Terry Gilliam: “O politicamente correto está a limitar a forma como vemos o mundo.”

Numa conversa carregada de ironia e humor, Joana Ribeiro e Terry Gilliam juntam-se em Lisboa para falar sobre 'O Homem que Matou Dom Quixote', que estreia esta quinta, 10, nas salas de cinema nacionais.

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10 de fevereiro de 2022 às 07:00 Rita Silva Avelar

Tem 81 anos e a certo ponto da sua carreira renunciou à nacionalidade americana para se tornar britânico. Foi um dos elementos dos aclamados Monty Python, em meados da década de 70 e assinou filmes tão marcantes como Brazil, de 1985 (que lhe valeu uma nomeação para Óscar de Melhor Argumento), Doze Macacos, uma década depois (com Bruce Willis e Brad Pitt) ou o futurístico O Teorema Zero, de 2013 (com Christoph Waltz). Especialista em realidades paralelas e distópicas, Gilliam tem uma carreira marcada pela sua visão muito particular do mundo.

Foto: Diego Lopez Calvin
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Em O Homem que Matou Dom Quixote não é diferente, e nele reúne um elenco de luxo do qual fazem parte atores como Jonathan Pryce, Olga Kurylenko, Adam Driver, Jordi Mollà ou Stellan Skarsgård. Joana Ribeiro, atriz portuguesa, interpreta um papel decisivo no filme, como a bela Dulcineia. O argumento baseia-se no famoso livro de Miguel Cervantes, para erguer a história de Dom Quixote contada numa versão atual, com muitas nuances, humor e paralelismo com universos fantásticos, ao estilo de Gilliam. Nele, Adam Driver é Toby, um realizador que sem querer mudou as vidas dos habitantes de uma aldeia remota quando decidiu filmar ali o seu filme universitário (recrutando um sapateiro e um taberneiro, por exemplo). Dez anos depois, Toby colhe os frutos dessa "invasão", quando se encontra a rodar novo filme na mesma aldeia, provocando o caos. Parte filmado em Portugal, no Convento de Tomar, e em Espanha, o filme demorou mais de cinco anos a chegar às salas.

Foto: Diego Lopez Calvin

Joana Ribeiro surge numa versão alternativa de Dulcineia, a donzela de Dom Quixote, com Angelica, jovem atriz com sonhos na manga e um destino trágico, que Toby acaba, de certa forma, por contrariar. Conversámos com ela e com o realizador, de passagem por Lisboa para a estreia do filme. Disclaimer: esta entrevista está impregnada de humor, como não poderia deixar de ser.

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Há a sensação de dever cumprido agora que o filme está cá fora?

Terry: Estamos todos felizes que o filme esteja nos cinemas, de certa forma não precisamos de falar mais sobre isso. A jornada para o terminar não tem nada de interessante, é mais sobre não termos desistido. É como ser Dom Quixote. Sai-se "por aí", falha-se, cai-se e depois levantamo-nos outra vez. Graças à Joana fizemos o filme (risos). A sério: o que eu adoro no filme são as performances fantásticas.

Joana: Sim, tudo isto fui eu. Adam Driver quem? (Adam Driver who?). Risos.

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Terry: Eu adoro o facto de, após estes seis anos, eu não ter lixado isto tudo. Graças a eles! Foi um grupo muito feliz de pessoas a trabalhar juntas, todas elas muito talentosas. Eles confiaram em mim o suficiente para me dar performances brilhantes. Porque representar é algo muito perigoso, uma vez que os atores precisam de expor-se, sem saber se vão "sobreviver" ou não. Enfim, confiam em tontos como eu para cobrir os seus erros.

Foto: Diego Lopez Calvin

Joana, há uns meses falámos sobre como foi bom fazeres parte deste filme, sobretudo com este elenco. Terry, como foi trabalhar com a Joana?

Terry: Ela é uma mulher que gosta de ser levada aos extremos (vocês viram as marcas no corpo dela, no filme), nós tratámo-la mal, ela sobreviveu perfeitamente, não acredito que se a tivéssemos tratado bem ela tivesse feito a mesma performance (risos). Quando a conheci pela primeira vez bebemos um café e ao fim da segunda chávena ela estava contratada para o papel.

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Joana: Ele não me disse isso! Eu precisei de fazer a audição…

Terry: Claro, porque nós queríamos baixar "o preço dela"… Se a agente dela não soubesse, teria pedido o dobro do dinheiro (risos). A Joana é incrivelmente inteligente, tivemos uma conversa brilhante e ela queria ser arquiteta, falhou, por isso eu pensei: se eu lhe der uma chance de ser atriz será como se lhe desse uma chance na vida! (risos). Com a Joana, foi um daqueles momentos em que eu gostei genuinamente dela e segui o meu instinto. Ela tem a capacidade de surpreender a todo o momento.

Como fez para ligar os universos de Cervantes e Dom Quixote aos atores?

Terry: Tivemos que voltar a 1989. Como esta é uma história universal, crescemos a conhecer Dom Quixote, e vemo-lo como o cavaleiro que luta para salvar donzelas. Um dia acordei e soube que queria fazer um filme sobre ele. Sentei-me e comecei este enorme livro ("this huge fucking book"). Sim, Cervantes escreveu e escreveu… No fim estava apaixonado por Dom Quixote. Depois, parei para pensar como iria traduzir esta história para o mundo moderno. Acabou por ser um filme em constante mudança, com novas ideias sempre a surgir. Estou muito feliz com a história que recriei para Dom Quixote.

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O elenco estava familiarizado com o livro?

Joana: Falámos sobre isso, e o único que tinha lido o livro era o Adam (risos). E todos perguntámos uns aos outros se alguém tinha lido… eu li uma versão curta quando estava na escola, por exemplo. O Jonathan nunca o leu.

Terry: É um livro extraordinário. A minha teoria é que Cervantes o escreveu como Dickens escreveu os seus livros: em séries. Cada capítulo pode ser lido à fogueira, à noite, junto da família. Seria ideal para uma série de televisão. Tentei brincar também com isso. Com Dom Quixote, são os livros que o tornam doido, os livros de bravura, de nobreza e de cavaleiros. Os filmes (no geral) também são sobre isso.

Foto: Diego Lopez Calvin

E adaptou a personagem de Dulcineia à Angelica, interpretada pela Joana.

Terry: Nos livros, Dulcineia é uma prostituta autêntica, embora Dom Quixote a veja como um belo e maravilhoso sonho. Angelica, por sua vez, é uma mulher pragmática, é influenciada para se tornar uma estrela de cinema, vai até à grande cidade e a vida dela desmorona-se. Por fim, acaba com um homem rico e pode não ser a melhor das relações, mas não é uma relação sobre verdadeiro amor. É ai que Toby (Adam Driver) entra no mundo dela.

O que é que Dom Quixote lhe diz a si, particularmente?

Terry: Dom Quixote tem a ver com uma certa dose de loucura que nos permite ver o mundo de forma refrescante. Como uma criança. É sobre como o mundo nem sempre é como nos contam. A televisão e os media dizem-nos que é de uma maneira, e o mundo torna-se pequeno e pequeno. O politicamente correto está a limitar a forma como vemos o mundo. Esperançosamente, ainda podemos aprender com a visão pura das crianças. Cervantes descreveu de forma brilhante o louco, o sonhador e o prático num só homem. Todos temos um pouco dessas qualidades.

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Foto: Diego Lopez Calvin

Também explora a ideia de como um ator se torna na sua personagem, de forma extrema. É algo que vê acontecer nos seus filmes com frequência?

Eu estou constantemente a encorajar as pessoas a encontrar a sua própria versão de como é o mundo. Vê-lo com os próprios olhos. Não queremos limitar o mundo, com todas as suas possibilidades. Gostava que as pessoas pensassem por elas próprias, sem irem atrás dos dogmas. Eu acabei de inventar isto tudo (risos).

Joana, como entrou na personagem da Angelica, sendo também ela uma atriz?

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Joana: Eu sabia que o Terry estava à procura de uma versão nova da Penélope Cruz (risos). Por isso vi imensos filmes dela, como Jamon Jamon!

Foto: DR

O que torna este filme especial aos vossos olhos?

Terry: Nós reunimos um elenco fantástico. É esse o grande entusiasmo de ter feito este filme. Eu na verdade não dirijo nada, ou dirijo Joana?

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Joana: Claro que sim! O Terry é muito claro acerca daquilo que quer. Aliás, do que não quer.

Terry: A maior parte das vezes não faço ideia daquilo que quero, mas sei aquilo de que não gosto!

Joana: Quando fazemos algo mal, sentimos a energia no set. Pensamos: merda! (risos).

Terry: Na cena em que ela lambe uma bota, quem me dera terem visto os outros takes!

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Joana: Então porque ficou este?

Terry: Aquele que ficou foi o melhor para a história que eu estava a contar. É isso que um realizador faz.

Foto: Diego Lopez Calvin

Essa foi a cena mais difícil? Ou houve outras?

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Joana: A mais difícil foi a cena da dança. Foi exigente. Angelica é uma dançarina de flamenco nata (eu saio à noite, mas não danço assim).

Terry: Eu adoro esse momento. É o grande momento romântico do filme, sobretudo quando vemos o beijo. Tu e o Adam fizeram isso.

Joana: Nós trabalhámos muito essa cena. Essa foi difícil, mas a da cascata também, porque estava imenso frio.

Terry: Era no Monasterio de la Piedra, um sítio lindo mas perigoso, com pedras escorregadiças. A certo ponto tínhamos uma banheira com água quente, e uma tenda com aquecedores. Foi uma das primeiras cenas que filmámos com a Joana! Era o seu momento da verdade, e ela foi fantástica. Eu adoro a personagem da Joana porque é pragmática, não é lamuriosa, não é uma vítima.

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Qual foi a coisa mais importante que aprendeste com o Terry?

Joana: Eu acho que aprendi a rir de mim própria. A estar aberta a fazer coisas diferentes. Eu consigo ser muito perfecionista, e trabalhar com o Terry deu-me capacidade de improviso. Como na vida, não sabemos o que vai acontecer a seguir. Espero poder levar isso comigo, para a vida.

Terry: O truque foi eu ter acreditado que ela era melhor do que ela pensava ser. É tão simples como isso. Ela é muito dura, e não é assustadiça. É ardente, estonteante e perigosa! (risos).

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