Paula Hawkins, escritora: “Interesso-me pelas vidas e problemas das mulheres, pela forma como a sociedade as usa.”

A viver entre Londres e Edimburgo, a escritora sul-africana passou por Lisboa para dar uma palestra no Comic Con e falou com a Máxima.

Foto: Phoebe Grigor
20 de dezembro de 2022 às 10:16 Rita Silva Avelar

Temos encontro marcado no bar do Tivoli Oriente a meio da tarde. O céu está cinzento, Lisboa está prestes a ser inundada, sente-se essa tensão no ar. Diríamos que foi o cenário perfeito para conversar com Paula Hawkins, habituada a imaginar dias como este, tão macabros e expectantes como as suas histórias. Nascida no Zimbabué, tornou-se escritora tardiamente – foi jornalista na área financeira durante 15 anos – e, embora as histórias do pai  a tenham inspirado a ser jornalista, sempre se sentiu atraída por policiais e mistérios. É autora d’A Rapariga no Comboio, adaptado ao cinema com Emily Blunt no angustiante, e estonteante, papel principal, e também dos thrillers Escrito na Água e Um Fogo Lento, o último que é sobre uma morte que acontece dentro de um barco, em Londres, e a ligação intrigante de três mulheres à vítima, um homem.

Foi jornalista na área económica durante 15 anos. Sempre quis ser jornalista? Como se deu a viragem para a ficção literária?

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Eu queria ser jornalista. E não conhecia ninguém que escrevesse livros, então não sabia como é que alguém se tornava escritor/a. O meu pai escrevia para os jornais, tinha imensos amigos jornalistas, e quando comecei a observar esse processo comecei a querer fazer parte dele. Queria viajar pelo mundo e escrever sobre as pessoas. O que nunca chegou a acontecer. Mas tinha esta ideia romântica sobre o que seria tornar-me jornalista. Quando me tornei numa, percebi que não estava assim tão moldada para o ser, que o que me serve mesmo é inventar histórias, sentada numa sala, sozinha.

Qual é a profissão do seu pai?

É académico. Quando escrevia para jornais, escrevia sobre economia para jornais como o The Financial Times ou o The Economist. Nós vivíamos em África. Estávamos constantemente a receber jornalistas lá em casa, então tinha sempre oportunidade de ouvir as suas histórias. Começou assim. 

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Estudou em Inglaterra, mas viveu a sua adolescência em Zimbabué. Como foi essa mudança?

Terminei a escola em Londres, e depois fui para a Universidade em Oxford, voltando depois a Londres onde arranjei um primeiro trabalho. [Em pequena] lia muito, ia à biblioteca todas as semanas, era um momento excitante para mim. Lia histórias de mistério como as de Enid Blyton ou Agatha Christie.

Foto: DR

Esse fascínio explica que tenha começado a escrever estes policiais, como A Rapariga no Comboio ou Um Fogo Lento?

Sempre me senti atraída pelo mistério, pela ideia de resolver um quebra-cabeças, pela ideia de estar a acontecer algo de macabro e ser preciso resolvê-lo. Não sei ao certo de onde vem isso, só sei que quero sentir-me parte desse mistério. Acho que é por isso que gosto de escrever sobre pessoas normais, que podiam ser alguém da nossa família ou a vizinha do lado. Pessoas normais a quem a vida correu mal. Nunca muito sobre a polícia ou sobre os detectives, eles estão lá [nas histórias], mas não são o coração da história. É sobre pessoas que levam uma vida normal – como eu e você – e algo de mau acontece. Depois, o que é que fazemos?

Numa entrevista, uma escritora disse-me que esta é uma profissão muito solitária. Vive-se e deita-se com as personagens. Sente isso?

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Eu penso nas minhas personagens durante imenso tempo, antes de as escrever. No fim do dia, consigo distanciar-me delas, caso contrário seria demasiado. Mas claro, sonho com coisas que acontecem no livro, penso que estou no caminho certo, torna-se muito desgastante, é um trabalho muito imersivo. Ao fim do dia, tento não pensar nele por um tempo. E sim, é solitário, serve a pessoas que se sentem felizes em estar sozinhas, a fechar-se numa sala, que gostem de dar longos passeios. Se fores mais social, é difícil. Porém, há dois lados: é solitário quando escrevemos, mas quando o livro sai é preciso ir-se a público falar sobre ele, ir a eventos, estar no mundo. Para algumas pessoas isso é incrivelmente difícil. Vivemos duas vezes, e não é para toda a gente. A mudança é sentida sempre com um choque. De repente toda a gente sabe da tua história, sente-se que já não é uma história nossa. 

Os primeiros livros que publicou foram sob pseudónimo, e tinham um registo muito diferente. 

Eram comédias românticas. O editor pediu-me para escrever rápido, tinha um briefing certo, já existia uma ideia sobre o romance. Foi estranho, foi como uma missão, como ghostwriting, Não eram as minhas histórias, não eram as minhas personagens, não soava a mim. Fiquei feliz e divertida com esse projeto, mas não era eu. Quando comecei nos meus livros, foi diferente, vivi com a Rachel durante anos [personagem central d’A Rapariga no Comboio], ela pertence-me (risos). 

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Como começa a desenhar as suas personagens? É uma observadora nata, certamente, até porque já foi jornalista.

Geralmente, as minhas personagens começam com a minha leitura de um acontecimento. Certa coisa aconteceu a certa pessoa. Pergunto-me, depois, sobre o que lhes terá acontecido, como lidaram com isso. Por exemplo, com um acidente, como estará essa pessoa anos depois? É muitas vezes através da observação, sim, mas também com base em coisas que leio. Pode ser sobre o que aconteceu antes, ou depois desse acontecimento. Com a Rachel, estava a pensar em pessoas que não se lembravam de coisas que fizeram. Depois, li sobre um homem que tinha morto a namorada sobre efeito de drogas, e não tinha memória de o ter feito. Pensei: é tão estranho. Podem-se responsabilizar as pessoas em determinadas condições? Mesmo antes de começar a escrever, já sinto que conheço as minhas personagens muito bem.

As mulheres estão sempre no centro dos seus livros, são elas que lideram a trama, todas elas sempre complexas e contraditórias. Tem uma admiração pelo mistério feminino?

Eu interesso-me pelas vidas e problemas das mulheres, pela forma como a sociedade as usa. Geralmente por mulheres que não fazem exatamente aquilo que se espera delas, como casar e ter filhos… Às vezes tentam fazer essas coisas, e falham, e sentem-se à margem. Sempre me interessaram as pessoas a quem isso acontece, pessoas que não encaixam, desajustadas. E sim, tenho uma tendência forte para falar sobre mulheres, provavelmente porque sou uma (risos). Escrevo sobre pessoas que conheço, sim, mas as vidas das mulheres interessam-me particularmente.

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Elas surgem muitas vezes como anti-heroínas. 

A mim não me atraem pessoas particularmente boas. Não que veja estas mulheres como más, mas sim como complicadas, complexas, é policial, claro que há tensão e situações extremas. Não estamos propriamente a seguir vidas de pessoas relaxadas. Tenho tendência a escrever sobre pessoas que lutam para viver, pessoas que não vemos no seu melhor, vemos em estado de fúria ou vingança. Essas emoções extremas interessam-me. Não, certamente não escrevo sobre pessoas agradáveis. 

Qual é o aspeto mais difícil de terminar uma ficção como esta?

Escrever um bom final para um policial é difícil. É suposto ser surpreendente e satisfatório, tudo leva aquele ponto. Tem de existir uma grande surpresa, algo pelo qual as pessoas não esperam, mas também não pode ser demasiado melodramático nem louco. É complexo, difícil. 

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Depois de ganhar o Nobel este ano, a escritora Annie Ernaux afirmou numa entrevista ao The Guardian que esta ainda é uma instituição masculina. Sente que o reconhecimento é diferente conforme o género?

Em ficção criminal, historicamente, as mulheres têm bons registos. Agatha Christie, Daphne du Maurier, Patricia Highsmith… Quando pensamos em prémios literários, sim, as mulheres estão em desvantagem, e embora as coisas tenham melhorado ainda há um desequilíbrio. Há muito trabalho a ser feito, e há mulheres incríveis a escrever policiais, como Megan E. Abbott ou Tana French, que estão no topo. 

Foto: IMDB

Como se sentiu ao ver A Rapariga do Comboio adaptada ao cinema?

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Aconteceu muito cedo, foi mesmo antes de o livro ser publicado, claro que foi empolgante. Eu não pensei muito sobre isso. Eu gostei do filme, sei que há imensas pessoas que dizem que nunca é como o livro. Nunca é o que imaginamos, é sempre a interpretação de outra pessoa.

Está neste momento a escrever um novo livro?

Sim, mas nunca falo sobre os meus livros antes de os terminar. Na verdade, acabei de entregar um manuscrito à minha agente e conversámos sobre ele, vamos entrar na fase de revisões. Espero que em breve possamos falar sobre ele. 

O que tem lido ultimamente? 

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Tenho lido muito sobre Arte, ultimamente, porque no meu novo livro há um artista. Tenho lido sobre a escultora inglesa Barbara Hepworth, e tenho ido a exposições de arte ao longo do ano. Tenho lido Patricia Highsmith, que tem sempre personagens muito sinistras e difíceis… também me atraem cenários góticos. 

Como imagina os ambientes dos livros que escreve?

O livro que estou agora a escrever inspira-se na costa oeste da Escócia, mas o cenário em si não existe. É uma ilha junto ao oceano, muito misteriosa.

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