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Imane Khelif, a desinformação e a maldade

Um combate de boxe feminino nos Jogos Olímpicos de Paris desencadeou uma autêntica campanha de destruição da imagem pública de uma pugilista que nasceu mulher e mulher continua. As mentiras começaram a circular online e parece que não há muito quem se preocupe com o que é ou não verdade.

Foto: Getty Images
02 de agosto de 2024 às 17:15 Diego Armés

Se acreditamos nos Jogos Olímpicos, temos de acreditar em princípios tão simples quanto fundamentais à sanidade humana, tais como a verdade e a justiça. Para falarmos de verdade e de justiça, temos de começar por aquilo que não obedece a prismas, nem a agendas, nem a pontos-de-vista: os factos.

OS FACTOS

A 2 de maio de 1999, Imane Khelif, bebé do sexo feminino, nasceu na cidade de Tiaret, capital da província com o mesmo nome, no Norte da Argélia. Imane haveria de crescer numa vila da mesma província. Durante a infância, jogou futebol. Mais tarde, mas ainda muito pequena, descobriria a paixão pelo boxe.

Imane Khelif é hoje uma pugilista amadora de 66 quilos que compete habitualmente na categoria de pesos-médios. Mede 1 metro e 78 centímetros de altura. Disputou 51 combates oficiais e, embora tenha um registo muito positivo, não se pode dizer que seja uma pugilista avassaladora. Tem 42 vitórias, 6 delas por KO. Conta ainda 9 derrotas. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020, Khelif não foi além dos quartos-de-final. Das 42 vitórias obtidas no ringue, 4 foram-lhe subtraídas a posteriori por decisão unilateral da IBA - International Boxing Association.

Foto: Getty Images

Na altura, em 2023, essa decisão acabaria por levar à desqualificação de Imane dos Mundiais de Boxe, quando a atleta se preparava para combater na final. O Comité Olímpico da Argélia justificou publicamente a desqualificação da sua atleta por "razões médicas". O presidente da IBA, por seu lado, o russo Umar Kremlev, alegou que "exames médicos" - que nunca foram especificados - revelaram que Imane Khelif tinha "cromossomas XY ou então níveis de testosterona muito elevados". Estas alegações nunca foram provadas e os resultados dos tais exames nunca foram tornados públicos. É desconhecido o processo, bem como não é do conhecimento público a metodologia, o que foi recolhido e o que foi analisado. Tudo permanece envolto em segredo e em mistério.

Imane Khelif nasceu mulher e nunca procedeu a qualquer tratamento com vista a uma redefinição do sexo. Caso o tivesse feito, não poderia competir pela Argélia, uma vez que o país não permite semelhantes procedimentos médicos.

Foto: Getty Images

O CASO

Não será arriscado presumir e afirmar que a esmagadora maioria das pessoas que acompanham os Jogos Olímpicos de Paris, e incluindo uma grande parte daqueles que têm no boxe a sua paixão, não sabiam até ontem quem era Imane Khelif. O mundo ficou a saber o seu nome - e as redes sociais passaram a conhecê-la tão súbita quanto profundamente - só após o combate de estreia na presente edição dos Jogos de Paris, quando Khelif defrontou a italiana Angela Carini.

Foto: Getty Images

O cronómetro contava cerca de 40 segundos do primeiro assalto quando Carini sofreu mais um de vários golpes - que é como quem diz, levou mais um soco, mais um murro. Depois, deu dois ou três passos, mas nem sequer foi ao tapete, como acontece com tantos que caem e ficam à espera que a salvação venha numa benevolente e lenta contagem do árbitro de um até 10, "quantos dedos vês?", "consegues continuar?". Não aconteceu nada disso. Carini levou o soco, afastou-se e depois desistiu, dizendo que não conseguia mais. "Foi com muita força", dizem que declarou, perentória, a pugilista feita em lágrimas. Só que, ao invés de congratular a sua oponente, reconhecendo a evidente superioridade da argelina, Angela Carini recusou-se a cumprimentá-la e pôs ainda em causa a legitimidade de Khelif para combater entre as mulheres nos Jogos Olímpicos de Paris e fazendo estalar uma polémica que não devia existir.

A MALDADE

Quem está minimamente familiarizado com o boxe, saberá que muitos pugilistas perdem combates precisamente porque sofrem golpes demasiado fortes, que não conseguem suportar. É, aliás, esse um dos objetivos do desafio: bater mais forte do que o adversário, tentando eliminá-lo o mais rapidamente possível. Em muitos casos, o pugilista derrotado vai ao chão, chega a perder os sentidos - o knock out, o célebre KO -, tal é a potência e a violência dos golpes desferidos por um e recebidos por outro. Serem "muito fortes" não constitui, à partida, qualquer tipo de irregularidade na essência dos golpes.

Foto: Getty Images

Tudo o que foi escrito até aqui é um relato meramente factual. Não há qualquer assunção ou presunção do que deve ser feito no desporto de alta competição com vista à participação de atletas transexuais - esse é um tema demasiado complexo, capaz de dividir até a comunidade científica (sendo que muitos dos especialistas na matéria sublinham que ainda é cedo para se chegar a conclusões definitivas, alegando que há muito pouca informação acerca de tudo o que o fenómeno envolve). 

Só que aquilo a que se tem assistido desde ontem não tem a ver com a inclusão de transexuais no desporto feminino: tem a ver com maldade em relação a uma mulher (de nascença, cisgénero), tem a ver com o levantar de falsos testemunhos, tem a ver com uma espécie de destruição pública sobretudo nas redes sociais, com vagas e vagas de desinformação, e muita maldade à mistura. E a tudo isto não pode ser alheia a conduta da pugilista italiana. Angela Carini foi tudo menos inocente naquele papel de vítima injustiçada, aproveitando-se de um argumento infundado - as declarações de Umar Kremlev à agência noticiosa russa TASS que têm sido usadas como justificação para todo este triste espetáculo nunca foram provadas, nenhuma alegação foi publicamente demonstrada - para justificar uma desistência que evitou uma derrota. "Foi muito forte" - e isso é proibido?

VANTAGENS LEGÍTIMAS

O caso traz à memória a perseguição impiedosa à atleta sul-africana Caster Semenya, que foi durante anos vítima de assédio por parte da imprensa internacional e, claro, dos comentadores das redes sociais. Contudo, tanto no caso de Khelif como no de Semenya, não há qualquer prova de que tenham obtido vantagem de outro tipo que não apenas biológico. No entanto, tratando-se de atletas de topo, não será legítimo concluir que todas elas, de alguma forma, beneficiam de vantagens biológicas? Não seriam, por exemplo, Serena Williams ou a mais antiga Martina Navratilova atletas com "vantagem biológica" sobre os seus pares? Se vamos falar da força dos punhos Khelif como uma "vantagem biológica" injusta, o que vamos então dizer do basquetebolista francês Victor Wembanyama, que há poucos dias, com os seus esplendorosos 2 metros e 24 de altura, defrontou o japonês Yuki Togashi, de apenas 1 metro e 67? 

Foto: Getty Images

Já agora, mais um facto: em alta competição, sete em cada mil atletas femininas apresentam regularmente níveis de testosterona acima dos limites estabelecidos para o que é normal numa mulher. E é por isso que estes níveis devem ser alvo de revisões constantes, de modo a adequá-los à realidade, em vez de os tornarem dogmas injustificados.

Foto: Getty Images

Toda a situação, todas as mentiras e todas as acusações direcionadas a Imane Khelif são perturbadoras, especialmente por se revelarem um forte sintoma da era corrompida em que vivemos e em que a mentira e a falsidade podem abertamente ser usadas ao serviço de agendas mais ou menos obscuras, mais ou menos ignorantes. Essas, propagam-se nas redes sociais como labaredas em palha seca num dia ventania. É trágico. E este movimento de destruição da imagem de Imane Khelif devia fazer os seus autores e participantes, em geral, levar a mão à consciência e fazê-los pensar no porquê de se injuriar e denegrir assim uma mulher.

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