“A ciência salvou-me (…) mas há coisas que não se conseguem explicar”
No livro autobiográfico Voando Sobre a Vida, o médico cardiologista Miguel Mota Carmo conta como viveu, na primeira pessoa, uma experiência de quase morte.

O conhecido médico cardiologista Miguel Mota Carmo ( agora retirado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa) desfrutava de uma vida sossegada, estável, feliz. É assim, inclusive, que relata um dos dias bem passados com a família e amigos na casa que tem em Santo Estevão, Benavente, num dos primeiros capítulos do livro Voando sobre a vida [Contraponto]. Até que tudo muda, quando deixa de conseguir comer o que quer que seja. É apenas o ponto de partida para contar a sua luta pela vida, que envolveu um linfoma folicular em 2007 e um recidiva em 2014, que o catapultaria para praticamente seis meses de internamento na Unidade de Urgência Médica (UUM) do Hospital de São José, em Lisboa.
Seis anos depois, a experiência, que em nada foi fácil e que só foi possível superar, como o próprio revela, com o apoio incondicional da mulher Teresa, da filha Filipa e de todos os amigos e familiares, é contada na primeira pessoa num livro que diz ter começado a escrever pouco tempo depois de chegar a casa, entre as leituras e a recuperação. Escrito por um homem da ciência, este é um testemunho que não só relata uma experiência real, como todos os seus contornos emocionais, afectivos e espirituais. Uma bonita história do renascer da fé, a par de um elogio notável ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e aos seus pilares: as pessoas.

Miguel: passaram-se cinco anos desde aquele que foi um dos momentos mais duros na sua vida. Porque decidiu contar a sua história em Voando sobre a Vida, agora?
Na verdade comecei por escrever este livro seis meses depois de ter tido alta. Quando cheguei a casa tinha limitações neurológicas, estava magro, não tinha força, mas queria mostrar que queria voltar a fazer tudo. Que ia recuperar, voltar ao hospital, à faculdade… De facto, quando eu consegui fazer isso tudo, decidi escrever o livro. Eu acho que aquilo por que eu passei vai ser uma ajuda para outras pessoas. Do estado em que eu estive, que foi "para lá de Bagdá" e depois de ter recuperado de uma paralisia dos membros, utilizando outras medicinas que não a medicina convencional, utilizando uma parte espiritual, achei que devia contar tudo. As pessoas não devem agarrar-se a uma só coisa, mas a várias, não devem negar as medicinas alternativas nem a parte espiritual. As pessoas têm que se agarrar à fé, seja ela qual for. E no livro eu não faço uma apologia de uma só religião.
Conseguiu transformar a linguagem do livro legível para qualquer comum mortal, mesmo com os termos técnicos. Foi um desafio fazê-lo?

Eu ponho-me sempre do lado de "lá", é uma das minhas características. E testo sempre o que vou dizer, quando não me faz sentido não avanço. A linguagem médica é uma linguagem muito específica, muito técnica, e difícil. Primeiro escrevi, com os termos técnicos todos, depois dei à minha filha que leu, e sugeriu-me algumas mudanças na linguagem.
No seu caso, porque decidiu tornar-se médico?
Desde miúdo que dizia que queria ser médico, nunca me passou pela cabeça ser outra coisa. O meu pai era militar, queria que eu fosse militar. Porque na família não há médicos, eu fui o primeiro. Não existe tradição. Ao contrário da minha mulher, que é médica, os irmãos também o são, o pai e o tio também. A cardiologia foi um acaso porque o que eu queria era ser cirurgião cardíaco. Ainda enquanto esperava para fazer o exame e entrar numa especialidade, houve uma mudança e fui colocado a fazer urgências internas onde fiz o estágio, na cirurgia cardíaca. E ali ninguém operava, colocavam pacemakers. Pensei: se é assim, vou seguir Cardiologia. Mas não era a minha primeira opção.

Lecciona há muitos anos. Já nessa altura se manifestava em si a vontade de ensinar?
Eu comecei a ensinar antes de entrar para a especialidade. Fui pela primeira vez ensinar Fisiopatologia em 1981, como professor auxiliar, até que mais tarde fui nomeado regente de uma unidade curricular, Introdução à Prática Clínica. Fiz o mestrado em 1987, e o doutoramento em 1993. Entretanto saí dos hospitais, dediquei-me à carreira de investigação e à carreira de docente e só regressei mais tarde aos hospitais.
Numa das passagens do livro diz que depois de se formar, se tornou agnóstico. Ainda perpetua a ideia de que um homem da ciência e pragmático nunca pode ser simultaneamente um homem de Deus e de fé?
Eu tornei-me agnóstico pelas coisas que eu fui vendo em Medicina. Não só, mas também porque o que via no mundo geral, mundial, global. Deixei de frequentar a Igreja, e deixei de acreditar. Mas sempre acreditei numa energia superior. Depois, deixei de ser agnóstico por causa de uma coisa que me aconteceu a mim do ponto de vista médico. A ciência salvou-me, a capacidade técnica de todo o pessoal hospital. Mas há algumas coisas que não se conseguem explicar. Quando eu estive a primeira vez em coma, depois de uma hemorragia brutal no estômago, cheguei a valores completamente incompatíveis com a vida. A minha pressão arterial estava 300 milímetros de mercúrio (mmHg). O normal é 150. A hemoglobina estava a 3… E o nosso organismo está tão bem feito que quando se começa a perder sangue, o que existe é todo canalizado para os órgãos nobres como o coração. Mas essa capacidade perde-se a partir de um determinado valor abaixo da pressão arterial, portanto com valores de pressão arterial tão baixos não há perfusão.
Pensaram que morreria, nesse momento?
As pessoas interrogavam-se como é que eu ia acordar, depois de me salvarem. Eu acordei bem. Como fazia muito desporto, o meu coração estava impecável. O fígado ficou afectado, tive alterações metabólicas como têm os alcoólicos em privação, tanto que no livro conto que via formigas encarnadas na parede. Do ponto de vista intelectual eu estava normal, e do ponto de vista científico isto não se explica.
E acerca do pragmatismo e da fé?
É uma ideia global, mas há muitas pessoas que são homens ou mulheres da ciência, e que são religiosos, católicos, e que defendem a igreja com unhas e dentes. A fé é uma coisa que não se explica.
Quando no livro descobre o linfoma, em 2007, narra essa descoberta com alguma calma. Como médico, conseguiu ser racional?
Nós somos médicos, e eu racionalizei aquilo. O linfoma, dentro da patologia dos cancros, é das coisas mais "softs", e a forma que eu tinha era um linfoma folicular que é uma coisa muito indolente. O indivíduo pode morrer aos 100 anos com este diagnóstico. Tivemos a sorte de conhecer o Professor Doutor António Parreira, que agora se encontra na Fundação Champalimaud mas que estava no IPO, e que me ensinou a viver com a doença. Dentro da racionalidade, há sempre uma irracionalidade, e na altura comecei a comer loucamente e fui parar aos 96 quilos. A seguir a isso comecei a fazer desporto e a correr. Corria quase todos os dias, e sentia-me bem, as análises davam normais.
Até à crise e recidiva do linfoma em 2014, que desencadeou aquilo que seria um pesadelo a durar seis meses. Fala muito da família e dos amigos. Lutou até ao fim por eles?
A minha filha Filipa estava completamente perdida. E eu ver a minha mulher Teresa, as minhas miúdas, naquele estado, dava-me força para tentar ultrapassar a situação. Tive um apoio imenso do meu cunhado Armando, que foi um homem extraordinário. Ele esteve todos os dias comigo, fazia-me companhia, e quando vim para casa levou-me para todo o lado. Tenho alguns colegas e amigos que foram fundamentais quer na minha recuperação quer no apoio que deram à Teresa.
O episódio que escolhe para abrir o livro é o do banho com o enfermeiro António. Marcou-o muito, esse momento?
Por um lado, são aquelas coisas a que não damos valor no dia a dia. Metermo-nos no duche e despacharmo-nos para trabalhar é algo que fazia rápido. Esse duche marcou-me porque há quase seis meses que não tomava banho, tomava "à gato". Quando me propuseram ir ao duche, desligaram-me todos os tubos, meteram-me no duche. Nunca me esquecerei do prazer da água a correr na minha cabeça, não queria que aquilo parasse. Depois eram as minhas limitações neurológicas, não conseguia fazer movimentos quase nenhuns. Não tinha agilidade. Os primeiros duches foram verdadeiramente cansativos, saia dali exausto. Depois lá vinha a fisioterapeuta Margarida, que me ajudou imenso no exercício. O banho marcou a minha primeira tentativa de independência.
Esses pequenos rituais do dia a dia têm agora outro significado? No livro relata que quando chegou a casa tentou fazer uma caipirinha, mas não conseguiu sentir o sabor….
Completamente. Uma das coisas que me fizeram ficar completamente perdido foi a perda do paladar. Para um cozinheiro "gourmet" como eu foi complicado. Quando comecei a recuperar o paladar, que é uma coisa tão pequena, recuperei a alegria. A comida sabia-me toda diferente. Adorava sumos, o sumo de laranja não o podia ver, não conseguia comer batatas fritas, que adorava. Aquelas pequenas coisas a que não damos valor, mas para mim foi uma conquistar recuperar parte do paladar. Nunca me passou pela cabeça que pudesse ficar sem eles.
Fala muitas vezes da sua mudança de perspectiva em relação aos enfermeiros, e de como a classe dos médicos os vêm. Depois de mudar de perspectiva, considera que se isso mudasse, também o sistema hospitalar melhorava?
Nós somos uma classe que do ponto de vista da hierarquia dentro do hospital estamos no topo, e muitas vezes não nos apercebemos das coisas. Sempre tivemos a ideia de que os enfermeiros serviam para lavar rabos e por soros. E eu mudei completamente a minha visão, porque eu estive do lado de lá. Os enfermeiros eram a minha companhia 24h por dia. Foram a minha família adoptiva, e "largá-los" foi a única mágoa que eu tive quando saí da UUM [Unidade de Urgência Médica].
A certo ponto acaba mesmo por dizer que são um dos pilares do SNS. As pessoas dizem frequentemente que o SNS se tem degradado, mas os números mostram-nos que é dos melhores da Europa. O que está a falhar, então?
O Serviço Nacional de Saúde não é mau. As campanhas que se têm feito por ai são um exagero, porque "vende", porque os políticos têm sobre o que falar…Ninguém mostra números, só dizem que está tudo mal. Quando eu estava no Hospital de Santa Marta, faltava-nos equipamento e muitas vezes coisas básicas, mas a parte médica, a parte da enfermagem, fazem um esforço grande e não se nota tanto esse tipo de situações. Às vezes a situação passa de ser uma situação de tratamento ótimo para ser uma situação de tratamento bom. Não deixa de se fazer o que é necessário.
O que é que considera ser mais grave, então?
Há coisas de política geral do Ministério como as listas de espera, que para mim é uma coisa verdadeiramente vergonhosa em determinadas áreas. Por exemplo, em Santa Marta, tudo o que era ecocardiogramas, provas de esforço… era tudo feito no hospital. Eram ali vistos cerca de 120/140 doentes em consultas, e a maior parte dos doentes que iam às consultas de cardiologia não eram estudados primeiro. Concluindo e resumindo, eu tinha uma lista de espera de um ano. Isto é admissível. Porque depois há muita coisa que não é grave… mas outras gravíssimas no meio. Cheguei a fazer ecocardiogramas a estenoses aórticas graves que estavam há um ano à espera. A componente médica, enfermeira e técnica sofre as consequências das políticas erradas de saúde. Nos sítios onde estive as pessoas fazem das tripas coração para tentar dar o melhor, e as coisas que se dizem entre privado e público são mentira. As pessoas ganham mal, não são compensadas do ponto de vista financeiro e depois diz-se que há um esvaziamento do SNS…
Quando soube que intercedia uma pessoa por si, a Margot, o que sentiu? Reencontrou uma fé que estava perdida?
Quando soube que ia ser operado e que ia ficar bom eu acreditei. Eu estava triste, aparecia com febre, tinha um abcesso debaixo do diafragma, tinha dores. Quando a minha amiga me veio dizer que existia uma Margot fiquei sem palavras. Quando era mais novo lia muito sobre isto, adorava estas teorias relacionadas com espiritismo, li muito sobre o assunto. Quando soube da Margot acreditei, fez tudo sentido. Como é evidente ela não me curou, quem me curou foi a medicina. A Margot ajudou-me naquele percurso a que me curasse, e deu-me informação sobre o que me esperava. A partir dai, fosse o que fosse que me acontecesse, sabia que ia correr bem.
Como é que reagem os amigos médicos mais cépticos, quando os confronta com os benefícios do Magnified Healing?
É uma canalização de energia em que há uns mestres que estão entre a divindade superior e entre os anjos, e são eles que guiam, neste caso, a Margot, que tem a capacidade de ser médium.
Como é que reagem os amigos médicos mais cépticos, quando os confronta com os benefícios desta terapia espiritual?
Ninguém me fez comentários a dizer: agora viraste espírita? A maioria dos meus amigos viveu aquilo e muitos dão-me agora os parabéns pelo livro.
Diz que entendeu estar para além do limiar da vida. O que sentiu quando acordou do coma, e quando se foi recordando do sonho que relata no livro?
Eu sei que vivi aquele sonho. Quando acordei, não sabia onde é que estava. Acordei, descobri que não mexia nada, estive quatro semanas em coma com um intervalo em que estive acordado mas que não me lembro de nada. Há certos acontecimentos que [conclui depois] interpretei como sonho mas tinham sido realidade acordada.
Como é que hoje interpreta o seu sonho? Nele, há várias tentativas de fuga.
Uma das minhas angústias permanentes era saber quando iria para casa. Eu depois deixei de pensar na casa, a partir do momento em que saí do coma. Sabia que tinha de recuperar, e passou a ser menos uma angústia.
No fim do livro menciona que gostaria de fazer hipnose regressiva. Chegou a fazer?
Não. Eu tenho amigos psiquiatras que me disseram que não conhecem ninguém o que faça de forma seriamente, mas não perdi a esperança de fazer. Gostava de encontrar alguém que saiba ser uma pessoa idónea para me fazer isso. Uma coisa é certa: eu vi formas plasmáticas, no meu sonho, que são descritas nos livros de hipnose regressiva sobre os espíritos. Vi figuras disformes.
Hoje em dia recusa totalmente negatividade?
Sempre fui muito positivo mas tolerava a "malta" negativa, embora me irritasse às vezes. As pessoas nunca estão contentes com o que têm, querem mais, geralmente com coisas superficiais. Hoje em dia não tenho a mínima tolerância.
Há uma razão de ser para as coisas?
Sim, eu acho que se sobrevivi da primeira vez e depois da segunda, é porque só poderia ter mais qualquer coisa a fazer nesta terra. Esta experiência que eu estou agora a viver é para mim algo único, porque nunca pensei escrever um livro, nunca pensei que o livro fosse um sucesso, muito menos um dia dar entrevistas. E sobretudo porque tudo aquilo que quero com este meu livro é ajudar os outros. Se sobrevivi, nem que seja, para ter escrito o livro e ajudar os outros, já vale a pena ter sobrevivido.
