Ser mínima para ser máxima

"Há meses que (re)visitamos recantos emocionais, cada um à sua velocidade e, sem dar por ela, confinados à nossa própria existência, fomos obrigados a parar. O que é uma grande chatice ou pode ser uma grande ideia."

Realização: Susana Marques Pinto. Maquilhagem: Tom Perdigão. Cabelos: Eric Ribeiro para a Griffe Hairstyle Foto: Pedro Ferreira
23 de julho de 2020 às 14:24 Patrícia Barnabé

Para quem sabe aproveitar, e para quem não faz a mínima ideia, a pandemia tem sido uma viagem, subtil mas extrema, a opostos da existência. Tipo filme série B sobre o Apocalipse, mas sem casting, porque leva todos à frente. É coisa que só acontece a algumas vidas, mas atira todas para um recolhimento involuntário. E até soube bem viver no sofá e nos livros que não lemos, aninharmo-nos em dias iguais e sem pressa, protegidos na nossa casca de singelas e quotidianas alegrias. Redescobrimos hábitos que desmazelámos por falta de tempo ou talento, e lançámo-nos epicamente em limpezas de fundo e bricolage, experiências culinárias e desporto diário (!), meticulosa arrumação de gavetas e estantes, foi bom encontrar objetos perdidos e frases soltas que nos ajudam a arrumar a cabeça também. Tratado Geral da Grandeza do Ínfimo chamou a um livro seu Manoel de Barros. Há meses que (re)visitamos recantos emocionais, cada um à sua velocidade e, sem dar por ela, confinados à nossa própria existência, fomos obrigados a parar. O que é uma grande chatice ou pode ser uma grande ideia. Parar com tempo para reparar, auscultar e ganhar uma perspetiva importante porque vinda de dentro, ir à fragilidade e força do nosso osso. Confrontámo-nos com a verdade, o que somos e o que temos, tudo a sacudir cá dentro, saúde, trabalho, amor, família, finanças, pilares estruturadores de uma ideia de felicidade, que tantas vezes esconde grandes medos; o medo do que ainda não foi e talvez nunca venha a ser. Nunca nos escapamos de nós próprios, é certo, mas vivemos tão depressa e à superfície que agora descobrimos um certo existencialismo enquanto aguardamos o futuro. Mas é no silêncio que melhor se escuta o batimento cardíaco. 

 

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Afastados de todos, mas ligados pelas redes sociais; a adorar o sossego da cidade, mas a lamentar o seu abandono, os turistas que eram demais e agora são de menos; conhecemos melhor os vizinhos, mas temos de ouvir a sua música e todos os seus passos; é tão bom andar de roupa confortável por casa, mas é uma seca estar sempre de roupa confortável e sempre em casa, saudades da maquilhagem (o que é feito do batom vermelho?) e duns saltos num vestido bonito. Ora agradecemos a pausa, ora nos zangamos com as suas limitações. Mas esta época de extremos e humores instáveis também trouxe à tona alguns debates sociais encalhados, tão caros à Máxima ao longo dos anos – o género, a raça ou a ecologia - tornando-se demasiado evidente que é preciso sacudir ideias feitas e não temos outro remédio senão viver em comunidade. A pandemia não é uma vingança da Natureza, até porque esta tem mais o que fazer, mas acredito na hipótese que esta nova consciência nos dá. Temos cada vez menos desculpas para encalhar em vidas que não nos chegam. A fragilidade pode ser boa, até bonita, e é um poderoso motor de mudança. Se calhar não ficaremos com a mesma pessoa – agora que percebemos quem temos realmente em casa - no mesmo trabalho que reinventaremos, ou até no mesmo bairro, e a rede de amigos pode reconfigurar, mas a maior parte das vezes, percebemos depois, é bom mudar.

 

Pelo menos aprendemos uma certa humildade pelo caminho. Tão mais valiosa nesta era auto-centrada das redes socias. Muito mal comparado, lembra-me o equilíbrio exigente quando descemos a calçada portuguesa de saltos altos: somos obrigadas a desacelerar, a observar os recantos menos polidos e a planear um caminho seguro, abandonando a altivez. A calçada pode ser uma metáfora de vida e um desporto radical, sem ela haveria mais hipóteses de glamour, o que quer que isso queira dizer, mas Lisboa não seria Lisboa. Aprendemos a viver com o que somos e o com que temos. Na correria, podemos sempre calçar os saltos na curva, à chegada, como as parisienses, ou levá-los na mochila como as nova-iorquinas – e palmilhar a cidade toda de ténis ou sabrinas. Bom, das poucas vezes que me estatelei estava com sabrinas e excesso de confiança, por isso muitas vezes escolho caminhar calmamente pela estrada no sentido contrário aos carros, e já voltei para casa descalça depois de uma noite de dança. O que quero dizer é que às vezes parece que o caminho das nossas vidas se faz para chegar a essa humildade, base de todas as virtudes. T.S.Eliot escreveu que "a humildade é a única sabedoria que uma pessoa pode esperar adquirir". E não interessa como contornamos os obstáculos, desde que o façamos em estilo, isso sempre – a pandemia só parece estar a acelerar processos. Faz-nos mínimos para depois sermos máximos. (Sim, costumo ser chamada de ingénua-optimista, mas tem corrido bem). Ou, como dizia há dias a minha amiga Mónica apelando à minha tranquilidade perante a incerteza, e citando Cristiano Ronaldo: "Os golos são como o ketchup, quando aparecem, é tudo de uma vez". Agora é escolher calmamente, e muito bem, a melhor sanduíche.

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