A maior parte de nós não nota. Eu nunca notei até observar estes fenómenos à lupa, para escrever para os títulos do jornalismo feminino e de moda, há quase três décadas. E, das muitas conversas com observadores privilegiados da Psicologia e Sexologia, da psicologia social e da Sociologia, certos tiques e padrões sociais tornaram-se de tal forma evidentes que mais não fazem do que alimentar os papéis de género - e excluir os que acreditam numa sociedade igualitária sem concessões. Se eu julgava não ter grandes preconceitos, graças à sorte de crescer numa família livre, os que tenho têm todos a mesma origem: o patriarcado. Que também é exercido por nós mulheres, como pequeno poder insidioso que vai crescendo e dominando.
É aquela areia na engrenagem. Por quase ninguém o notar é hoje um reduto do desequilíbrio de género que parece não ter fim, mesmo com a chegada de novas gerações. É ainda mais evidente nos países do sul (e ficamos só na Europa, pois o mundo é uma tragédia neste departamento), atropelar e empobrecer os padrões de mulher vigentes. Já não estamos enfiadas em casa, mas continuamos a fazer tudo em casa, só não usamos bata e comemos só depois de todos. E se a maioria das raparigas já não precisa de ser sustentada, as suas escolhas continuam pouco inocentes. O poder feminino da manipulação subreptícia, trabalhada, polida, aperfeiçoada pela submissão de séculos continua vigente, mesmo depois da paridade de género ser lei, e até ser quota. É o tal reflexo inconsciente do passado, misturado com uma certa malícia e o voluntarismo de querer ser indispensável. Muitos dos atos dedicados e sacrificiais femininos, que são vistos como amor e dedicação supremos, vêm deste mesmo lugar. Inconscientemente, mais uma vez. As sempre conciliadoras, adaptativas, silenciosas, diplomáticas, amorosas. Se algumas o são por feitio, a maioria são-no por defeito, por educação.
Existem dois exemplares gritantes deste grande esquema das coisas: as grandes matriarcas e as jovens à procura de pai. As primeiras tudo organizam e fecham os olhos ao que o seu homem faz de menos nobre, como se eles fossem crianças ou inimputáveis. As segundas são o cliché da Lolita, fascinadas pelo seu homem mais sábio, mas reparem como elas nunca se apaixonam por zés-ninguém: eles normalmente têm mais status social ou mais dinheiro do que elas. Porque será? Lembra-me logo aquela frase do Winston Churchill que diz que "um bajulador é aquele que alimenta um crocodilo e que espera comê-lo no final".
Estes padrões geram rapazes infantilizados e pobres diabos, o que não é nada sexy. Mas o mundo está cheio deles. A mamã italiana, espanhola, portuguesa, africana são exemplos acabados de uma longa história de pesado machismo. De tal forma que os homens quase deixaram de ser os motores do próprio machismo: a maioria tornou-se machista inconsciente, por isso nem nota, muito menos interessa questioná-lo, parece um aborrecido problema de raparigas. E para quê? Olh'agora, vidas inteiras mimados como crianças, porquê mexer num privilégio adquirido à nascença?
É um fenómenos transversal a todas as classes sociais e a todas as nacionalidades. Porquê? Porque são as estratégias ancestrais de sobrevivência feminina e de encosto masculino. É mais fácil encaixar a repetir padrões do que buscar equilíbrios novos e vigiar a justiça que rompe com o hábito. Tornou-se uma repetição hipnótica, irracional, automática. Entende-se até certo ponto, sempre foi o que manteve as mulheres perto de alguma espécie de poder - já que o político, religioso, financeiro, todos lhe foram inacessíveis. E agora, porquê alimentar a besta?
Como me dizia, há semanas, uma bailarina nascida em Moçambique: estas mulheres são como os africanos racistas, são muitas e o que fazer com elas? E tudo isto é normalizado socialmente porque provém do mesmo sítio que a subalternidade masculina à grande mãe universal, que tudo faz e de todos toma conta, o amor de mãe que sempre foi adorado, porque é sinal inequívoco de vida e de família, mas que também pode ser sufocante ou controlador. Nem todos o notam, vem bem acondicionado num embrulho colorido de amor familiar, de dedicação. Eles até o tatuavam no braço no tempo da Guerra Colonial: amor de mãe. Criou-se um modelo de eterno feminino, puro e intocável, como uma Nossa Senhora, que não só é artificial (porque as mulheres são pessoas humanas falhas como os homens, ainda que tenham as suas excentricidades), como é aborrecidíssimo ser-se santa. Uma triste razão de maioria e de hábito.
Uma das razões porque tantas miúdas com pinta, graça, inteligência, opiniões, cultura e liberdade estão sozinhas anos a fio? Está aqui a resposta. São os padrões sociais endémicos, de onde provém o racismo e a homofobia, e mais... Cada vez conheço mais mulheres auto-suficientes, de diferentes nacionalidades, que recusam o padrão, simplesmente não conseguem compactuar e até vivem melhor sozinhas do que a fazer um papel que nunca foi o seu. Ou deixou de ser, quando a família segue o seu caminho. E vamos abrindo a pestana com a idade. Podemos não seguir estes padrões nunca? Claro, eu nunca consegui, mas a diferença tem sempre um custo acrescido, mesmo que seja para melhor, e para melhor para todos. Aqueles padrões são corta-matos e a vida é mais difícil quando não fazes beicinho. Sócrates fala de justiça em termos radicais, por isso se os injustiçados devem viver tranquilos, porque não fizeram mal nenhum, a felicidade que existe no ser justo é uma espécie de plenitude porque não precisa de agradar. É isto.
Há uns séculos, as mulheres que não seguiam os padrões eram demónios, bruxas, frígidas, histéricas, enfim. Depois passaram a ser apelidadas de "selvagens", o que acaba por ser um elogio. Há uma minoria de nós que não quer ser tratada como rainha, por um homem a quem fizemos todas as vontades até ele se tornar dependente, nosso pagem, sem dar por isso. Estes homens não têm interesse. E também não quer ser tratada como uma governanta, elogiadíssima pelos cozinhados, a decoração da mesa, a imagem impecável, as "ideias para a vida", como dizia Saramago da sua mulher Pilar. Mas, no fundo, ela é a única pessoa que sabe o que está na dispensa, como estão as contas e para onde se vai de férias. Algumas de nós também nunca quiseram ser a aluna do senhor professor, a pin-up do grande artista ou do enxuto em crise de meia-idade e em segundas núpcias. Estes homens não têm interesse.
Ouvi, há dias, Gabor Maté, que escreve no The New York Times, especialista em trauma, adição, stress e infância, dizer que as mulheres desenvolvem mais doenças auto-imunes (mais 80%) do que os homens, por causa do people pleasing, e por não deitarem cá para fora a "raiva boa": "São doenças em que o sistema imunitário ataca o corpo, doenças como a artrite reumatóide, a lupus sistémica, a fadiga crónica, as fibromialgias e as doenças inflamatórias dos intestinos. Porquê? Por uma atenção compulsiva às necessidades dos outros, em vez das suas; pela identificação com o papel do dever e da responsabilidade, por isso trabalham mais no mundo do que nos seus true selfs; tendem a suprimir a raiva saudável, a ser muito muito queridas e pacificadoras. São levadas a sentir-se responsáveis pela forma como as outras pessoas se sentem e não querem desapontar ninguém com fatal beliefs. Estas são as pessoas que, de acordo com a minha observação, e uma grande investigação já feita, tendem a desenvolver doenças auto-imunes na sociedade em que vivemos, onde o género é mais aculturado e programado para suprimir a sua raiva saudável, para serem as pacificadoras e as cuidadoras: as mulheres. E é uma função que a maioria das pessoas nega."