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Be a Lady (They Said) — mas quem são “eles”, afinal?

A revista 'Girls Girls Girls' lançou uma campanha publicitária que demonstra como é que o mundo tem castigado o sexo feminino obrigando-o a ser tudo aquilo que ele não é. Num vídeo repleto de imagens de poderosas mulheres produzidas pela própria revista, fica a questão: quem é que nos dita as regras, afinal? A sociedade? Os homens? As próprias mulheres? Todos?

28 de fevereiro de 2020 às 12:18 Pureza Fleming

"A tua saia é muito curta. As tuas calças estão demasiado justas. Não mostres tanta pele. Não mostres as coxas. Não mostres os seios. Não mostres a barriga. Mostra um pouco de pele. Mostra-te sexy. Não sejas demasiado gorda. Não sejas demasiado magra. Come. Emagrece. Pára de comer tanto. Meu Deus, pareces um esqueleto. Porque é que não comes?". O texto é longo — 758 palavras para ser exata — e as contradições são mais do que muitas. É possível que este vídeo, uma campanha publicitária lançada a 23 de fevereiro pela revista Girls Girls Girls, já lhe tenha passado pelos olhos (ou, pelo menos, pelo seu feed de notícias) ao longo das últimas 48 horas. Em Be A Lady They Said, Cynthia Nixon, a Miranda de O Sexo e a Cidade (1998-2004), dá voz a uma versão curta da prosa de Camille Rainville, escrita em 2017 e publicada depois no blogue da estudante da Universidade de Vermont.

Durante cerca de três minutos, Nixon vai relatando uma série de paradoxos que demonstram, de forma claríssima, como é que a mulher tem sido levada na sociedade ao longo da sua existência. De forma muito resumida o que este vídeo conclui é que o sexo feminino tem sido, como se costuma dizer, preso por ter cão e preso por não ter. Esta não é a primeira vez que tais incongruências são abordadas. Na sua teoria da Opressão, com data de 1983, a feminista Marilyn Frye comparava a opressão que as mulheres experimentavam com a situação de um pássaro numa gaiola. O que significava que, independentemente da situação em que esta se encontrasse, daquilo que ela escolhesse dizer ou fazer, um padrão trataria de colocar entraves no seu caminho. Numa época em que o tema do feminismo está na ordem do dia, em que as mulheres arregaçam as mangas e começam a demonstrar de que material são feitas, esta campanha revela-se um tiro certeiro — e eficiente, tal como nos demonstram as incontáveis partilhas que o mesmo vídeo já teve no mundo virtual (tudo em dois dias). Porém, importa questionar o seguinte: mas afinal quem são "eles", os tais que nos ordenam que "sejamos umas senhoras"?

Num artigo publicado na Máxima que deslinda acerca da culpa feminina — ou do sentimento de culpa que constantemente assola as mulheres, tal como comprova a ciência — um psicólogo explicava que as grandes instigadoras deste tipo de sentimentos de culpabilidade eram as próprias mulheres. Que mais do que a sociedade, mais do que os homens, era a competição feminina que levava aos maiores estados de culpabilidade do sexo feminino: "A comparação com as outras é o grande mal. Porque não conseguem ser tão rigorosas na dieta, porque não conseguem fazer a festa perfeita para os filhos. Porque aquela acabou de ter o bebé e já está em forma e eu tive o meu há mais de um ano e ainda tenho barriga. Porque a outra participa nos trabalhos da escola e eu mal tenho tempo para os ir lá deixar de manhã." A competição entre as mulheres, conforme clarificava o psicólogo naquele texto era também, e em grande parte, resultado daquilo que era ensinado de mães para filhas — e para filhos! — acerca de qual deveria ser o papel da mulher na sociedade. E agora nós, as mulheres que assistimos a este vídeo e as mesmas que estamos a ler este texto, paremos um segundo, coloquemos a mão na consciência e questionemos: quantas vezes já dissemos àquela amiga que ela estava "magra demais"? E que a outra estava "um elefante" (isto, é claro, nunca dito na cara dela, mas em formato de fofoca — outro dos grandes talentos femininos)? Quando é que foi a última vez que comentámos com X que Y se punha "mesmo a jeito para estar na situação matrimonial em que está"? E que a outra tinha de ser "mais ousada e arrojada"? Quantas e quantas vezes fomos nós, mulheres, as piores inimigas do nosso sexo? Nas redes sociais somos todas muito unidas e amigas, contudo na vida real, na crueza do quotidiano, facto é que somos muitas vezes nós, mulheres, o maior entrave à aceitação de sermos, de facto, quem somos e como somos — gordas, magras, altas, baixas, desleixadas ou super produzidas, umas pegas ou umas santas.

São os homens e é a sociedade, mas somos também nós, mulheres, que nos julgamos, que nos criticamos e até que nos maltratamos umas às outras. É muito fácil partilhar este tipo de vídeos e acompanhá-los de frases de empoderamento feminino, mas se não mudarmos realmente a nossa forma de ver "a outra", não há melhoria possível para a vida das mulheres em sociedade. Porque com os homens, como têm vindo a relatar os acontecimentos dos últimos anos  embora haja ainda muito a fazer, começamos a "poder nós bem". Estamos mais fortes — e o vídeo é um bom retrato disso —, e "eles" começam a perder relevância nas nossas decisões, ao contrário do que acontecia com as nossas antecessoras em passados não tão longínquos assim (ainda que a luta continue). Porém, além de mais fortes, mais do que sermos fiéis a nós mesmas, tão importante como sentirmo-nos confortáveis na nossa pele, é apoiarmo-nos umas às outras de forma genuína e sincera. Juntas somos mais fortes. Juntas não há ninguém que nos diga aquilo que deveremos ser. Nós sabemos que somos umas senhoras, muito obrigada meus senhores. Mais decote, menos decote, mais puras ou mais levianas, seremos simplesmente aquilo que nos der na real gana.

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