"Não estamos programados para sermos monogâmicos a longo termo"
Especialistas do comportamento afirmam que entre nós e os animais existem mais semelhanças do que diferenças. A começar pela sexualidade.

"Animais e humanos fazem sexo por uma miríade de razões", diz-nos o professor José Palma, catedrático de Psicologia Social, sentado na cafetaria da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa. "A ideia clássica da Biologia que diz que o sexo existe, essencialmente, para procriar e subentende uma procura dos melhores indicadores genéticos é limitadora" e está a ser refutada pela Ciência. Subsistem estereótipos cristalizados, mas os novos estudos abrem novas perspetivas. "Darwin considerou, erradamente, que os machos são mais valentes, mais bonitos e emplumados. Subentendia que teriam ‘paixões’, já que competem pela fêmea e esta escolhe o macho selecionando as suas qualidades e os seus recursos. Esta teoria levou a outra, também errada, que diz que os machos preferem a quantidade e são menos investidos, e que as fêmeas preferem a qualidade e são mais investidas e monogâmicas porque procuram a boa qualidade genética, preferindo machos belos e dominantes. Os animais demonstram que estas ideias simplistas não são verdade, pois fazem sexo por prazer, por poder, por dominação, para se cumprimentar e são muito diversificados nos seus objetivos." Este alivia e resolve tensões e conflitos, tem uma espécie de efeito terapêutico. Robert Sapolsky, mestre nestes temas, professor de Ciências Biológicas e Neurologia, refere como exemplo interessante os chimpanzés bonobos e a sua diversidade e sofisticação sexual, nas suas aulas na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, as quais podem ser vistas no YouTube. Têm sexo só por diversão e o mesmo acontece com algumas espécies de golfinhos: "Dizem-nos tanto sobre a nossa pequena mentalidade em relação às experiências sexuais." Para os humanos, aquelas velhas teorias valem menos ainda, e os tabus sociais em relação ao sexo perdem todo o fundamento baseado na natureza. Entre nós, a sexualidade é interação social e fortalecimento de laços, ainda mais numa era em que tantos optam por não ter filhos. O cientista diz ser "única nos humanos, a necessidade de privacidade para o sexo", assim como "a existência de grupos específicos de pessoas que confundem sexualidade com violência de uma forma sociopatológica".
A sexualidade humana é muito codificada e balizada pela sociedade. Temos consciência, moralidade e ambição, construções sociais elaboradas, mas na hora da verdade, por assim dizer, não são estas que nos fazem tremer a perna. Por isso é tão interessante ouvir o que ela tem para nos dizer. Tânia Minhós Rodrigues, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é doutorada em teorias moleculares aplicadas à conservação de primatas (que observou na Guiné-Bissau e na África do Sul) e gosta de estudos de comportamento por serem "muito ricos". "A partir da observação de primatas aprende-se bastante sobre os humanos", afirma. Apesar de sermos dotados de uma maior complexidade de comportamento, graças a uma maior complexidade cognitiva, "somos muito próximos dos primatas biologicamente: com o chimpanzé partilhamos entre 98 e 99 por cento do genoma". E se também nos achávamos únicos na construção de cultura, o que nos distinguia de outras espécies, hoje sabe-se que "os chimpanzés aprendem de uma forma cultural, também, e têm culturas diferentes em diferentes comunidades", esclarece Tânia Minhós Rodrigues, rematando: "E o mesmo é verdade para outros mamíferos."

Os critérios do género e da idade, por exemplo, são humanos e culturais. "Os Homens são os únicos a darem-lhes importância e subentendem sempre relações de poder. Nos bonobos, muitas fêmeas mais velhas, principalmente as poderosas dentro do grupo, fazem sexo com os machos mais jovens, não existem preconceitos", diz-nos o professor José Manuel Palma, no seu jeito divertido e informal. Sapolski lembra que "na Natureza, as fêmeas correm e fazem várias investidas perante os machos, contrariando completamente a ideia da fêmea naturalmente passiva", vigente nas sociedades humanas durante séculos – e que tão bem suportou o discurso do machismo e do patriarcado. Basta observar competições entre leões ou entre babuínos: "Não só a agressividade não é um exclusivo masculino como as fêmeas são altamente hierarquizadas." Em alguns casos, elas gerem a caça e outras questões fundamentais dentro do grupo, como a sexualidade: "O macho alfa não tem sexo com quem quer, mas com quem as fêmeas na sua hierarquia determinam", remata o psicólogo social a propósito de uma espécie de babuínos. "E mesmo nas galinhas há uma estrutura demarcada."
Apesar do discurso bifurcado de séculos, o género é uma bandeira desta era e caminha para se tornar, finalmente, numa "não questão", pelo menos nos países ocidentais de mentalidade mais aberta. Mas a ciência já anda a dissertar sobre este assunto há algum tempo. "O cromossoma X é primeiro que o cromossoma Y, o que significa que, do ponto de vista biológico, o macho provém da fêmea", diz José Manuel Palma, contrariando a ideia bíblica de que Eva saiu da costela de Adão. "Se alguém veio de alguém foi o macho da fêmea." A neurocientista cognitiva Gina Rippon, professora na Aston University, doutorada em Psicologia Fisiológica, concedeu, recentemente, uma entrevista ao The Guardian a propósito do lançamento do seu livro The Gendered Brain (Penguin). Considera esta insistência na dicotomia "perniciosa" e antiga, já que remonta ao século XVIII. E reflete: "Muito antes de olharmos para o cérebro criaram-se estas ideias e metáforas que encaixavam no status quo e na sociedade, dando alento a diferentes educações para homens e mulheres." Rippon, que estuda fenómenos como a esquizofrenia ou o autismo, considera que vivemos submersos "num mundo definido pelo género" que modela as hierarquias e as relações sociais, a identidade e até a definição de sanidade, quando hoje se sabe que "o cérebro é plástico", isto é, evolui ao longo da vida, aprende e adapta-se à forma como vivemos. Ou seja, acompanha a cultura e é formatado por ela. Por isso, as mulheres não são melhores multitaskers, nem os homens têm mais orientação espacial – é a educação que os treina assim.
Outro clássico da sexualidade e da sedução é a valorização da beleza, ainda que esta seja discutível. Ela fascina sempre e subentende uma harmonia, seja de traços num rosto ou na vivacidade colorida de uma plumagem. No caso humano, mais uma vez, é marcada pela grelha do estereótipo. "Há uma ideia do que são pessoas bonitas e somos atraídos por certas medidas que são tendencialmente simétricas ou com traços exagerados", diz José Manuel Palma. "Mas a verdade é que passámos de um ideal de beleza da mulher de Rubens para [o de] Keira Knightley." A gordura, ou a falta dela, é também um indicador social. "Existe uma tribo em África que obriga as crianças a comer hidratos de carbono para engordarem à força", recorda José Manuel Palma, enquanto na próspera sociedade ocidental a magreza é um sinal de status, de autocontrolo, de saúde e de bons genes, embora também seja cada vez mais discutível a sua relevância. "Entre nós permanece, no entanto, a ideia de que os homens grandes são os mais machos. Se repararmos nas eleições americanas é comum ganhar o candidato mais alto", aponta o psicólogo social. "Tal como nos animais, nós favorecemos a beleza, a força, o vigor, o tamanho, quem parece dominar a situação." E há razões históricas e antropológicas para acreditar que os mais altos, como os mais belos, tenham sofrido uma seleção cultural. Isso é evidente na triste história da escravatura, mas remonta às primeiras comunidades humanas da agricultura e da pastorícia, onde "a escolha tinha de ser baseada na riqueza porque era preciso assegurar a permanência da propriedade e do gado". E prossegue: "A maior parte dos homens poderosos era geneticamente ligada. Se repararmos nos casamentos, o pai ainda leva a filha ao noivo. São reminiscências desses tempos definidores de estruturas de poder. E foram os ricos que começaram a fazer essa seleção pela beleza. Porque podiam."
Da mesma forma, tendemos a gostar dos mais próximos, dos afins, que têm as mesmas origens, que frequentam os mesmos círculos e apresentam os mesmos gostos. "Vejo mais aquelas pessoas, um efeito de exposição que aumenta o gostar. E há uma maior ideia de ligação, de presença e controlo, uma familiaridade. Primeiro passa-se pelo grupo e só depois se experimenta o contraste. Este medo da diferença, da preservação do grupo, da proteção do que é conhecido – já para não rebater o peso conservador e acusatório da moralidade judaico-cristã – sempre fustigou a individualidade. Mas a verdade é que encontramos exemplos no reino animal de todos os comportamentos ditos ‘esquisitos’ ou ‘perversos’", avisa-nos José Manuel Palma. "E a sua diversidade é muito extensa." A começar pela primeira das questões: a monogamia. A ideia de "para sempre juntos" é um projeto de vida e uma construção social. "Nos primatas há uma grande variação entre raças monogâmicas e raças ditas promíscuas. A maioria das aves é monogâmica, mas também existem poligâmicas e até poliândricas [as fêmeas têm vários parceiros e fecundam de vários machos]", diz-nos o professor. "Outras não têm critério de seletividade, escolhem um mês para ter sexo, depois de vários [meses] de abstinência. Alguns machos limpam o rasto de outros no ninho, tanto como cuidam de filhotes alheios, e certas fêmeas espalham os ovos por ninhos de outras fêmeas para assegurar a descendência." Ainda assim, existem muitas espécies monogâmicas no reino animal, sublinha Tânia Minhós Rodrigues, que esclarece: "Principalmente quando há grande competição entre fêmeas pela alimentação e pelo macho já que pretendem manter perto de si um parceiro mais pacífico e dedicado para procriar." Já ouviu isto em algum lado? Pois, alguns de nós somos assim, tal como como os mustelídeos, isto é, as lontras, as doninhas ou os texugos.
No caso humano, "vimos de uma herança poligâmica, pois vivemos sempre em grupos grandes", sublinha a bióloga. E chama-nos a atenção para certos detalhes: "Como a ovulação não é visível nos humanos e nos primatas, há uma tentativa de cópula repetida, o que favorece a reprodução, mas também a monogamia", sorri. Em qualquer dos casos, esta vem quase sempre "de um reforço cultural e social por questões económicas e de religião e não depende apenas de demandas biológicas". E prossegue: "Há uma organização da Biologia, por assim dizer. São as crias que pedem essa monogamia. Não estamos programados para sermos monogâmicos a longo termo. O nosso cérebro é estimulado pela incerteza e, por isso, a maior parte das relações monogâmicas estão desgastadas." Robert Sapolsky sublinha a existência de "monogamia social, mas não sexual" e declara: "Não são assim tantas as pessoas que acreditem no par: 10 a 40 por cento das crianças nascidas nos países ocidentais não são, necessariamente, filhas dos homens ‘da relação’. Enganar também é uma coisa muito humana e existe em todas as sociedades. Outra coisa descontroladamente humana é a noção de romance, uma invenção relativamente nova na maioria das culturas, pois tem apenas um par de séculos. O que é ainda mais novo é a ideia de que o romance deve durar toda a relação ou a duração de um casamento. É totalmente um conceito de novela." Por sermos tão condicionados socialmente, elegemos a monogamia, admite, e esclarece que "a monogamia é muito menos do que parecemos ver à nossa volta", brinca o cientista.
Se os veados são poligâmicos, um terço das girafas são pan-sexuais, isto é, têm atração sexual ou romântica independentemente da identidade de género. E a maioria dos pássaros é monogâmica, mas tem relações fora do casal. "Mais ou menos como nós, essas relações são fixas, mas com sexo diferenciado", diz-nos José Manuel Palma. "Os patos são muito engraçados: por vezes dois machos apaixonam-se e cooptam uma pata para ter os filhinhos. A monogamia só aconteceria se fosse uma vantagem, principalmente para o macho? Não é verdade. Existem macacos monogâmicos sem qualquer vantagem nisso." E pergunta-nos se conhecemos a estória do famoso casal gay de pinguins, o Roy e o Silo, do Central Zoo, de Nova Iorque, que adotaram um bebé até se separarem, em 2004. O que "abalou a gay scene", escreveu Andrew Sullivan, opinion-maker da The New Yorker. "Também as gaivotas fêmeas ensaiam uma espécie de sedução enquanto voam juntas e fazem de conta que estão a fazer sexo", exemplifica o professor. Também a homossexualidade é transversal, mas é vivida de forma mais descomplexada no reino animal, o que só nos pode deixar a pensar. Sapolsky já falara no romance. E o orgasmo e a fantasia existem nos animais? Os especialistas dizem ter sido observados preliminares e masturbação nos bonobos que se excitam mutuamente: "O que fazer quando estou sentado no zoo?", brinca o cientista. "Mas existe muito no mundo natural e alguns primatas ingerem mesmo o seu próprio sémen." Assim como são conhecidos os alegres orgasmos femininos dos macacos-rhesus. "O orgasmo aumenta a lubrificação que, por seu lado, aumenta as possibilidades do esperma fluir e do espermatozoide nadar até ao óvulo. Outra teoria diz que como o orgasmo cansa, a tendência é ficarmos deitados, o que facilita a chegada do esperma ao óvulo. E a rapidez final para o orgasmo é um investimento físico na continuação da espécie e na passagem de genes, mas o mecanismo que as motiva é o mesmo: prazer. Porque sabe bem. E isso não é um exclusivo humano." E acrescenta: "A capacidade de atingir o orgasmo numa mulher nada tem que ver com a fertilidade. É uma tendência, como ter outra particularidade, e é genético. Então para quê o orgasmo, ainda mais o clitoriano, se não facilita a conceção? Acredita-se ser uma bagagem evolutiva", afirma o cientista. Quanto à fantasia, comenta: "Não fazemos ideia. Mas ao observar babuínos, eu assisti a um adolescente ter uma ereção quando uma macaquita mais velha e influente passou junto dele. E masturbou-se a seguir. Leva a pensar que teve uma espécie de fantasia. Mas há quem diga que poderiam ser apenas as feromonas, caso ela estivesse a ovular." Os estudos são acumulações de dados e há muitas exceções. Hoje usam-se observações anedóticas para se perceberem certas coisas e se têm relevância biológica. Por isso há cada vez mais biólogos e primatólogos a trabalharem de perto com a Antropologia e as Ciências Sociais porque a Biologia é muito mais do que padrões fisiológicos e anatómicos, recorda-nos Tânia Minhós Rodrigues. "Temos tendência a não nos vermos sequer como animais, mas como um ser à parte. Nós somos animais e conduzidos por aquilo que é a nossa Biologia. Temos uma complexidade que nos diferencia, mas se te vires como animal, observas-te melhor. Muitas vezes usamos questões culturais para explicar coisas que já existem nos animais de forma muito clara. Todos temos traços comuns, mas o que é uma mulher portuguesa, em 2019, não é o mesmo que há 20 anos ou do que uma inglesa dos anos [19]30. Interpretamos o cultural como a verdade, mas é, no fundo, o mais mutável."
Por outro lado, a nossa própria Biologia está a mudar e estudos mostram, por exemplo, que os nossos cérebros estão a transformar a forma como conseguem armazenar a informação e a procura da mesma é muito mais rápida, resultado da dependência das máquinas e do scroll. "A sociedade é muito volátil e o que se mantém mais constante é a Biologia. A sua evolução é gradual e limita-nos e, de certa forma, baliza-nos. Culturalmente evoluímos muito mais, a cultura movimenta-se." Ainda assim, as mentalidades não têm a rapidez da tecnologia. Mais depressa mudamos de telemóvel do que de ideias e, muito menos, mudamos de hábitos. "O sexo começou por ser biológico, mas depois, com a cultura, passou a ser muito mais. A big picture é muito mais complexa e interessante", remata José Manuel Palma. Enquanto nos achamos únicos e importantes, o mundo continua indiferente e a girar ao seu ritmo. E a dar-nos lições de vida.
