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A era das divas já era

"Os problemas começam quando uns se acham (muito) superiores aos outros."

Foto: Foto: João Paulo /Styling: Filipe Carriço
17 de dezembro de 2021 às 07:00 Patrícia Barnabé

Se eu fosse uma concorrente a Miss Universo, o que jamais aconteceria mesmo que eu quisesse muito, e me perguntassem o que mudaria neste mundo, depois da guerra e da fome e dessas questões maiores, elegia a arrogância. Porque está tudo ligado: os problemas começam quando uns se acham (muito) superiores aos outros.

Claro que não somos todos iguais, mal seria, uns são mais fortes, corajosos ou curiosos, outros mais generosos, inteligentes ou cultivados, só que não são estes os talentos que a maioria persegue. Na indigente ordem de prioridades, que não evoluíram desde o tempo em que éramos uma maioria indigente, o povo continua a querer riqueza, beleza, juventude e prazer, certo? E quem pode ser arrogante perante as escolhas dos outros?

A optimista radical que vive dentro de mim acredita que vão nascer comunidades fraternas desta grande rede de individualismos que temos construído, mas muito provavelmente vai ser por desespero, como as grandes mudanças e revoluções. Veja-se a sustentabilidade, se não nos mexermos não vai sobrar ninguém para contar como foi. Por muito que tenhamos a favor da diversão e da vaidade, esses grandes bálsamos de vida, se não remarmos todos para o mesmo lado o barco não chega.

Há os que se acham melhores porque são mais ricos, os senhores disto tudo, espaçosos e arrogantes como os banqueiros trafulhas das grandes burlas que se julgam intocáveis. Mesmo que a sua fortuna não tenha qualquer honra, como muita da herdade pelos títulos nobiliárquicos de outrora. Há os que se acham mais lindos, porque são jovens e magros e altos, mesmo que discutíveis e tantas vezes vazios. E há a arrogância dos cultos, dos name droppers, como se ter lido o Proust nos fizesse melhores pessoas. Isto para não falar do patriarcado branco constantemente massacrado por razões óbvias.

Os maiores que entrevistei são sempre os mais simples. De Peter Lindberg a Jean Paul Gaultier, de Christian Lacroix a Erykah Badu, de Beyoncé a Patti Smith. Se formos para os filósofos e cientistas, então, é impressionante. Quem trabalhou no olho do furacão que a Moda já foi, conviver de perto com narizes empinados sem qualquer mistério ou ideia nova é mato. O que é curioso é que os arrogantes aqui são quase sempre os agentes e os relações públicas, não os próprios artistas. Jonathan Anderson, director criativo da Loewe, ou o recém desaparecido Virgil Abloh, que desenhava a linha masculina da Vuitton, tornaram-se heróis da nova geração precisamente por serem acessíveis. Eles cimentaram a nossa vontade de usar ténis para todo o lado, o que já é em si um simbolismo de mudança. E não lhes escorrega uma lasca de superioridade porque não precisam – têm mais o que fazer.

A era das divas já era. Snob significa sans noblesse e é tão triste quanto irritante, quase precisa de um abraço porque a arrogância é uma fraqueza. Normalmente ataca os fascinados por uma ideia qualquer de status que os protege, endeusa e rodeia. Ok, só que já não se usa, e a vida encarrega-se sempre de nos evidenciar a nossa insignificância.

O snobismo só tem graça para fazer humor – quem não adora os cometários wit da condessa-mãe da série Downton Abbey? É o único momento em que ser arrogante pode ser refrescante, desanuviador até, mas é completamente incompreendido, ainda mais nesta era moralista, literal e radical em que vivemos. Temos grande dificuldade em rirmo-nos de nós próprios.

É curioso escrever sobre a arrogância num país onde, não há muitos anos, qualquer posição demarcada ou personalidade evidente era imediatamente amansada ou aplacada, com um olhar de soslaio, como quem diz: "tem a mania". Uma rapariga opinativa, então, ui! era um acontecimento: ela devia manter sempre a discrição silenciosa e adaptativa das esposas e mães elogiadas por Salazar e pelo senhor padre. E, vamos ser honestos, ainda se valoriza esse tipo feminino, como uma boa cozinheira ou cuidadora nata tem sempre mais pontos do que uma desempoeirada com frescura de pensamento e independência financeira. Lembrei-me agora de crescer a ouvir os rapazes dizerem gostar mais das miúdas que não se maquilham – isso ainda existe?

Para os nascidos antes dos anos 80, nesta pátria da modéstia à beira-mar, tudo parecia demais, por isso mantinha-se de menos para não levantar ondas. O resultado, nem nos apercebemos, foi uma crónica baixa autoestima que, apesar do ensimesmamento, a nova geração está a saber levantar exemplarmente com a ajuda da internet e do novo cosmopolitismo.

Agora que as nossas capitais são engolidas por estrangeiros vindos dos quatro cantos, o preconceito não tem outro remédio se não diluir-se na novidade e na diversidade. E a nossa modéstia, que sempre nos pareceu o parente pobre da humildade, poliu-se. Hoje é a nossa simplicidade como povo que nos torna singulares na moderna, mas cansada, Europa. Perguntem a Philippe Starck ou ao dono do novo café da moda porque trocaram Paris por Lisboa. É vê-los a fugir das suas capitais sofisticadas e modernas, mas atulhadas e competitivas e arrogantes à procura da simplicidade de um raio de sol e de uma mini. O que chamam agora de slow living do qual somos especialistas naturais. Claro que os descontos que lhes fazemos aqui, nos impostos como na vida, também contam.

Quando a cultura portuguesa da humildade não roça a subserviência é um traço de grandeza. Enche-me de orgulho e comoção. Bem sabemos que se o mundo só fosse dos humildes ainda andávamos todos de burro, mas a melhor gente simples não se apaga e não se esquece, porque a simplicidade é desconcertante e a sofisticação última. Hoje em dia não quero menos do que menos à minha volta, até porque menos com menos é mais.

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