheia de papéis. Passei a infância na rua, nos quintais de Campo de Ourique. O método cognitivo das crianças é por imitação dos adultos. Sentava-me no sofá e tinha uma máquina de escrever. Cresci a ver escrever e eu própria a escrever ou ler quando não estava a brincar na rua ou na escola.
