Dez mulheres da Música portuguesa
Está inaugurada a época dos festivais de verão e a Máxima foi conhecer quem canta no tom nacional.
Os fins de tarde de verão nos jardins de Lisboa são uma espécie de suspensão no tempo, a hora do milagre, da aragem e da conversa boa. Sentamo-nos com Sara Serpa num quiosque, uma voz de algodão, inteligente, gentil e de riso fácil. O seu ativismo faz-se de sutileza e de liberdade, em frente ao microfone ela exercita matizes sonoros, faz as notas ganharem asas. E diz o que é preciso ser dito. Nunca foi tão pacífico falar sobre temas urgentes. Sara lembra-se de ser levada em pequena a concertos na Gulbenkian, "mesmo quando não percebia, o gosto pela música era estimulado". Nasceu em Lisboa e começou a estudar piano aos 7 anos, na Academia de Amadores de Música e, depois, no Conservatório. Escolheu o piano e a irmã o violoncelo. Um dia, a mãe reparou que ela cantava muito quando tocava piano e perguntou à professora se havia algum coro e lá foi ela todos os sábados. Ainda chegou a fazer digressões em França, por exemplo, para participar em festivais, tinha 10 anos. Depois, o piano foi ficando para trás, "o ensino era bastante rígido e sem a noção de que se é uma miúda de 11 anos a tocar um reportório que mais ninguém da tua turma tocava… Toda a gente olhava para mim como se eu fosse uma ‘ave rara’, por isso era um lado que mantinha na obscuridade", diz, soltando uma gargalhada.
Quando chegou a altura de escolher um curso foi para Pintura "porque estava ligada à cena artística, mas rapidamente percebi que não era para mim". Esteve dois anos nas Belas-Artes e depois inscreveu-se em Inserção e Reabilitação Social no Instituto Superior de Psicologia Aplicada. Interessavam-lhe as questões sociais, "foi superinteressante, trabalhei com imensas populações diferentes", recorda. Um dia conhece Paula Sousa, professora e pianista que tinha estudado jazz em Boston e lhe sugere a escola do Hot Clube. "Andava já desencorajada da música clássica e, na altura, não havia escolas de música contemporânea mais de acordo com a realidade e inscrevi-me, como último recurso." Quando começou a ir às aulas, como já tinha bagagem musical, começou a traçar novos objetivos, "foi uma transformação radical na minha vida: marcar ensaios e sessões, ir para cursos de verão". Uma revolução. "A cena do jazz e da improvisação e a forma como é feita era toda uma linguagem que não conhecia e pensei: ‘Eu posso fazer mais.’ É claro que cheguei lá e disseram-me: ‘És cantora, cantas as letras e não fazes mais nada.’ E eu, que desde cedo quis fazer coisas, que quero fazer parte do grupo e ir para além do jazz tradicional e do seu reportório, havia coisas que queria cantar, mais contemporâneas, e pensei que se não as fizer, ninguém as vai fazer por mim". Assim começou a usar a voz como instrumento e a fazer a sua própria música. É pela música que começa a indisciplina, escreveu Platão. Mas no meio dessa indisciplina que faz as grandes obras, tem de haver muita disciplina técnica. Naquele momento, no princípio, o jazz para Sara foi tentar perceber a partir de uma partitura, que é um ponto de partida, o que os músicos fazem a seguir, "como é que eles são capazes de improvisar com este material? Foi um desafio intelectual e como o meu instrumento é o meu corpo, tive de ultrapassar obstáculos físicos para cantar".
Acabou o curso no ISPA, mas percebeu que não era por ali. "Não quero fazer isto", ri-se. "E convenci os meus pais de que era a música." Primeiro foi fazer um curso de verão a Boston, à Berklee College of Music. "É claro que se chega aos Estados Unidos e é um mundo inteiro que se abre. Fica-se facilmente deslumbrado." Depois descobriu os mestrados no New England Conservatory of Music e foi. "E aconteceu o que acontece a quem acaba estes cursos: fui para Nova Iorque", onde está há dez anos. "Toda a gente que mora lá tem uma relação de amor-ódio com a cidade. É uma cidade difícil. Tens o anonimato de se poder andar na rua e seres quem és. As pessoas têm origens diferentes e fazem música diferente… Eu não faço só jazz. Faço música contemporânea e tenho colaborações e isso só seria possível lá porque as pessoas têm cabeças abertas, são livres. Mas nada é garantido, tens de estar sempre a trabalhar." Sara Serpa já editou oito discos. O primeiro intitulava-se Praia(Inner Circle Music), resultado dos três anos que viveu em Boston, onde "o choque maior foi um inverno rigoroso [como] nunca tinha experimentado e depois vim a Portugal e à praia no inverno e… hummm, foi espetacular. Foi das coisas de que eu tive mais saudades, dessa ligação que aqui é tão corriqueira: ‘Ah, vou só ali, à praia… [Em] meia hora já estás numa praia selvagem [risos]. Eu tive saudades de sentir o ar do mar, de poder dar um passeio na areia". O seu mais recente álbum é deste ano e chama-se Close-up (Clean Feed), com Ingrid Laubrock no saxofone e o violoncelista Erik Friedlander, ilustrado pelo português Travassos (que também ilustrou All the Dreams, de 2016): "É o encontro destes dois e cada canção lembrava-me de um close-up na minha vida. E depois houve muito a ideia de mudar os papéis… A voz fazer acompanhamento em vez de dar a melodia e até o ouvinte faz parte do disco. E, na altura, vi um filme do Abbas Kiarostami, o Close-Up, que adorei, e por isso há toda esta ideia de permuta de identidade. Foi um desafio a todos os níveis em termos de composição, de instrumento. É assumir: ‘Pronto, é isto que eu faço e não é música fácil ou comercial. Mas não há nada a fazer.’" E solta uma gargalhada.
"Literalmente, ela soa como se cantasse sempre que fala", escreveu a All About Jazz. "Serpa possui um preternatural cool, injetando uma leve sofisticação e graça melódica em tudo o que toca", escreveu Peter Margasak, do Chicago Reader. "Ms. Serpa é cool all over, do conceito à execução", escreveu Ben Ratliff, do The New York Times. "Não sou sempre calma", avisa Sara, a rir-se. "Talvez não ser estridente e pensar no meio do ruído o que é realmente importante… Mas tenho as minhas tempestades", diz. Mas a palavra cool, que hoje é usada para tudo e que as novas gerações tanto perseguem, acaba por ser uma definição do próprio jazz. "O que quer dizer exatamente cool, não é?" Mas há uma ideia de comunhão no jazz herdada dos bas-fonds cheios de fumo e de sonhos, onde os músicos se reuniam nos primórdios. "Havia muita irreverência e é importante perceber que esse era o único lugar de expressão. Eu tenho pensado muito nisso, recentemente. É claro que depois tens os génios todos, mas perceberes que a sua música era resultado de uma situação mesmo opressiva e que só nesse lugar é que havia liberdade. Na Europa, o jazz e o seu ensino estão desligados dos movimentos sociais que fizeram parte do seu nascimento, nos Estados Unidos. E essa questão é muito importante. Se não se souber a História, a segregação racial, a escravatura e os obstáculos dos músicos é impossível compreender o jazz. É uma coisa musical, mas de expressão social, histórica e pessoal."
Como a maior parte dos artistas da sua área, Sara Serpa está em vários projetos. Pertence a dois duos, um com Ran Blake, seu professor, mentor e amigo, "que tem 83 anos e são cada vez mais raras as performances, mas tocamos standards e versões" (lançaram Kitano Noir, em 2015). Toca muito com o marido, André Matos: "Criámos um reportório para nós, há o formato canção e há improvisação, alguns efeitos da eletrónica e podia ser mais comercial", sorri. O ano passado iniciou Recognition, uma performance interdisciplinar com Mark Turner e Zeena Parkins que aborda o colonialismo: "Os meus pais nasceram em Angola e o meu avô também e eu queria abordar este assunto. Chegas aos Estados Unidos e toda a gente fala sobre raça de uma forma que nunca ouvi aqui e começas a questionar-te: onde estão os afro-descendentes, em Lisboa? Porque é que eu não cresci a ver mais africanos? Porque não são políticos, escritores ou fazem parte da opinião pública, na televisão, nas revistas? E toda esta procura fez-me olhar para a microestrutura que é a minha própria família e observar a História." Descobriu os filmes de super 8 que o avô fez em África e criou uma narrativa, um filme mudo com o qual tocam música ao vivo sobre textos de Amílcar Cabral ou de José Luandino Vieira. "E tem vindo a crescer."
Também pertence a um quarteto vocal onde canta Bela Bartók e Monteverdi, "que é completamente diferente", ou ao Mycale Vocal 4tet, ao lado deuma marroquina, de uma argentina e de uma israelita, um projeto de John Zorn, ao qual se juntou em 2013. Zorn escreveu o disco Book of Angels, onde deu várias melodias a músicos diferentes para fazerem arranjos e pegou nalgumas delas e passou-as a cada uma das cantoras. Há ainda o coletivo We Have Voice, onde se evidencia a sua veia feminista: "O ano passado começaram a aparecer muitas histórias de assédio sexual no mundo do jazz que foram um pouco reprimidas e com o movimento #MeToo começaram a vir à superfície. Então juntei-me com outras músicas, algumas de identificação binária, outras não, e fizemos uma carta aberta a mostrar a nossa solidariedade para com as pessoas que contaram as suas histórias e com os nossos compromissos para com a nossa comunidade. Para as pessoas que têm poder e para as instituições estarem atentas a isto. Para os programadores, os jornalistas, toda a comunidade onde trabalhamos que é essencialmente masculina… Por isso, foi um ‘Já chega!’. Está na altura de não fingir que estas coisas não acontecem." O segundo passo foi criar um código de conduta em relação ao assédio "que dá nomes a situações que muitas vezes são ambíguas, que define, por exemplo, o que é o local de trabalho que no mundo das áreas performativas é muito amplo. Há muitas situações para as quais não temos resposta e o código fornece essa informação e dá poder às pessoas para melhorarem as suas condições de trabalho". Conseguiram assinaturas proeminentes, principalmente nos Estados Unidos. "Já temos 42 instituições a assinar", diz, "e em Portugal, até agora, nenhuma se chegou à frente… Acham que cá não existe esse problema", sorri.
Gosta de trabalhar entre mulheres? "Passei a minha formação toda sendo sempre a única mulher do grupo e tem de se estar sempre a criar estratagemas, coisas tão inconscientes que nem se pensa nisso. Por isso, quando te vês num grupo de mulheres, não tens de te preocupar com a forma como estás vestida, ninguém te vai mandar uma ‘boca’ ou fazer comentários sexistas à tua frente e achar que ‘é na boa’, percebes? E é superinspirador trabalhar com mulheres que são líderes dos seus próprios grupos. Por exemplo, para o [projeto] Recognition convidei a Cinthia Parks para a harpa, que é [uma mulher] espetacular, mais velha do que eu e me disse: ‘Passei a minha vida a vestir-me à homem porque queria ser um deles. É tão fora quereres passar despercebida e que te tratem e falem contigo de igual para igual. Mas vais aprendendo a escolher os colaboradores porque há mulheres que também têm essa atitude sexista.’" É sabido, por exemplo, que no jazz existem mais cantoras que instrumentistas. "É uma questão cultural, não há mulheres a dar aulas, não há representação e depois tem a ver com aquela coisa fácil da princesa, a estrela, está muito nos media... Se eu não tivesse a Maria João, uma pioneira, e sobretudo por ter feito tudo o que fez num meio supermasculino, numa época muito mais conservadora... É difícil ser a pioneira, ser a única, por isso, nesse sentido, mesmo que as pessoas discutam a qualidade, que é sempre discutível, é importante que digam: ‘Está ali uma mulher a fazer aquilo e eu também posso fazer.’"
A sua inspiração vem da literatura, do cinema, das artes visuais, que lhe "alimentam a alma". "Há sempre uma tentativa de perceber escritores que não fazem parte da realidade em que cresci, a curiosidade de ver como é o mundo de outro lado", explica. Há mais de um ano que as suas leituras são de autores afro-americanos e africanos, "aquela perceção do que é invisível para nós e se torna visível através da literatura, vês como é que os outros se apercebem de certas situações", e refere Belle Brooks, Toni Morrison, Maia Angelu ou Angela Davis. "Também passa muito por aquilo que as mulheres passam e os homens não conseguem perceber ou não tentam perceber quando te dizem: ‘Aaah, estás a exagerar, isso não foi assim tão mau.’ E ficas a pensar: ‘Não percebes o que é crescer e ser assediada constantemente na rua, só uma pessoa que tenha passado por isso.’ E nisso, as mulheres entendem-se todas, muito. É entender os meus privilégios e de que forma é que são vistos como privilégios. E ver o mundo de outra forma. Basicamente, a minha formação foi com escritores homens, compositores homens, sei lá, é todo um cânone, são muitos séculos, são bons, mas há outras perspetivas e são importantes." No cinema, revisita muito o film noir, estética que herdou de Ran Blake. Depois, cresceu ao lado do extinto Cinema King, "desde os 12 anos não percebia porque os meus colegas só viam outros filmes e não conheciam os filmes que eu via [risos]. Mas fui exposta a todos estes filmes mais independentes, europeus e não mainstream".
O seu amor pelas palavras está também num projeto em que colabora há alguns anos e que se chama City Fragments, baseado em textos da filósofa Luce Irigaray: "O trabalho dela é muito interessante e ainda é mais para mim porque fala na respiração como conexão com a Natureza. E isso é básico para a nossa sobrevivência. Também fala do papel da mãe e da invisibilidade da maternidade e de como a mãe dá tudo. E todo esse processo é feito de forma quase invisível. Eu senti muito isso nos Estados Unidos e percebi que não podia mostrar a muitas pessoas que ia ser mãe para não deixar de ter trabalho. E quão solitário pode ser ser-se mãe..." No seu disco novo há um tema que se chama Woman precisamente com textos sobre a maternidade. Sara tem um filho de 4 anos, o qual mudou, naturalmente, a sua vida. "Muda tudo, primeiro pelas prioridades, já não podes fazer tudo e tens menos tempo para frivolidades. De repente, não pensas só em ti. Vejo imensos artistas que são autocentrados, superegoístas e há uma certa generosidade quando estás a educar uma criança porque dás muito de ti e há uma certa compaixão e solidariedade para com os outros." Sara é, como já se percebeu, uma profunda humanista. E ter filhos parece amplificar as causas porque se quer que a mensagem seja maior e permaneça no tempo. "Sim, é a responsabilidade: quem é este serzinho que estou a educar? E tanto eu como o meu marido somos músicos e não temos ajudas, nem pais, nem nannies, em Nova Iorque. E educar uma criança é superdifícil, é imenso trabalho, então em relação às mulheres... Tu és mãe e tens de continuar a dar cartas. E quando falhas alguma coisa, ouves logo: ‘Vá lá, ela é mãe.’ É uma pressão invisível. E depois não há apoios a mães artistas, as residências artísticas não aceitam mães com filhos… Sei lá, há toda uma ‘cena’ em que vais sendo posta de parte e não queres continuar a trabalhar." A coolness é o balanço certo entre a atitude e o silêncio, um jogo de subtileza. Para quem canta, o silêncio é tão importante como o som. "Agora, eu tive uma semana de concertos e depois fui para Sintra e chegar lá ao silêncio é superimportante. Acalma a mente, é mesmo uma necessidade física. Lisboa não é uma cidade turbulenta, mas em Nova Iorque há dias em que tu já não queres mesmo saber da cidade se tiveres de passar o dia inteiro no metro ou a lidar com pessoas meio malucas ou bastante agressivas. É também através do silêncio que consegues perceber as pessoas com quem falas e as coisas que estão à tua volta."
Styling: Xana Guerra. Maquilhagem: Letícia Raquel. Cabelos: Eric para Griffe Hairstyle. Agradecimentos à Loja das Meias e Pepe Jeans pelas facilidades concedidas.