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Carmen Maria Machado: “Muitas pessoas estão a ter dificuldade em explicar o que está a acontecer. E eu penso: isto é autoritarismo. Isto é fascismo”

Conversa com a escritora norte-americana, que esteve em Portugal a propósito do Fólio (Festival Literário Internacional de Óbidos) e que apresentou o seu livro 'Casa dos Sonhos', uma autobiografia que narra um relacionamento tóxico e abusivo que viveu na casa dos 20.

Carmen Maria Machado reflete sobre relações de abuso
Carmen Maria Machado reflete sobre relações de abuso Foto: DR
28 de outubro de 2025 às 10:00 Rita Silva Avelar

O registo textual de Carmen Maria Machado (1986, Pensilvânia, EUA) é visceral, desarmante e translúcido. Nas primeiras linhas estamos de imediato imersos no seu mundo fantástico: é uma escrita que nos agarra com destreza. Em 2017, o seu livro (Alfaguara) foi sentido como uma lufada de ar fresco no  por mostrar uma escrita sem espartilhos, através de histórias de várias mulheres, contadas de uma perspectiva envolta em mistério, feminista, e sem pudores. Também o seu novíssimo Casa dos Sonhos (Alfaguara) tem este tom, mas é uma autobiografia. A autora recorda um relacionamento abusivo que viveu na casa dos 20. “Penso tudo em décadas. Aos 29, refleti sobre os meus 19, aos 49 sei que vou refletir sobre a idade que tenho hoje”, conta à Máxima na sede da Penguin Random House, em Lisboa. Reflete, também, sobre o estado do mundo e o poder da cultura como bálsamo salvador. 

Carmen Maria Machado reflete sobre relações de abuso
Foto: DR

Escreveu Casa dos Sonhos ao longo dos anos. Lê-se como uma amostra do que é a violência no namoro queer. Era esse o objetivo maior?

No meu primeiro livro, O Corpo Dela e Outras Partes, já tinha escrito, recorrendo à ficção, contos que eram mais ou menos sobre esta relação. Na ficção, a alquimia e a química da escrita são diferentes, escrevemos através de personagens, e é mais fácil, psicologicamente. Eu queria mesmo escrever uma biografia. Há países em que lhe chamam romance… Mas é uma autobiografia. É importante, para mim, que o seja. Eu queria um livro que dissesse: “isto aconteceu-me". E terminei agora um novo livro de contos sobre a ideia de se estar preso, de se andar em círculos. Sinto que é o fim de um processo. Quando se escreve um livro de memórias, não se trata apenas de ele representar um momento no tempo, este retrata um momento no passado - é fruto da versão atual de quem está a escrever o livro. Estas coisas aconteceram-me quando eu tinha vinte e poucos anos e escrevi o livro quando tinha trinta e poucos. Há uma espécie de movimento interessante no tempo que, na minha opinião, faz do livro o que ele é. Na verdade, estava ansiosa por me livrar dele, terminá-lo. Até é estranho falar sobre o livro, internacionalmente, agora, quando estou prestes a lançar outro.

O foco é muito a violência no namoro queer, da mulher lésbica que vive uma relação abusiva: numa das passagens há, até, um pouco de História sobre isso. As minorias nunca viram bons dias, mas com o momento político que os EUA atravessam, sente medo?

O conceito de “violência doméstica” é muito moderno. Quando falamos de um casal queer, falamos de uma dinâmica mais específica do que a de sempre: um homem que bate na mulher. Era o meu ponto, sim. Depois, nas relações de abuso, procuramos sempre por outras respostas antes de qualificar o que passámos. Lembro-me de pesquisar o conceito de esquizofrenia (eu adorava aquela pessoa, não sabia o que estava a acontecer). Eu não tinha nem linguagem nem referências culturais para saber o que me estava a acontecer. Não há muitas histórias, na ficção literária ou televisiva, sobre isso. Estava a entrar na vida adulta, não tinha muita linguagem para entender, tentava encobrir tudo como se tudo fosse resumido a uma má discussão, sem de facto encontrar uma qualificação para a situação.

Como vê o momento que a América e o mundo passam em relação às identidades queer? Sente medo?

Vivo no Iowa, que fica mesmo no meio do país. É muito rural. Vivo numa cidade universitária que tem muitos escritores, muitos artistas. Por isso, vivo numa bolha muito progressista, temos um socialista no conselho municipal. A comunidade é muito liberal. Mas o estado em que estamos está repleto de vacas e milho, é só agricultores rurais, é um meio muito conservador. Ao mesmo tempo, estamos a viver um momento muito assustador, e sinto que é um pouco estranho falar sobre os meus livros quando estamos nesta situação. Mas os livros são importantes. Uma das formas de manifestação do autoritarismo, do fascismo, acontece através da proibição de livros. Há anos e anos que andam a tentar proibir os livros. Na nossa comunidade, há duas semanas, entraram e prenderam um homem que trabalhava numa mercearia local, havia um vídeo que o mostrava arrastado, no chão, e [vê-lo] foi horrível, devastador. Donald Trump está a enviar tropas para muitas das grandes cidades americanas, que são mais liberais, o que significa que o que aí vem não é bom. Penso que muitas pessoas estão a ter dificuldade em explicar o que está a acontecer. E eu penso: isto é autoritarismo. Isto é fascismo. Tenho a certeza de que quando coisas como esta acontecem, há pessoas que vêem tudo às claras, e outras que... querem apenas seguir as suas vidas e fingir que não está a acontecer. Por isso, de certa forma, este livro preparou-me um pouco para este momento e para o facto de ser possível rotular algo quando é necessário e acreditar no poder da comunidade, e, por isso, continuar a escrever, continuar a ter ideias.

Carmen Maria Machado reflete sobre relações de abuso
Foto: DR

Sente que a escrita a salvou várias vezes? Nestes momentos em que a democracia vacila, a cultura salva-nos?

O facto de atacarem os livros em primeiro lugar e a arte, e de também andarem a reduzir o financiamento das artes nos EUA, significa que [a cultura] é importante. E têm-no feito, historicamente. Nos anos 80 e 90, havia muitos ataques à arte gay, especialmente por parte dos conservadores. Mas, ainda assim, costumávamos ter mais financiamento e muito desse financiamento foi cortado quando eu era criança ou antes de eu nascer, e isso está a acontecer novamente agora. No entanto, isto é tudo estranho, eu sinto sempre que estou apenas a escrever o meu pequeno livro, a escrever as minhas histórias e a escrever a minha ficção. Depois, não se pode olhar para as notícias o dia todo ou ficamos completamente loucos. O meu primeiro livro tem uma história de uma mulher que vive uma pandemia e tem imensos amantes. Lembro-me de escrever essa história e de pensar no facto de termos de [continuar a] viver a nossa vida, certo? Temos de nos levantar, passear o cão. Tomar o pequeno-almoço, fazer café, dizer olá ao vizinho. Continuar. Ir às compras, ir à escola, ir ao trabalho. Temos de fazer todas estas coisas e temos de continuar porque temos de pagar a renda e viver a nossa vida. Sempre aconteceram grandes coisas históricas à medida que as pessoas vivem as suas vidas. Temos de viver neste tipo de equilíbrio constante, navegando para tentar descobrir como podemos viver e aceitar o peso de todos estes episódios históricos que testemunhamos. Sinto que é um momento estranho para se estar vivo. Em pequena, lia imensos livros sobre o Holocausto, sobre a Segunda Guerra Mundial, e lembro-me de pensar que a História era assustadora. Que estamos a vivê-la e ao mesmo tempo não estamos, que é difícil ver a “big picture”, movemo-nos através dela e nem sabemos bem como, é como se não a víssemos. Como se fosse preciso chegar-se a uma idade para compreender e visualizar.

Os seus livros trazem sempre um pouco de "girl thing", quando antes não se falava disso. Como aquelas coisas que fazemos em segredo, que agora as séries todas retratam. Sente que escreveu e descreveu isso à frente do tempo?

Sim, quer dizer, a minha família é em parte cubana e eu cresci numa família onde havia uma clara separação, como se as mulheres fossem “assim”, os homens fossem “assado”. Tudo muito distinto, muito ligado ao género. Essencialismo de género, sim. E havia sempre esta espécie de impressão de que as mulheres eram muito pouco sérias. Eu lia muita literatura em pequena, e cedo percebi que está muito centrada nos homens. E isso reflete não só quem está a escrever livros, mas também quem está a comprar livros, quem está a editar livros. Não se trata apenas dos autores. Também tem a ver com [o olhar] da editora. São todas estas forças que estão a trabalhar [em função dos homens]. Por isso, eu acho que quando estou a escrever, estou sempre à procura das coisas que não vejo ou das coisas que não encontro [na literatura atual]. E estou mesmo a escrever as histórias que quero contar. Por isso, escrever sobre o corpo e a vida das mulheres de modo muito honesto, escrever sobre a experiência queer e as experiências das mulheres queer, e sobre sexo, é muito, muito importante para mim. Obviamente, escrevo muito sobre isso nos livros, e, de muitas formas, estou a trabalhar contra esta ideia de que as mulheres são de uma certa maneira. As mulheres são maravilhosamente confusas e humanas e eu adoro isso em nós. Acho que é muito emocionante. Tecnicamente sou bissexual. Por vezes, gosto de homens, mas sinto que estou muito mais interessada nas mulheres, sobretudo a nível intelectual. Eu acho que somos tão especiais, e porque eu cresci com essa sensação de que as mulheres eram tão triviais e as mulheres eram tão pouco sérias, acho lindo entender que afinal nós somos as mais interessantes, de longe. Tudo o que eu quero fazer é “construir igrejas” para nós, sabes? Posso fazer isso com o meu trabalho e acho que é muito importante.

Os seus livros retratam sempre o corpo com uma honestidade desarmante. É violento tornarmo-nos adultos e decidir uma coisa tão importante como o que somos?

Violento é uma palavra tão interessante... Entrar na vida adulta é como se alguém estivesse a empurrar-nos. E acho que a infância também é violenta à sua maneira. As crianças são muito vulneráveis e as crianças não sabem nada sobre o mundo e tudo o que têm são os adultos que as rodeiam. Por isso, a vida das crianças depende muito do facto de os adultos que as rodeiam serem ou não bons naquilo que fazem. Como todas as crianças, o mundo é novo para elas e tudo o que conseguem ver é o que os adultos lhes dizem. Depois, há a violência da alteração do corpo, é como se o teu corpo estivesse fora de controlo. O teu corpo começa a fazer todas estas coisas que ainda não consegues começar a compreender, mas que estão a afetar-te muito profundamente. E depois, a certa altura, somos simplesmente jogadas no mundo e estamos simplesmente a existir. É interessante, porque só começamos a ver-nos bem quando o passado já está para trás. Para mim, são precisos cerca de 10 anos. Só aí é que começo a ver-me muito claramente: por isso, como agora tenho 39 anos, sinto que consigo ver o meu "eu" de 29 anos com uma certa clareza e compreensão. Sinceramente, tenho imensa curiosidade em saber como me vou sentir daqui a 10 anos, porque quero muito saber o que se passa [dentro da minha cabeça] neste momento, mas ainda só consigo ver o passado [ri-se].

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