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Como curar um coração partido

Na Alemanha, Liebeskummer – ter o coração partido – é considerado uma doença crónica. Descobrimos, em Berlim, as duas especialistas em desgostos amorosos.

O Despertar da Mente (2004)
O Despertar da Mente (2004) Foto: IMDB
27 de novembro de 2020 às 07:33 Stefanie Marsh

Se um dia lhe partirem o coração, o melhor sítio para isso acontecer é a Alemanha, onde o desgosto pode ser levado tão a sério que até dá direito a baixa médica. Os alemães chamam-lhe Liebeskummer. O dicionário traduz, erradamente, a palavra por "coração partido" ("heartbreak", em inglês). Liebe significa amor, isso é verdade. Mas Kummer? Kummer é um sentimento, não um acontecimento como "partir". Kummer é um estado duradouro que percorre todo um espetro de emoções horríveis: mágoa, dor, depressão, luto, sofrimento, angústia. Imagine dizer ao seu chefe: "Eu tenho o coração partido e não posso ir trabalhar."

Agora imagine viver num país onde pode consultar um especialista em Liebeskummer que, lá no fundo, sabe que o tempo mais depressa cura uma artéria rompida do que o seu coração partido. Você não consegue comer, não consegue concentrar-se e está prestes a perder o emprego, a cabeça e todos os seus amigos porque tudo o que faz é ficar ali parada, a sofrer.

Pior exemplo, no Reino Unido, na British Association for Counselling and Psychotherapy, encontrará milhares de especialistas em sofrimento humano, mas não encontrará um único em desgosto amoroso. Na Alemanha, porém, e em algumas zonas da Áustria e da Suíça de expressão alemã, há terapeutas que não só se especializam em Liebeskummer como alguns deles só trabalham nisso. Outra indicação de quão a sério a Alemanha leva as separações? Se começar a escrever Liebeskummer no Google alemão, o texto preditivo sugere a palavra "morte".

"Eu adoraria que o tema dos desgostos amorosos fosse levado mais a sério", escreve Ellen Heinemann, terapeuta de Liebeskummer, num e-mail. Foi o nosso primeiro contacto. Estamos a combinar um encontro em Berlim. Bianca Bontempo, outra especialista em Liebeskummer sediada em Berlim, irá juntar-se a nós e contaremos com o contributo de uma terceira, Elena-Katharina Sohn, uma autora famosa na Alemanha pelos seus guias de autoajuda, cuja equipa de terapeutas de Liebeskummer está disseminada por todo o país (chamou-se, a si própria, e ao seu website, Die Liebeskümmerer).

Eu estava cínica em relação a alguns aspetos da abordagem alemã, sobretudo por causa das sessões via Skype disponibilizadas por alguns terapeutas. O merchandise do website de Sohn também me causou algum desconforto, mas talvez uma pulseira com um pendente a dizer "Goodbye Herzschmerz" por €14,90 seja exatamente aquilo de que precisamos para repor o equilíbrio. Apesar de tudo, eu sempre me sentira intrigada pelo Liebeskummer e pelo facto de, aparentemente, permitir aos meus amigos alemães levarem o desgosto amoroso tão a sério. "Eu tenho Liebeskummer", murmuravam, zangados, como se tivessem uma crise de sinusite. Depois começaram a abrir vários consultórios de Liebeskummer.

No passado mês de julho, quando uma cardiologista da Universidade de Göttingen publicou um artigo que estabelecia uma ligação inequívoca entre Liebeskummer e a morte por aparente ataque cardíaco, a sua investigação tornou-se viral na Alemanha. A hipótese de trabalho de Katrin Streckfuß-Bömeke defende que as probabilidades de alguém morrer de Liebeskummer são genéticas. Também combinei um encontro com ela.

Heinemann trabalha em Prenzlauer Berg, o bairro mais "yuppificado" da antiga Berlim Oriental comunista. Há imensa gente na casa dos 30 e dos 40 anos. Imensos carrinhos de bebé e crianças pequenas. Ellen Heinemann tem um sinal à porta do consultório que diz qualquer coisa como "Espaço para Liebeskummer. Entre à vontade". O que significa Liebeskummer para ela? "É uma dor emocional que pode afetar o corpo", afirma. "Pode deitar-nos mesmo abaixo e transformar o nosso dia a dia num inferno. Perdemos o apetite, perdemos peso, adoecemos mais facilmente. Todo o corpo enfraquece."

Antes de se formar como terapeuta, Heinemann trabalhou como assistente de laboratório. Continua a fazê-lo, em paralelo, investigando a tuberculose, entre outras doenças. Talvez tenha sido o seu historial científico que a levou a querer saber mais sobre os sintomas físicos do Liebeskummer e as alterações que provoca na atividade cerebral. "Eu estava fascinada por aquilo que o cérebro pode ativar", esclarece, "pela forma como uma separação pode desencadear essa adição." Largar a frio, diz ela, é a única cura.

À semelhança da maioria das pessoas que trabalham nesta área emergente do corpo-mente, Ellen Heinemann não é psicoterapeuta. Não existe nenhum sofá neste consultório moderno e cheio de luz situado no último piso de um edifício com vista para Alexanderplatz e para Fernsehturm. Há estatuetas de Buda espalhadas pela sala. Talvez por não ser psicoterapeuta, Ellen não se importe de revelar um pouco sobre si própria aos seus clientes, com destaque para o facto de ter sofrido um desgosto amoroso enorme, em 2005. Foi um episódio traumático. Heinemann ainda é reservada em relação aos pormenores, mas diz que o seu companheiro foi infiel.

"Abalou-me muito", confessa. "Eu estava a fazer terapia para casal, na altura, e perguntei à terapeuta se haveria alguém especializado nesta área. Ela disse-me que achava que não e que poderia consultar a maioria dos terapeutas por causa do meu Liebeskummer porque qualquer um perceberia que é um acontecimento muito importante na vida de uma pessoa. E eu pensei que seria mesmo bom se as pessoas soubessem que existem terapeutas que lidam especificadamente com este assunto. Eu sabia que na terapia convencional nenhum terapeuta falaria sobre as suas experiências pessoais. Quando eu falo sobre isso com os meus clientes, porém, sei que é uma coisa positiva. Eles ficam aliviados porque percebem que eu sei mesmo aquilo que estão a sentir."

Os seus clientes querem um espaço seguro para poder falar sobre os seus sentimentos sem ter de revisitar a infância, como fariam em psicoterapia. Alguns dos seus clientes também fazem psicoterapia e consultam Heinemann como uma espécie de complemento numa altura difícil das suas relações. Os céticos não estão completamente errados quando dizem que os desgostos de amor são coisa de adolescentes. Recentemente – e não foi a primeira vez – um rapaz de 14 anos escreveu um e-mail a Heinemann. Uma paixão não correspondida por uma rapariga já não o deixava dormir, há cinco dias. Ela encaminhou-o para um terapeuta infantil.

Bianca Bontempo, terapeuta de Liebeskummer de ascendência alemã e italiana, fica espantada com o facto de os desgostos amorosos não serem mais falados no Reino Unido. "E achava eu que os alemães não eram pessoas abertas", comenta, acrescentando: "Até os alemães ficam, frequentemente, admiradíssimos por existir terapia para Liebeskummer. Acham que é normal sofrer. Os seus pais e avós dizem que não é nada de especial. Não sabem que pode ser um problema sério. O tempo cura todas as feridas. Também têm essa expressão na sua língua? Mas podemos usar esse tempo para aprender alguma coisa. E não tem de demorar tanto."

O consultório de Bontempo fica no animado bairro de Kreuzberg, onde se veem multidões de estudantes estrangeiros bêbados e despedidas de solteiros nas ruas todas as noites da semana. "Em Berlim, há tolerância para tudo e isso é bom", diz. "Mas isso parece fazer com que as pessoas não queiram assumir compromissos. Uma grande parte da população é temporária. Passam aqui um ou dois anos, ou talvez alguns meses, a divertir-se. É fácil arranjar alguém com quem passar a noite em Berlim, mas é mais difícil arranjar um companheiro. Quando se tem um encontro mau, volta-se ao Tinder e arranja-se outra pessoa."

Bianca tem clientes homens, mas crê que as possibilidades online "favorecem mais os homens do que as mulheres". E considera: "É um paraíso para os homens. Podem escolher de entre um catálogo. As mulheres e os homens gay que procuram relações sérias sofrem mais. Há a questão do ciúme. ‘Ele ainda está no Tinder? Com quantas mais andará a sair?’" Bianca Bontempo crê que o Liebeskummer é metafísico. "Amor insatisfeito", alerta. "E podemos ter essa sensação de amor insatisfeito não só em relação a uma pessoa, mas perante a vida em geral. Quando ficamos solteiros durante cinco ou seis anos. Ou quando sofremos ghosting [cortar a relação com alguém sem aviso] depois de termos estado três ou quatro semanas com alguém. Nem sequer terminamos a relação. As pessoas limitam-se a desaparecer."

Independentemente do seu género, os clientes chegam ao seu consultório com problemas semelhantes. Não conseguem fazer as pazes com a situação e dá-la por encerrada. "Estão num estado de suspensão emocional e à espera que alguém mude", explica. "Procuram o seu antigo companheiro no Facebook. Todas as fotografias remexem na ferida. Podemos considerá-lo masoquista. Muitas pessoas, depois do trauma, caem num buraco profundo."

Não consigo deixar de pensar nos alemães que metem baixa porque discutiram com os seus companheiros, mas é um direito legítimo que lhes é conferido pelos seus médicos de família. Quando mais falo com os alemães sobre Liebeskummer, mais frequentemente surge a palavra Anpassungsstörung. É um diagnóstico clínico feito pelo médico de família sobre a gravidade do Liebeskummer. Na verdade, Anpassungsstörung é uma reação psicológica a um acontecimento que resulta em sintomas como evitamento social, sentimentos e vazio, remoer, medo ou falta de ar. O tratamento recomendado é terapia e antidepressivos. Uma criança pode sofrer de Anpassungsstörung quando muda de escola e um adulto quando é despedido, tem um filho, perde um ente querido ou se divorcia.

O amor é dor – outra grande tradição literária alemã. Lembre-se do príncipe de Rapunzel, na versão dos Irmãos Grimm. A sua demanda por Rapunzel é recompensada com uma queda da torre onde está a donzela e com a cegueira. O romantismo alemão está cheio disto, com melodrama acrescido, com o amor não correspondido a conduzir a alguma espécie de doença nobre e fatal. Vejamos o clássico de Goethe, As Mágoas do Jovem Werther, no qual Werther tenta dar um tiro na cabeça por causa de uma mulher inatingível, mas falha e demora 12 horas a morrer.

O problema do Liebeskummer moderno, apercebi-me, é que pode significar quase tudo. A palavra surge, incessantemente, na imprensa alemã, em jornais como o Die Süddeutsche Zeitung, bem como em revistas femininas. E é sempre levado a sério. Mudar de casa pode causar Liebeskummer, diz-se. Uma publicação sobre veterinária faz a pergunta: poderão os animais sofrer de Liebeskummer? Se existe alguém que transformou os corações partidos num tema de conversa na Alemanha, nos últimos cinco anos, foi Elena-Katharina Sohn, que fundou um coletivo de terapeutas "contra o Liebeskummer". Publicou livros que entraram para a lista de best-sellers da revista Der Spiegel. Organiza programas de férias de bem-estar, com exames médicos, para pessoas que não conseguem ultrapassar os seus ex-companheiros.

Sohn é a prova de que alguns empregadores dão licenças sabáticas a colaboradores que foram abandonados porque o seu próprio chefe lhe concedeu uma quando ela tinha 20 e poucos anos. ("Ele passara pelo mesmo.") Ela trabalhava em publicidade. "Eu tirei duas semanas, mas quando voltei não conseguia concentrar-me", relembra. "Ficava sentada na secretária a pensar como recuperar o meu ex." Conseguiu uma licença sabática de três meses, durante a qual teve a ideia de reunir uma equipa de terapeutas especialmente formados para lidar com desgostos amorosos. Criou a sua própria (agora patenteada) formação para terapeutas que quisessem especializar-se em Liebeskummer.

O seu consultório situa-se num bairro tranquilo da zona antiga de Berlim, com vista para a Apple Store e para a [igreja] Gedächtniskirche com o seu pináculo danificado a recordar o bombardeamento de 1943. Uma consulta com Sohn custa €100. Os seus clientes adultos são, essencialmente, mulheres e homens com mais de 70 anos. "Muitas pessoas dessa geração foram casadas durante 30 anos, talvez por motivos práticos, sociais ou de educação. Estão unidos, mas talvez não por amor. Talvez a mulher morra. E quando o homem conhece alguém novo, descobre como é estar apaixonado pela primeira vez. E se a relação termina, não conseguem lidar com o sucedido. Há um certo desespero, uma sensação de quanto tempo me resta?" Sohn afirma que as pessoas precisam de ajuda profissional quando sofrem separações. "É como dizer que a depressão se vai curar sozinha", comenta. Elena-Katharina trabalha com os seus clientes de modo a reenquadrar o Liebeskummer como um processo catártico e positivo. "Há muitas pessoas que dizem que o Liebeskummer foi a melhor coisa que lhes aconteceu na vida."

"Conhece o termo síndrome do coração partido?", pergunta Bontempo. É uma pergunta retórica, mas não, não conheço. Se tivesse de adivinhar, eu diria que é um click bait elaborado pelo departamento de relações-públicas de uma agência de encontros online. Os terapeutas ficam surpreendidos com o facto de eu, uma pessoa de expressão inglesa, não ter noção de que está cientificamente provado que a síndrome do coração partido apresenta riscos para a vida. Por outras palavras, o amor mata. O maior especialista científico do mundo na síndrome do coração partido é, evidentemente, alemão.

Katrin Streckfuß-Bömeke lidera a equipa de Liebeskummer no departamento de cardiologia e pneumologia da Universidade de Göttingen, a 280 quilómetros a sudoeste de Berlim. Entrevista sobreviventes de ataques cardíacos que podem ter sido causados por Liebeskummer. Os registos mencionam centenas destes casos em Zurique. Comparada com a ideia sombria de alguém morrer subitamente por ter sido abandonado pelo seu companheiro, Streckfuß-Bömeke tem uma voz muito animada. A síndrome do coração partido, explica, também é conhecida como síndrome de Takotsubo e foi descoberta por cientistas japoneses, na década de 1990. Contudo, tem sido investigada de forma mais abrangente nos últimos cinco anos por Streckfuß-Bömeke, na Alemanha.

"Alguém chega ao hospital com todos os sinais de um ataque cardíaco: falta de ar e dor no peito", afirma. "Mas, ao contrário de um ataque cardíaco, uma pessoa que sofra e sobreviva àquilo que chamamos um episódio de Takotsubo terá uma recuperação a 100 por cento. Não há cicatrizes. Não é uma doença crónica."

A síndrome do coração partido, explica, "é uma condição que afeta o músculo cardíaco, desencadeada por stress emocional, como um divórcio ou a morte de um companheiro". E prossegue: "O cenário clássico é um casamento longo, no qual o marido morre subitamente e a mulher vai para o hospital com dores no coração, dois dias depois. No pior cenário, morre. Num ataque cardíaco, os vasos sanguíneos ficam bloqueados, mas na síndrome do coração partido, o sangue flui livremente pelo sistema vascular. Algumas zonas do ventrículo esquerdo param de bater, apesar de, ao contrário do que acontece num ataque cardíaco, nenhum dos vasos estar bloqueado." A fase aguda dura entre um e três dias. Estima-se que dois por cento de todos os pacientes diagnosticados com ataques cardíacos morram de síndrome do coração partido.

Streckfuß-Bömeke diz-me, entusiasticamente, que usou células estaminais de sobreviventes para identificar as causas da síndrome do coração partido. Descobriu uma ligação de estrogénio – a síndrome afeta sobretudo mulheres após a menopausa. Ela está bastante segura da existência de uma ligação genética. "É frequente duas irmãs terem um episódio desses", diz. "Ou uma mãe e, alguns anos mais tarde, a filha."

A maioria dos seus pacientes não sabe que a sua condição é desencadeada por um fator emocional. "É reconfortante para eles descobrirem-no", esclarece. Agora que já identificou algumas das causas, como poderemos evitar morrer com o coração partido? "Ainda estamos a trabalhar nisso", diz Streckfuß-Bömeke, soando, para uma especialista no poder sombrio e mortal de um coração partido, inquietantemente bem-disposta.

Exclusivo The Times Magazine/Atlântico Press

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