Viciadas em séries. Esta adição explicada por especialistas

As séries instalaram-se nas nossas vidas com tal glamour e astúcia que quase nem demos por isso. Não deixando de fora os perigos da adição comportamental, nem o facto de, também neste domínio, as mulheres continuarem a lutar por um lugar ao sol, vamos em busca de respostas: afinal, porque é que gostamos tanto de séries?

Foto: Pexels
29 de maio de 2020 às 07:00 Rita Silva Avelar

Confesse: quantos episódios e temporadas – enfim, quantas séries inteiras – "devorou" nas últimas semanas, independentemente de ter de estar apenas em casa devido ao atual estado de confinamento? Com quantas amigas já trocou opiniões, nesse particular, sobre que novidades têm nas watch-lists? E com quantas encontrou afinidades? Na verdade, as séries têm vindo a assumir um "peso" tal nas nossas vidas como telespectadoras que constituem um dos centros dos nossos interesses sociais e da cultura popular.

Estando todos nós permanentemente "conectados", as séries são um motivo de entretenimento cada vez mais popular e transversal a faixas etárias, sociais e culturais, independentemente dos países nos quais são produzidas ou transmitidas. Além de existirem em quantidade praticamente incontável e nem sempre compatível com a qualidade que delas se espera, mantêm-se uma companhia fiel e ubíqua. De tal modo o são que há quem as considere serem a "nova droga". A sua glamorização escalou devido à democratização e ao acesso fácil ao seu visionamento.

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Com a popularização do televisor no passado e, agora, mais do que nunca, com a proliferação das plataformas de streaming que, admita-se, oferecem vastos catálogos digitais a preços de subscrição acessíveis. E são tão inúmeras e a estrear de um modo tão avassalador que dificilmente encontraremos quem assista às mesmas que nós, ao contrário do que sucedia no passado e sobretudo em Portugal com a televisão pública e os seus únicos dois canais que toda a gente via.

Séries de que todos gostavam

Mas nem sempre foi assim. A "caixa que mudou o mundo" apenas chegou a Portugal a 7 de março de 1957 e as séries vieram muito depois. Na televisão (designação atribuída ao cientista russo Constantin Perskyi quando este participou no Primeiro Congresso da Eletricidade da Feira Mundial de Paris de 1900) portuguesa, a primeira série a estrear foi The Lucy Show, em 1964, com a divertida Lucille Ball, sendo a sitcom mais popular e premiada de então. Só em 1982 estreou a primeira telenovela portuguesa, Vila Faia, na RTP1. Foi um sucesso.

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Para trás ficava um passado em que a televisão era censurada e a preto e branco. Nos anos 60 portugueses não era comum ter-se televisão em casa e na denominada província, então, era invulgar encontrar a tal "caixa mágica" que embevecia qualquer um e tanto nas cidades como nas vilas e aldeias, as pessoas aglomeravam-se nas tabernas, nos cafés, nas pastelarias ou nas agremiações e os amigos ou os vizinhos juntavam-se nas casas de quem, mais afortunado, ostentava orgulhosamente um televisor, repetindo-se o que, muitas décadas antes, sucedera com a rádio.

Eu, que tenho 27 anos e pertenço a uma geração que não viveu em pleno esses tempos, recordo-me das primeiras séries que vi em televisão. Embora não fossem séries extraordinárias, mostravam "outros mundos". Entre outras, recordo a narrativa sobrenatural de Roswell (1999-2004), o misterioso enredo de Perdidos (2004-2010) e o imaginário teen de The O.C. – Na Terra dos Ricos (2003-2007). Outras pessoas mantêm as suas recordações. "Eu tive uma vizinha que ia, religiosamente, ver [a série dos anos 60 e 70] O Santo a uma taberna", conta-me Carolina, de 58 anos, uma amiga a quem ligo telefonicamente, devido ao confinamento, e que ri, de imediato, com as boas memórias desse tempo em que o convívio social se cultivava e se intensificava. Imagine-se o que foi deparar com uma mulher numa taberna, cheia de homens, a assistir a cada novo episódio das peripécias do (bonitão) Roger Moore. Que ousadia! Mas assim era, ainda que outras mulheres o fizessem, só que acompanhadas, regra geral, das suas famílias e de forma tímida.

"Durante muito tempo não tivemos televisão em casa – explica-me a minha mãe, Zulmira, de 54 anos –, mas a primeira série de que me recordo é Dallas [1978-1991]." E a estas somam-se outras de sucesso nessas décadas, como me explica Carolina, que se lembra de assistir às aventuras no campo do casal cosmopolita nova-iorquino Lisa e Oliver, em Viver no Campo (1965-1971), não esquecendo outra, de enorme sucesso, Bonanza (1959-1973). Quando, num outro dia, converso com Maria, de 59 anos, uma amiga e colega, esta evoca outras séries muito populares entre nós, como A Família Bellamy (1971-1975), Os Anjos de Charlie (1976-1981) e Norte e Sul (minissérie de 1985) e explica-me que toda a gente conversava sobre elas, precisamente porque todos viam as mesmas pelas razões citadas. Foram quase todas vistas a preto e branco, pois no nosso país a televisão a cores só surge a 7 de março de 1980.

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Curiosamente, seria a série A Família Forsyte, realizada em 1967, que mais galvanizou os portugueses, criando o hábito semanal de seguir uma série com paixão, gerando a quase idolatria pelas séries britânicas e pela sua quase inexcedível qualidade, fossem elas dramáticas ou de humor. De salientar que a minissérie Isabel I produzida pela BBC, em 1971, com a lenda viva que é Glenda Jackson no papel principal, foi de tal modo minuciosa que é considerada a melhor recolha histórica sobre a soberana, por exigência daquela atriz, sendo ainda objeto de estudo (é possível assistir aos seis episódios de Elizabeth R no YouTube).

Do cinema para a televisão

É verdade que a viagem comportamental e técnica da televisão é longa e evolutiva e as séries são um dos fenómenos que orbitou, durante muitos anos, em torno do pequeno ecrã. Até que saltou para fora dele quase exclusivamente (quem é que ainda espera com expectativa por um novo episódio em determinado dia da semana?) para se colar às plataformas de streaming.

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Um tema que, aliás, foi abordado num recente artigo da revista L’Express acerca da influência da Netflix e ao qual foi dado o título Netflix – La Nouvelle Drogue, e acerca do qual converso com Eduardo Cintra Torres, jornalista doutorado em Sociologia e crítico de televisão. "A visibilidade que a técnica deu para [ser possível] ver os episódios todos [de uma temporada] permite uma imersão no universo alternativo da ficção que é semelhante à da leitura de um romance", começa por enquadrar. "A experiência de ler um romance todo de seguida é compatível com esta experiência de consumo de muitos episódios e do binge-watching", um conceito que, embora não seja recente, se traduz em ver televisão durante um longo período de tempo (e sobretudo um só programa/série) e que pode ter os seus perigos. Mas lá iremos.

Em Portugal, operam as plataformas de streaming Netflix, HBO, Amazon Prime Video, NOS Play, Apple TV+ e em breve a Disney. Segundo dados divulgados no início de 2020, a Netflix (que é particularmente popular em Portugal) registou um crescimento no número de subscritores na ordem dos 8,76 milhões no último trimestre de 2019, contabilizando um número total de 167 milhões de clientes em todo o mundo. Só no ano passado, essa plataforma de streaming captou 27,8 milhões de novos subscritores.

O sucesso da Netflix é tal que ao longo da história dos prémios da Academia de Hollywood, os projetos com a assinatura da mesma receberam 75 nomeações e 12 Óscares. Por via disso, assistimos à transição (o que não é uma novidade) de atores consagrados ou muito populares do grande ecrã para o pequeno ecrã: vejam-se os recentes casos de Al Pacino, de Robert De Niro e de Joe Pesci em O Irlandês (2019), ou de Scarlett Johansson e de Adam Drive em Marriage Story (2019), bons exemplos de filmes para televisão que mereciam ser vistos no cinema (e o inverso também sucede devido, também, à menor qualidade atribuída, em grande parte, à "marvelização" da produção hollywoodesca com os seus blockbusters e afins).

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É tamanha a qualidade dos filmes realizados para aquela cadeia que a revista americana Esquire compilou uma lista no artigo The 30 Best Netflix Original Movies. "O cinema começou, digamos assim, a ser mais infantil, muito ‘Marvel’, e o dinheiro começou todo a ir para os blockbusters e isso coincidiu com a migração [para a televisão] de atores, de realizadores, de técnicos de produção, enfim, de todos", explica Eduardo Cintra Torres, acrescentando que é há uma década que esta movimentação acontece, tendo-se vindo a acentuar nos anos mais recentes.

O papel das mulheres

Tudo isto evoluiu, à exceção do protagonismo das mulheres neste mundo televisivo que ainda é praticamente nulo devido ao domínio masculino e musculado no mesmo. Onde é que estão as séries escritas por mulheres, protagonizadas por mulheres e destinadas a mulheres? A história diz-nos que começámos triunfantes, mas que a insistente e aborrecida (já dissemos que insuportável?) supremacia masculina, também nesta área, mostrou-nos que ainda há um longo caminho a percorrer. O pioneirismo na criação e na produção de séries para rádio e para televisão deve-se à norte-americana Irna Phillips (1901-1973), tendo sido quem escreveu a primeira novela radiofónica, as famosas soap operas (destinadas às mulheres, foram assim denominadas por serem patrocinadas por marcas de sabão e por conterem argumentos dramáticos que relembravam as óperas), em 1930, a qual apelidou de Painted Dreams.

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Mais tarde, foi a pioneira das séries, alicerçadas no registo das novelas da rádio, continuando a parceria com Agnes Nixon (1927-2016) que escreveu uma vida inteira apelando às mulheres, percurso que conta na autobiografia My Life to Live: How I Became the Queen of Soaps When Men Ruled the Airwaves. As séries com mulheres que se destacam no elenco são hoje em maior número. Por exemplo, Nicole Kidman, Reese Witherspoon, Laura Dern, Shailene Woodley, Zoe Kravitz e Meryl Streep brilham em Big Little Lies; Elisabeth Moss é estrondosa em The Handmaid’s Tale; Emma Stone surte um efeito magnetizante em Maniac; Olivia Colman e Helena Bonham Carter são poderosíssimas em The Crown; e Amy Adams e Patricia Clarkson são intocáveis em Sharp Objects, mas… E voltando aos argumentos?

Foram Irma Kalish (Oh Madeline ou Good Times) e Susan Harris (Tudo em Família ou Sarilhos com Elas) que abriram o caminho na América, enquanto Ana Bola o fez, em Portugal, com A Mulher do Senhor Ministro (1994-1997). É impossível não mencionar também os nomes de Jane Espenson (Buffy – A Caçadora de Vampiros), Julie Plec (Diários do Vampiro), Michelle Ashford (Masters of Sex), Liz Sarnoff (Perdidos), Mindy Kaling (The Office), Kay Cannon (Rockfeller 30), Jenji Kohan (Friends, Sexo e a Cidade ou Orange is The New Black) ou Tina Fey (Giras e Terríveis ou Uma Noite Fora de Série). E, claro, o fenómeno Shonda Rhimes (autora de séries como Anatomia de Grey, Scandal ou Como Defender um Assassino), que também abriu caminho para uma nova geração, onde se incluem as mais recentes Lena Dunham (Girls) e Phoebe Waller-Bridge (Fleabag).

Ainda assim, e à luz da realidade britânica, a associação Writers’ Guild of Great Britain revelou num estudo recente que as mulheres assinam apenas 28% dos episódios naquele país e que perfazem apenas 16% dos argumentistas de filmes no Reino Unido. Não estaremos longe das estatísticas em Portugal: provavelmente estaremos muito abaixo. A eleição do site IndieWire, no artigo 27 TV Shows Created by Women, Starring Women, That We Absolutely Love, serve como bom exemplo para contrariar essa realidade. É às disparidades gritantes de género associam-se as raciais devido à supremacia caucasiana.

Os riscos comportamentais

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Mas há outros perigos neste maravilhoso mundo das séries, além das disparidades de género, que se relacionam com a saúde mental. Ora vejamos: em média, e segundo dados de 2017, 61% dos usuários da Netflix assistem, regularmente, entre dois a seis episódios de seguida, o que se pode traduzir em mais de cinco horas passadas frente a um ecrã. "Tudo o que tem um excesso emocional cria uma prostração, como qualquer outra situação. Não é constitutivo do ser humano querer ter uma experiência emocional que dure seis horas, 10 horas ou um fim de semana", alerta Eduardo Cintra Torres.

Quando esta insaciabilidade se torna incontrolável passa a ter outro nome, explica o psicólogo Pedro Hubert, especialista em adição sem substância. E esse nome é adição comportamental. "Não há dúvidas que hoje existem adições comportamentais que provocam efeitos semelhantes no cérebro a outras adições: os níveis de dopamina ou os do sistema de recompensa cerebral são muito parecidos, para não dizer iguais, aos de consumidores de substâncias", começa por esclarecer, acrescentando que neste tipo de adição a pessoa não chega a ter surtos psicóticos, mas pode acusar um elevado grau de dissociação.

"Ou seja: o prazer, o envolvimento, a evasão, o adiamento, a rutura com a realidade e a distância que é criada pelo prazer que é estar imerso em determinada série são tão grandes que voltar à realidade torna-se, cada vez mais, desagradável e penoso. E nestes casos quanto mais se está alheado, mais custa regressar à realidade", esclarece, concluindo que "quem tem predisposição para problemas como a ansiedade, os ataques de pânico ou a depressão pode vê-los agravados face a uma dependência comportamental e vice-versa". Se é o seu caso, respire fundo.

Mesmo antes de chegar a um especialista, existem pequenas mudanças que poderá fazer por si. Na Internet, por exemplo, proliferam artigos que ensinam a não se ficar viciado em séries, que indicam estes e outros perigos da adição e que dão boas razões para optar por outras distrações. Se formos moderados, as séries podem surtir um efeito relaxante, como explica o artigo Comforting Streaming TV Shows for Stressful Times, publicado no The New York Times. A "caixinha mágica" – à qual o ator John Turturro se refere como sendo "a maior sala de aula do mundo" no filme Quiz Show – A Verdade dos Bastidores (1994) – perdeu para as plataformas de streaming. E nós, comuns mortais fora dos ecrãs, perderemos muitíssimas coisas caso não saibamos medir o prazer deste escape à realidade, sobretudo em tempos tão perplexos e imperscrutáveis que mais parecem assemelhar-se à ficção.

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