Pobres Criaturas, as gafes sobre Lisboa e um filme memorável

De uma Emma Stone ávida de pastéis de nata a cenários deslumbrantes, sem esquecer Carminho à janela, o novo filme de Yorgos Lanthimos vale a pena ida aos cinemas. Esta review contém spoilers.

Pobres Criaturas, as gafes sobre Lisboa e um filme memorável
01 de fevereiro de 2024 às 15:53 Rita Silva Avelar

O mais recente filme de Yorgos Lanthimos, Poor Things no original, pôs Lisboa nas bocas do mundo, entre muitas outras coisas maravilhosas. Bem conhecido dos circuitos tradicionais, autor de filmes como A Lagosta (2015) ou O Sacrifício de um Cervo Sagrado (2017) ou A Favorita (2018), o grego tem uma visão estética e uma abordagem cinematográfica muito próprias, embora todos os seus filmes tenham argumentos completamente distintos. É um daqueles casos: ou se estranha, se torce o nariz e se embirra, ou se adora e vicia. Quase sempre Lanthimos consegue alcançar o carimbo de icónico, com obras de arte que perduram no tempo, e elencos de cair para o lado. Assim é com Emma Stone, Willem Dafoe, Mark Ruffalo, Margaret Qualley e Ramy Youssef, que fazem de Pobres Criaturas aquilo que ele é.

Foto: Atsushi Nishijima
PUB

Num primeiro trecho, Lanthimos opta por abrir o jogo a preto e branco, o que confere uma beleza austera a todas as personagens de imediato. Cedo percebemos que tudo gira em torno da bizarra jovem Bella Baxter, criação de um médico e professor visionário, God, ele próprio fruto das experiências mirabolantes do pai. Bella é o resultado de um ensaio de transplantação cerebral. Anda de forma estranha, fala apenas com monossílabos, tem comportamentos errantes e incómodos. Ao longo do filme, Bella vai evoluindo para se tornar "uma mulher normal" e percebendo que a sociedade tem normas de ser e de estar muito próprias, mas opta por ignorá-las quase por completo. Entretanto, feita noiva de um aprendiz do médico que se ocupa de a estudar, Bella parte, ainda assim, à descoberta do mundo com um advogado boémio, Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) que lhe mostra as maravilhas do prazer sexual (já agora, Emma Stone aparece dezenas de vezes nua, de múltiplas perspectivas e em vários contextos, uma outra afirmação, parece-nos, do realizador, que quer afastar a perspectiva púdica).

Foto: Atsushi Nishijima

O primeiro destino deste improvável e inesperado casal é Lisboa. É neste capítulo que a nossa atenção se foca nos detalhes. Vemos uma Lisboa antiga embora Lanthimos brinque com futurismo, surrealismo e elementos clássicos em todos os destinos. Os cenários são idílicos e majestosos em todos os aspetos, desde a sala de operações de God aos quartos de hotel de Paris - mas não podemos deixar de notar algumas incoerências visuais, como o de Lisboa parecer mais o Porto, ou quando é referida a palavra "siesta" para denominar a folga depois do almoço. Quando Bella passeia sozinha pela cidade e se depara com um casal a discutir, percebemos que a mulher na disputa tem um sotaque estrangeiro em português (vamos aceitar a coerência com a realidade atual) e ele parece ter sotaque do Norte. No filme, Emma Stone come sofregamente vários pastéis de nata, e Carminho canta e toca para ela de uma varanda. Embora a tradução eleita seja "tart", aceitamos, com ligeiras dúvidas. A atriz, em variadas entrevistas, admitiu mesmo que ficou tão encantada com Carminho como com os pastéis, que comeu de facto até enjoar.

PUB
Foto: DR
Foto: Atsushi Nishijima

O percurso segue de barco até Alexandria e, como referi acima, Paris, cidade onde a protagonista se torna prostituta. O filme levanta aqui uma questão interessante, de uma perspetiva feminista e empoderadora, com Bella a assumir que quer, sim, ganhar dinheiro e ter prazer com vários homens. Isso parece-lhe, aliás, "um match perfeito" para o que procura naquele momento da sua vida. Uma das ideias principais que sobressai nesses momentos acaba por ser precisamente essa: as questões ligadas à liberdade individual, ou o papel das mulheres na sociedade, com algumas alusões niilistas – e podemos assumir filosóficas, de uma maneira geral. A escolha da mulher, neste caso de Bella, está sempre no centro da narrativa. Ela torna-se cada vez mais a mulher que quer ser, e a sua postura austera sobre essa liberdade vai ganhando força no desenrolar dos acontecimentos. Bella é a mulher que queremos ser, que almejamos ser, que nos inspira. É um ideal.

PUB
Foto: Atsushi Nishijima
Foto: Atsushi Nishijima

Um dos aspetos mais espantosos de Pobres Criaturas é o guarda-roupa, entre o aristocrático, gótico e vitoriano, e tão teatral que chega a ser infantil, responsabilidade de Holly Waddington. "A única condição era que ele [Lanthimos] não queria que fosse um drama de época" - o guião passa-se na década de 1880 - "e não queria que fosse um filme de ficção científica", disse Waddington ao The New York Times. Daí vermos vestidos esvoaçantes, mangas em balão, espartilhos ou cores garridas. Os grandes olhos de Emma Stone são sempre relevados com a maquilhagem certa – sim, também a caracterização está exemplar. De resto, todo o filme parece trespassado por um ambiente de grande mistério e enigma, um feeling que temos sempre nas obras de Lanthimos, como se o realizador nos quisesse dizer que existem dezenas de mensagens semânticas e subliminares em cada olhar, em cada cena.

PUB
Foto: DR

O filme está nomeado para 11 Óscares e foi premiado com dois Globos de Ouro. Ganhou ainda Leão de Ouro em Veneza. Está em várias salas de cinema nacionais e foi o filme mais visto do fim-de-semana, na semana em que estreou, a penúltima de janeiro.

leia também

Céline Dion comove nos Grammys

A artista canadiana estava reclusa há três meses para combater o Síndrome de Pessoa Rígida (SPR), uma condição neurológica autoimune. Foi aplaudida de pé pela plateia dos Grammy Awards, mas não escapou a uma polémica com Taylor Swift.

PUB
PUB