“Não faças aos outros aquilo que não gostas que te façam a ti”. Imagino que a avó goesa de Rita Matias, a determinada altura, terá tentado incutir algum bom senso naquela cabeça. Talvez ainda lhe fale com condescendência, como se fosse uma criança. Afinal, são normalmente as crianças que fazem bullying a outras crianças no recreio da escola. Hoje, com o avanço da tecnologia, há mais recreios. Há a rede social X (ex-Twitter), há o Instagram e a Assembleia da República. Rita Matias publicou um vídeo nas duas redes acima mencionadas citando nomes de menores que frequentam uma escola pública em Lisboa. André Ventura fê-lo no parlamento. Naquele momento o debate era sobre as alterações às leis de nacionalidade e estrangeiros. No lixo que se tornaram as redes, Rita Matias leu nome próprio e apelido, no plenário Ventura fez o favor de ler apenas o apelido. Nomes estrangeiros de crianças que tiraram o lugar ao Pedro, ao António, à Maria, à Sofia, à Carla e a muitos outros. Valha-nos o bom senso de diversas Associações de Pais que endereçaram a várias entidades uma carta aberta que repudia “as declarações xenófobas e a exposição indevida de menores”, segundo noticiou o semanário Expresso.
Somos um país de emigrantes. A partir dos anos 50, sobretudo nas décadas de 60 e 70, milhares de portugueses emigraram para França. Fugiam da fome e da guerra colonial e viviam em condições miseráveis. Qual a diferença entre esses portugueses e os imigrantes que vêm para Portugal à procura de melhores condições de vida? Umas décadas de diferença. Os portugueses estão espalhados pelo mundo inteiro porque, repito, somos um país de emigrantes.
Em França, no Canadá, nos EUA, no Brasil. Para não falar em África ou na Índia, que colonizámos e onde deixámos descendência. Nos lugares mais recônditos do mundo está lá uma família portuguesa. Será que gostaríamos de ser tratados assim?
Marine Santos, economista, filha e neta de emigrantes em França, reflete no Megafone do Público:
“Se os meus avós, nesses primeiros anos de emigração, tivessem ouvido o nome dos filhos listados desta forma, não imagino o medo que teriam sentido.” Diz.
Há crianças de primeira e de segunda?
Porque é que uma criança descendente de um agregado familiar com visto Gold terá mais direitos do que uma criança filha de um casal do Bangladesh? Porque a primeira vive num lugar de privilégio e a família da segunda procura sair de um lugar de miséria.
São os imigrantes que suportam áreas basilares da economia quotidiana dos portugueses. Sem eles “não teríamos produtos frescos todas as manhãs”, dizia-me há dias a proprietária de dois restaurantes. No segundo semestre do ano passado o número de imigrantes em processo de regularização ultrapassou 1,5 milhão, de acordo com o jornal Público.
Distribuídos sobretudo pelos sector primário, os imigrantes movimentam-se nas áreas agrícola, pesca, alojamento, restauração, hotelaria e construção. Segundo a análise da OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – a mão de obra em Portugal subiu por causa dos imigrantes e são precisos mais. Por exemplo, as saborosas cerejas do Fundão não lhe teriam chegado ao prato, não fossem os nepaleses.
Avança a SIC Notícias que “a entrada de imigrantes impediu, aliás, a queda da população ativa.” Se a OCDE defende que a presença dos imigrantes é de louvar e que os países europeus deverão continuar a atrair mão de obra estrangeira, porque é que havemos de tratar os seus filhos com sobranceria? Porque havemos de expor os seus nomes em praça pública?
No primeiro dia de trabalhos da XVII Legislatura, Rita Matias passeou-se na Assembleia da República com um bebé de colo. Chamaram-lhe “marketing emocional”, eu chamo-lhe brincadeiras de recreio. Terá esta criança nome próprio para ser incluída numa lista? A lista de crianças com nomes estrangeiros é mais um golpe baixo para usar os imigrantes como bode expiatório das doenças crónicas do país. Como uma grande fatia grande do eleitorado só lê as gordas e nem se dá ao trabalho de confirmar a veracidade dos factos, é muito grave. Fomenta o racismo e, pior, abençoa comportamentos indignos que poderão replicar-se em muitas casas portuguesas. Como diz o povo, “a educação começa em casa”. Se o Presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar Branco, defende que o Chega “pode” nomear crianças - é liberdade de expressão -, eu insisto que os deputados daquele partido precisam de ter mais educação, mais humanidade e empatia.