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Passamos boa parte da conversa a falar de jornalismo. Afinal, entrevistadora e entrevistada partilharam durante mais de 20 anos o mesmo espaço de trabalho, conhecem as mesmas pessoas, têm ambas uma ideia desta atividade como coisa que requer tempo e atenção ao que o outro diz, mas, sobretudo, ao que o outro mostra, em pormenores, nem sempre calculados, de si.
Uma década depois de ter deixado a redação da Visão, ao serviço da qual ganhou vários prémios de jornalismo, Ana Margarida de Carvalho é um nome consagrado da literatura portuguesa contemporânea. Estreou-se no romance com o seu primeiro livro em 2013, Que Importa a Fúria do Mar, que ganhou logo o Grande Prémio de Romance e Novela Associação Portuguesa de Escritores/Direção Geral do Livro e das Bibliotecas. Voltaria ao romance, três anos depois, com Não se Pode Morar nos Olhos de Um Gato, que ganhou também este prémio, a que se seguiu, em 2019, O Gesto que Fazemos para Proteger a Cabeça. Ana Margarida é ainda autora de dois livros de contos, Pequenos Delírios Domésticos e Lugares mal Situados (10 Contos da Guerra), além de vários trabalhos de não ficção como o ensaio/reportagem Viver Só, com chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
A Chuva que lança a areia do Saara, o romance que acaba de chegar às livrarias (editada pela Companhia das Letras, a sua nova editora) é o quarto romance e abre com um homem, Firmino de seu nome, a não ter certeza se o que lhe está a acontecer é um rapto: “Dizes que tecnicamente isto pode ser considerado um rapto? Não me parece, sou um estorvo, não um benefício, não faculto resgates, não suscitarei buscas, não deixarei saudade.” Em breve, juntar-se-lhe-ão outras criaturas “com quem Deus joga aos dardos, e não aos dados”: Entre outras, uma desconcertante mulher sem nariz, uma viúva de desejos ardentes, um violador, duas gémeas siamesas unidas pela ilharga e um senhor Celavie, que é tudo menos linear em palavras, atos e omissões. Reúnem-se numa comunidade improvável, sob o título trazido de uma canção de Caetano Veloso, “Reconvexo”: “Sou a chuva que lança a areia do Saara sobre os carros de Roma.”
“A minha ideia inicial era escrever um livro sobre a guerra, mas quando começou a guerra da Ucrânia, parei”, conta a autora. “Comecei a pensar que talvez os horrores de que eu ia falar, estivessem mesmo a acontecer a pessoas reais e mudei logo de ideias. E pensei que podia começar a trabalhar o sentimento de exaustão. O Firmino, com que abro o livro, é alcoólico em estado muito terminal, com o próprio corpo a entrar em exaustão e falência total de órgãos.”
Mas Firmino, como se há-de ler, não é apenas esse corpo maltratado e a dependência que o foi armadilhando. Como não o será Ésfira, a mulher cruelmente marcada na face pela ausência de nariz: “Gostei da ideia de uma personagem tão mutilada no rosto poder ser objeto de desejo. Ela exerce essa sedução e é, por causa disso, uma personagem bem querida entre os homens e mal querida entre as mulheres. Ao mesmo tempo, exerce a função de elemento agregador, que guarda os vivos e os mortos.” Mas Ésfira, tal como os demais elementos desta trama, é, como Ana Margarida reconhece, “uma personagem totalmente ambígua, que é capaz de dividir a comida pelos outros, ao mesmo tempo que contamina a água porque lava lá os seus lençois sujos de sangue”.
A perplexidade de olhar o o tempo presente
Todas juntas, estas criaturas formam “uma comunidade fechada, que não é benigna, mas que é o último lugar para os desesperados. A ideia é também tentar perceber onde é que pertencemos: será que conseguimos fazer de um prostíbulo, ou um barco encalhado, a nossa casa?”
Ana Margarida de Carvalho vê este seu livro como “algo que nasceu da perplexidade perante este tempo, dos meus terrores noturnos, se calhar, da minha incapacidade de pertencer onde quer que seja.” E acrescenta: “Nunca pensei ser contemporânea de algo como o que se está a passar em Gaza. Quero acreditar que isto resulta da ação do governo de extrema direita que se instalou em Israel, e que não representa, de facto, a maneira de pensar do povo daquele país.”
A Chuva que lança a areia do Saara é também um livro em que o ressentimento e as mágoas antigas desempenham um papel crucial: “Quando estamos alegres, esse sentimento é breve, dura aqueles momentos, nada mais, mas o mesmo não acontece com as mágoas profundas, que duram vidas inteiras. Há um conto muito bom da Anne Porter, em que ela nos mostra uma senhora muito velhinha, que, no final da vida, apesar de ter tido um casamento e filhos e netos, continua a interrogar-se por que é o namorado da juventude não compareceu ao encontro. Aquela dor ainda é presente, tantos anos depois.”
Mas se o trabalho de linguagem de Ana Margarida de Carvalho é, pela profundidade que evidencia, claramente literário, a atenção aos traços e gestos, quotidianos ou circunstanciais, das duas personagens vêm dos mais de 20 anos em que trabalhou como jornalista: “É algo que não nos larga. Quando deixei de ser jornalista, que foi de um dia para o outro e contra a minha vontade, tinha de me auto-policiar porque ainda achava que este ou aquele tema, esta ou aquela situação, davam uma bela reportagem. O jornalismo implica tempo, implica curiosidade em relação ao outro e isso falta cada vez mais. Não sei sequer se os jovens jornalistas são estimulados a alimentar essa criatividade.”
Embora este seja um livro que “se passa mais ou menos a seguir à Primeira Grande Guerra, este é também um livro sobre hoje”, afirma a escritora. “Sinto que estamos num filme de terror, com o argumento escrito por um louco. Tenho a maior dificuldade em lidar com o racismo, que volta a ser verbalizado sem qualquer pudor, embora ele sempre tenha existido na sociedade portuguesa porque, depois de 400 anos de tráfico humano, não acabou por decreto em 1975. Quando os meus filhos eram pequenos, procurei que eles não definissem as outras pessoas pela raça e a verdade é que se constata que o racismo não é inato, é uma coisa construída e fomentada por um modelo de sociedade.”
Ana Margarida sente que alguma coisa de fundamental mudou na sociedade portuguesa: “Creio que já não se diz que somos um país de brandos costumes, com os números horríveis que atinge a violência doméstica. Somos é um país de brandos protestos, isso sim.”
Sentir-se-á Ana Margarida nostálgica dos tempos em que cresceu? “É verdade que me sentia um pouco dona do mundo, que nos dividíamos entre o grupo que gostava de música do Caetano Veloso e os que preferiam o Chico Buarque, ou os do Jim Morrison e os dos Pink Floyd. Eu acreditava que ia viajar pelo mundo de barco com o oceanógrafo Cousteau, mas a verdade é que acabei por ir para Direito, um curso com que nada tinha a ver, porque era o curso dos meus pais. Pior do que isso, quando ia de férias para a zona de Santa Comba Dão, era normalíssimo ver situações de trabalho infantil, ver miúdos andarem descalços, ou maridos a baterem nas mulheres, na rua, e ninguém reclamar. Era como se o 25 de Abril não tivesse acontecido”.
Mesmo em relação às vidas das mulheres, a autora sente que, apesar das ameaças que pairam no ar, muita coisa mudou desde os anos 1980: “A violência no namoro é uma tragédia e temos de estar muito vigilantes em relação a ela, mas também temos de perceber que há bons sinais, como a quantidade de miúdas que andam de skate, que praticam futebol e outros desportos, o que era impensável quando nós eramos da idade delas. Também são muito reivindicativas e isso é muito importante.”
Embora se procure distanciar do “bombardeamento informativo”, Ana Margarida de Carvalho não tem como evitar a angústia que estes tempos lhe causam. Define-se como “pessimista na razão e otimista na vontade". Como pessoa que assume ser de esquerda, diz “acreditar que o capitalismo não é o fim disto tudo e que podemos caminhar para o mundo mais justo.” Mas, conclui, “às vezes, acreditar exige muito esforço.”