"Sempre estive de acordo com a frase «basta observar alguém com atenção para que essa pessoa se transforme em alguém interessante»" escreve, no seu bestseller, Marian Rojas Estapé. A psiquiatra espanhola começa por contar um episódio pessoal passado num avião com destino a Madrid: o momento em que, absorta nos seus estudos de Medicina e inicialmente desinteressada no ambiente que a rodeia, acaba por travar uma conversa com um estranho. Acontece que este homem acabava de se aposentar da CIA, após mais de 30 anos a investigar terrorismo, e podia finalmente conversar sobre a sua jornada, acabando por convidá-la a passar por esta importante agência de forma a realizar trabalhos como psiquiatra forense ou de investigação.
A psiquiatra espanhola evoca este episódio como uma metáfora para explicar que as coisas boas acontecem, e as pessoas interessantes surgem na nossa vida, quando prestamos atenção. "Ninguém nos virá buscar a casa para propor o projeto da nossa vida. É preciso ir ao seu encontro" escreve. Com um histórico familiar ligado à Psiquiatria, Marian Rojas Estapé seguiu as pisadas do avô e do pai, licenciou-se em Medicina e Cirurgia pela Universidade de Navarra e tornou-se psiquiatra. Trabalha no Instituto Espanhol de Investigações Psiquiátricas em Madrid, mas já passou por vários hospitais europeus. Atualmente, Marian Rojas Estapé centra-se no tratamento de pessoas com ansiedade, depressão, perturbações de personalidade, perturbações de conduta e em terapias familiares. A passagem por Portugal assinala-se com o lançamento do livro Como fazer para acontecerem coisas boas, da Editora Planeta, que foi o livro da categoria não-ficção mais vendido em Espanha em 2019 (tendo já ultrapassado 150 mil exemplares vendidos). Além do trabalho em consultório, há mais de 10 anos que dá conferências em Espanha e no estrangeiro sobre stress e felicidade, educação, redes sociais, assim como depressão e doenças somáticas. Defende que o entendimento do cérebro e a gestão das emoções, melhoramos substancialmente a nossa vida. É por isso que, no livro, dá ferramentas para que qualquer leitor o consiga fazer. O destino? A felicidade, sempre.
Porque decidiu tornar-se psiquiatra?
Venho de uma família de psiquiatras. O meu avô era psiquiatra, o meu pai é psiquiatra, e a minha família revolucionou muito a psiquiatria em Espanha. O meu avô tentava diariamente que todas as pessoas que sofriam com problemas de saúde mental não fossem deslocadas da população. O meu pai levou a psiquiatria "às ruas" ao escrever muitos livros, a dar entrevistas, a fazer viagens e conferências. Eu procurei falar sobre duas coisas [no livro]. Primeiro sobre o tema da prevenção, procurando saber porque tantas pessoas começaram a sofrer com problemas de saúde mental - da ansiedade à depressão, à insónia – com o acesso que existe hoje a quase tudo. Depois, explicar, da maneira mais simples mas com base científica qual é a união entre a mente e o corpo. Sempre me atraiu perceber o comportamento humano, as emoções, de forma a ajudar as pessoas.
Existe uma pressão da sociedade para que estejamos sempre bem? Porque lemos constantemente que é preciso meditar, praticar o mindfulness, estar sempre feliz…
Eu acredito que sim. Que existe uma obsessão em sermos felizes, para desfrutarmos das coisas, para sermos perfeitos, e para mostrarmos às pessoas uma aura de perfeição, de controlo, de saúde, de bem-estar. Mas a sociedade está profundamente "doente", repleta de tristeza, e está híper estimulada porque tem de estar "conectada" todo o dia, e tem uma obsessão em estar a par de tudo (ao que os americanos chamam de F.O.M.O – Fear of Missing Out). Tem medo de "perder", seja a última novela, a última tendência ou a última notícia. Por um lado, a sociedade fomenta uma série de comportamentos, e por outro lado também te obriga a que sejas feliz, a que vivas em modo zen, a que faças mindfulness, a que faças uma alimentação super detox, e de certa forma isso afecta-nos pois é uma pressão muito grande.
Portugal foi considerado o quinto país que consome mais antidepressivos da OCDE (10 milhões de embalagens) segundo os dados do último relatório do Conselho Nacional de Saúde dedicado à saúde mental. Como entender estes assustadores números?
Sem conhecer exactamente o perfil da população portuguesa, podem ser duas coisas. A primeira é que quando alguém descobre pela primeira vez as medicações, há um boom, porque estas proporcionam um grande alívio instantâneo. Removem a ansiedade de uma vez só, fazem com que a pessoa durma bem desde a primeira noite, proporcionam sentimentos de felicidade, aliviam o sofrimento. Isto acontece muito com medicação nova, o que faz com que toda a gente peça para que lha prescrevam. Há muitos países que levam anos nesta dinâmica. Há oito anos, trabalhei num hospital em Londres onde os médicos só prescreviam os medicamentos quando já tinham sido feitos vários diagnósticos e testes ao paciente. Reduzia-se ao máximo a medicação como ansiolíticos ou derivados de benzodiazepinas e tranquilizantes. Quanto menos, melhor. Agora passa-se o contrário em alguns países. Alguns estão no início da descoberta das "bondades" destes medicamentos.
E a dependência? Não pode ser uma das causas?
É uma medicação que cria muita dependência, porque cria uma sensação de bem-estar rapidamente. Muitas pessoas não querem que os médicos lha tirem. Eu apoio a teoria de que deve ser feita terapia e reduzir a medicação sempre que possível para que o cérebro seja capaz de aprender a questionar, também. Se o cérebro anula todos os momentos de stress, qualquer situação de medo, tristeza ou incerteza tornar-se-á difícil de questionar.
No livro ensina a descobrir como lidar com o medo, através de ferramentas como a inteligência emocional. Porquê decidiu escrever este guia, mesmo não sendo um livro de auto-ajuda?
Eu digo sempre que a felicidade consiste em viver instalado no presente, tendo superado a seriedade do passado e vendo com esperança o futuro. Os que vivem enganchados no passado são os depressivos, os que vivem angustiados pelo futuro são os ansiosos, e a ansiedade está muito relacionada com o medo. Se não nos conectarmos ao presente, é porque estamos presos ao passado ou ao futuro e nos esquecemos de viver no presente. E 90% das coisas que nos preocupam nunca acontecem, estão na nossa mente, mas têm um impacto direto nas nossas células, no nosso organismo e no nosso prognóstico vital. É por isso que é tão importante conectarmo-nos com o presente, questionando os nossos medos e superando os problemas do passado, para uma vida mais equilibrada e plena possível.
Um dos aspectos que aborda é o do cortisol tóxico. Quais são os impactos do mesmo?
O cortisol é uma hormona boa, porque nos leva a enfrentar as "ameaças", os desafios, os momentos de stress e alerta. Ativa o nosso sistema nervoso para que possamos fazer frente a algo que nos ameaça. O mal é quando estamos todo o dia a produzir cortisol. Se existe uma sensação de alerta constante, geram-se picos elevados de cortisol o que provoca mudanças a nível psicológico e a nível físico. Estamos irritáveis, o nosso humor altera-se, temos perda de memória, concentramo-nos pior, estamos tristes… E a nível físico dói-nos a cabeça, afecta-nos a parte intestinal, dói-nos os músculos, estamos cansados, temos mais propensão às infecções, podemos desenvolver problemas hormonais, de tiróide, por exemplo. O cortisol tóxico é prejudicial à saúde.
A ansiedade é algo que afecta muitas pessoas. Porque afecta mais uns do que outros?
Há personalidades mais propensas que outras, ou por motivos genéticos ou algum tipo de sofrimento na infância. Há pessoas que têm personalidades mais predispostas ao sofrimento e à dor, ou a ver a vida de um ponto de vista mais negativo.
A medicação resolve a maioria desses casos? Ou não abrange a longo prazo?
O mais fácil é a medicação que alivia momentaneamente. Mas há pessoas que nunca pedem ajuda ou que pedem ajuda a familiares que também já estão no limite porque vivem rodeadas dessas pessoas. Ataques de pânico e depressões severas requerem ajuda imediata, e nesse momento é preciso ajudar com medicação. Mas também com terapia, psicoterapia, para ajudar a melhorar esse estado e impedir recaídas.
Construir a inteligência emocional é crucial? A construção do "eu" começa em que momento?
O que sabemos hoje é que até aos 3/4 anos, como a criança se sentiu desejada e amada pelos seus progenitores marca, em muitos aspectos, a sua personalidade e o seu desenvolvimento emocional quando for adulto. Quando falamos em inteligência emocional falamos da capacidade de ensinar a empatia, o saber pôr-se no lugar do outro. Até essa idade a criança não tem memória, mas o corpo recorda e há uma zona do cérebro que vai ser essencial para a gestão do medo que é a amígdala, uma zona que está hiper ativada entre os 2/3 anos. Os primeiros anos de vida são básicos para o desenvolvimento emocional.
Que mais a surpreendeu em toda a investigação levada a cabo para o livro?
Foi reconfirmar a hipótese, a intuição de como a saúde está tão relacionada com as emoções. Desde o tipo de personalidade, da forma de ser que tem mais propensão a certas doenças cardíacas ou a certos problemas de pele, ou a certos problemas intestinais, incluindo alguns tipos de cancro. Durante muitos anos estudaram o papel do tabaco, o papel da alimentação, da poluição… agrada-me que por fim a forma como questionamos os eventos da vida também tem um impacto [na nossa saúde]. Quando estudei Medicina, em nenhum momento me falaram da parte emocional das doenças. Hoje, estuda-se cada vez mais. Ir ao médico não pode significar apenas ir buscar comprimidos, mas é preciso que o médico averigúe como se sente a pessoa, do ponto de vista emocional. Conversar e escutar é tão importante quanto administrar uma medicação para qualquer que seja a dor.
Acredita em medicinas alternativas?
Eu defendo a teoria de que quando algo funciona, há que dar-lhe o benefício da dúvida. A medicina ocidental funciona muito bem, mas conheço casos de pessoas que com outro tipo de medicinas se curaram e melhoraram. Não só pelo efeito placebo. É o que me leva a pensar que há mecanismos de cura do ser humano que desconhecemos, mas não creio que sejam suficientemente fortes para substituir aquilo que conhecemos. A medicina oriental, por exemplo, tem temas interessantíssimos que correm muito bem, que funcionam. Eu não as recomendaria em primeiro lugar. Penso num paciente meu em particular que tinha ataques de ansiedade muito graves, e que há uns meses foi ao Japão em trabalho, onde lhe deram outro tratamento. Encontrei-o na semana passada e está, neste momento, a tomar uma série de coisas naturais e sente-se ótimo.
Qual é o maior inimigo da felicidade?
Diria que são os ecrãs, os telefones, o mundo digital. Porque nos confundem as noções de felicidade real e felicidade fictícia ou light, à distância de um clique. A felicidade instantânea… que assenta na premissa do "quero algo, consigo-o". Isso traz-nos uma sensação fictícia de prazer, de bem-estar, mas que também nos faz sentir um enorme vazio. A longo prazo produz tristeza. As coisas boas da vida acontecem na vida real, e é nela que temos que apostar. Infelizmente optamos por esse mundo fictício achando que é o melhor para a nossa vida, esquecendo-nos que às crianças lhes afecta o cérebro, que afecta o sistema de recompensa [cerebral] e a forma como educamos os nossos filhos. Sabendo tudo isto, precisamos de reaprender a questionar qual será a melhor maneira possível de educar.
Procuram-na pessoas que não conhecem a sua verdadeira identidade?
Algumas pessoas confessaram-me ter duas a três identidades diferentes nas redes sociais. São pessoas que reconhecem não sentir-se realizadas mas que têm os seus trabalhos e uma vida mais ou menos estável, mas que têm uma vida dupla virtual. Isso surpreendeu-me imenso. Mas percepciono-o como sendo um grande escape à dor, ao sofrimento, à incompreensão… É como um ciclo vicioso.
O que gostaria que as pessoas retivessem do livro?
Dou-me por satisfeita que, no fim do livro, as pessoas sintam que se compreendem melhor a si próprias. Que compreendem tudo aquilo por que passaram (ou estão a passar) nas suas vidas. Porque sofrem de determinada maneira. Porque lhes custa criar ligações com os outros. Porque sentem sempre dor. Quando o diagnóstico está feito, conseguimos sempre chegar à forma mais adequada de enfrentar aquilo por que estamos a passar.